As batalhas do octógono

As batalhas do octógono

por Kennia Velázquez México
fotos Kennia Velázquez
Publicado em 29 setembro 2020

Nos corredores dos supermercados, selos pretos começam a ser vistos em alguns alimentos. Selos que são adesivos colados, mas também são muito mais, uma marca inocultável. As pessoas olham, analisam. Há espanto e decepção ao ver que seus produtos favoritos têm um, dois, três, quatro octógonos que alertam para o excesso de açúcares, gorduras ou sódio! Rapidamente seu olhar se move para outra parte da prateleira, procurando opções.

A descoberta de conteúdo oculto em alimentos ultraprocessados, os chamados nutrientes críticos, provocou centenas ou talvez milhares de mensagens nas redes sociais. “Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é), e eu simplesmente troquei de opções, imediatamente. É fundamental que se advirta para a nocividade dos produtos”, diz um tweet de um pai, acompanhado de imagens de fritura marcadas com o novo padrão de rotulagem frontal adotado para alimentos no México.

E ele não é o único. Pessoas surpreendidas, não só por selos de comida-porcaria, mas por aqueles encontrados em produtos que, antes de terem rótulos, eram considerados saudáveis: barrinhas que geralmente são consumidas como merenda ou amaranto com chocolate, molhos de salada, produtos oferecidos para pessoas com diabetes que não contêm açúcar, mas são ricos em gorduras saturadas. Muitos alimentos que pareciam – ou eram vendidos como – saudáveis agora são marcados com octógonos.

Desde que teve início o confinamento pela pandemia, o subsecretário de Saúde, Hugo López Gatell, realiza conferências de imprensa diárias. Não há dia em que não mencione os efeitos adversos do consumo de ultraprocessados e refrigerantes – que chamou de “veneno engarrafado” – e como eles se relacionam com o novo coronavírus, que já levou à morte de mais de 75.000 mexicanos.

Suas declarações diárias levaram a debates raivosos nas redes sociais; colunistas criticaram a posição do subsecretário, a quem descrevem como “ideológico”. As câmaras empresariais disseram que seus produtos são estigmatizados e pediram que a medida que entrará em vigor em outubro seja restringida. Dizem que os rótulos causarão uma grande crise econômica, e ignoram a crise de saúde que já está no meio de nós. 

Os mexicanos estão discutindo o que comem e bebem. Debatem seu direito de conhecer e o papel do Estado na alimentação, questões que pelo menos até o início de 2020 não pareciam ter relevância, até a chegada tanto da Covid-19 quanto dos selos.

Mas o caminho até aqui não foi fácil. Em 2000, o chamado governo de alternância foi liderado pelo então presidente de direita Vicente Fox, ex-CEO da Coca-Cola, que, agradecido pelo apoio a sua campanha presidencial, retribuiu à corporação, e essa cresceu como nunca. Na administração do ex-presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018), a indústria de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas sentou-se na mesma mesa que os altos funcionários. E com isso impediram qualquer medida que abordasse a grave situação de obesidade e doenças crônicas, como um imposto mais forte sobre bebidas de alta caloria ou uma rotulagem clara.

Não só restringiram qualquer regulamentação, como investiram grandes somas no financiamento de “estudos científicos” que fizeram seus produtos parecerem inofensivos, e subsidiaram associações médicas que promovem esses itens, confundindo o consumidor que depende das recomendações de seu nutricionista. 

Eles foram mais longe, muito mais longe. Houve espionagem de ativistas independentes. Embora a participação direta das empresas ainda não tenha sido comprovada, é fato que do Estado e através do software – ou malware – Pegasus se espionou pessoas-chave na luta pelos impostos sobre bebidas açucaradas, em 2014. Luis Manuel Encarnación, então coordenador da coalizão Contrapesos, foi espionado; Alejandro Calvillo, diretor da organização El Poder del Consumidor; e Simón Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública. Calvillo e Barquera agora enfrentam ataques de associações de refrigerantes por promover os octógonos e falar sobre evidências científicas dos danos causados por tais bebidas.  

Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é)

Muitos alimentos que se vendiam como saudáveis agora estão marcados com os selos

Um problema de todos

O México é o maior consumidor de comida-porcaria da América Latina, o primeiro em obesidade infantil (e o segundo em adultos). Esse tipo de produto é encontrado em todos os lugares: na fila de caixas de supermercado, em todas as lojas dos bairros, nas escolas e até nas farmácias. Compre US$ 9 de gasolina e ganhe um saco de lanches”, “Por apenas 50 centavos a mais seu refrigerante cresce duas vezes mais”, são algumas das promoções que nos bombardeiam diariamente. O consumo desses produtos é tão normalizado que é inimaginável ter uma reunião sem ter três ou quatro garrafas de 3 litros de refrigerante e sacos gigantes de fritura.

O México tem um grande problema de alimentação. Agora, a partir de outubro, em teoria, todos os produtos que se encaixarem nos critérios devem ter selos em forma de octógono que alertam para o excesso de açúcar, gordura e sódio, mas também alertam sobre os riscos de crianças comerem produtos com cafeína e adoçantes. Um rótulo mais poderoso que seu antecessor, que começou no Chile em 2016. 

A gravidade do problema fez com que dois estados proibissem a venda de ultraprocessados e bebidas para menores; e a regulação pode se multiplicar em breve porque 17 legislativos locais, de províncias, estão estudando iniciativas semelhantes. Seria um avanço importantíssimo para os defensores da saúde pública, mas colocaria a indústria no mesmo nível de dano que o tabaco e o álcool.

Na América Latina, parece que foi necessário sofrer a pior pandemia da era moderna para que uma parte da população ouvisse avisos que já têm anos de história. Parece que agora, nos tempos de Covid, muitos ouvem o que há anos vêm alertando profissionais de saúde, ativistas e acadêmicos. Parece que só agora entendemos que a má dieta mata.

A Organização Pan-Americana da Saúde há muito alerta que a alta incidência de diabetes, hipertensão e doença renal coloca uma em cada três pessoas no continente – cerca de 186 milhões de latino-americanos – em risco de ficar gravemente doente por Covid-19. Outra grande comorbidade, o excesso de peso, que afeta 8% das crianças menores de 5 anos, 28% adolescentes, 53% dos homens e 61% das mulheres, deve figurar na lista. 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) informou que 82% das mortes na América Latina e no Caribe foram resultado de doenças cardiovasculares e câncer. Estima-se que existam 41 milhões de adultos com diabetes na região e metade não o conhece e, por isso, não pode ser adequadamente cuidado. Os óbitos atribuíveis aos altos níveis de glicemia aumentaram 8% na região entre 2010 e 2019.

Antes do SARS-CoV-2 colocar os sistemas de saúde do mundo em xeque, previa-se o que causaria o colapso seriam as doenças não transmissíveis. Mas foi a coexistência das pandemias que causou uma urgência ainda maior. 

O Chile foi o primeiro país latino-americano a definir alertas na rotulagem, em 2016. Três anos depois o consumo de bebidas açucaradas foi reduzido em 25%. O Peru foi o segundo. Um estudo indica que 37% dos habitantes de Lima deixaram de consumir produtos com octógonos. Em meio à quarentena, o Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Proteção da Propriedade Intelectual declarou como barreiras burocráticas ilegais os selos estabelecidos pelo Ministério da Saúde – com um claro dedo da indústria. 

O Uruguai está indo na mesma direção, embora com dificuldades. Os selos deveriam ser adotados em 1º de março, mas a mudança de governo adiou para fevereiro de 2021. Uma das razões é esperar que as normas de rotulagem sejam “harmonizadas” com outros países do Mercosul, embora ativistas denunciem que é uma prática dilatória, porque tais definições podem levar muitos anos.

Argentina e Brasil são dois países que tentam há anos adotar os rótulos. Assim como no Uruguai, a adesão ao Mercosul também serviu de pretexto na Argentina para não discutir a medida. Por que tanto esforço para frear essa decisão? “A rotulagem é uma porta de entrada, uma vez que você tem, você define quais produtos são saudáveis e quais não são”, explica Luciana Castronuovo, coordenadora da Fundação Interamericana do Coração da Argentina. Atualmente no país há 45 iniciativas em discussão em diversas áreas do governo.

O Brasil, um importante ator da região, trabalha há 6 anos no assunto. Lá atrás, também tentou aumentar o imposto sobre bebidas açucaradas, seguindo o exemplo do México, e regulamentar a publicidade, mas “a interferência da indústria impede o progresso sobre o tema”, lamenta Ana Paula Bortoletto, membro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Mas ainda tem esperanças: “Que mais países estejam trabalhando nisso pode ajudar a acelerar essas medidas na região, por exemplo, quando a rotulagem entra em vigor no Uruguai, é necessário discutir essas políticas porque isso ajudaria a reduzir as barreiras comerciais, as empresas são as mesmas que trabalham em nossos países.”

 

É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro

Um projeto de lei com a rotulagem chilena já foi apresentado na Costa Rica. Na República Dominicana, durante a campanha eleitoral, a Aliança pela Alimentação Saudável convocou os candidatos presidenciais a assumir o Compromisso com a Alimentação Saudável, que inclui, entre outras medidas, rotulagem correta. Na Colômbia, a Rede PaPaz pediu ao Estado uma rotulagem frontal e clara de advertência, iniciativa que está sendo analisada pelo Ministério da Saúde. A diretora da organização não governamental, Carolina Piñeiros, vê um interesse crescente dos colombianos em saber o que estão consumindo e há gradualmente mais legisladores que apoiam essas iniciativas. Além disso, a cidade de Bogotá está discutindo a proibição da venda de ultraprocessados e bebidas açucaradas nas escolas.

Como em um jogo de estratégia, a indústria pressiona. No entanto, a América Latina se move. Quando a rotulagem foi implementada no Chile, os fabricantes “pensaram que essa é a exceção, não será a regra”, lembra Enrique Jacoby, ex-vice-ministro da saúde do Peru. E em todos os países onde o assunto foi discutido, eles encontraram resistência. A indústria tem tentado evitar rótulos claros. É por isso que a batalha mexicana é fundamental: “A importância e a expectativa que a região tem com o México é que ela ajude a pender a balança. É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro.”

E a indústria luta contra tudo: durante o confinamento, aproveitou para comercializar a “doação” de seus produtos, materiais de higiene e equipamentos médicos. Pelo menos cem doações foram contabilizadas apenas no México. Enquanto tentam restringir impostos, rotulagem e quaisquer medidas de saúde, apresentam-se como empresas supostamente comprometidas com a saúde. Mais distópico do que a pandemia em si, as imagens de hoje em dia: Coca-Cola dando refrigerantes para médicos que cuidam de portadores de Covid, em estado grave por sofrer de diabetes, sobrepeso e obesidade.

Mas também há boas notícias de uma frente: as mídias sociais. Porque lá, aparentemente, a indústria está perdendo uma batalha. Até hoje não vi uma única mensagem de alguém lamentando que os selos tenham tirado a venda de seus olhos, e vi muitos comemorando que eles agora serão capazes de exercer seu direito de saber.

 

O iogurte, essa coisa capaz de extinguir tudo

O iogurte, essa coisa capaz de extinguir tudo

por Marina Ayzen Argentina
Publicado em 9 setembro 2020

Nutrientes agregados, doações de milhões de produtos, expansão dos negócios com o Estado: a indústria láctea se reorganizou na pandemia fantasiando os negócios de ação social, enquanto esconde como os métodos produtivos destroem territórios e armam o cenário para a produção de novas pandemias 

“Um iogurte todo dia é saúde-saúde. Alimente-se com vontade de viver”. Esse é um jingle dos anos 1980 da La Serenísima, a maior indústria láctea da Argentina, cuja divisão de iogurtes, queijos e sobremesas está hoje nas mãos da multinacional Danone. 

O jingle é pegajoso. Não só pela música, mas pelo conteúdo, que faz pensar que, se você não ingere algum de seus produtos – Actimel, Activia, Yogurísimo – estará no caminho exatamente oposto àquele que sugere o comercial: doente-doente. 

Entre a distância social e o silêncio imposto pelas máscaras, o supermercado parece um templo: um antigo edifício industrial convertido em um autêntico centro comercial dos ultraprocessados.

Vou direto ao que vim fazer. No último andar há oito gôndolas refrigeradas destinadas a produtos lácteos e metade delas são para iogurtes. Não há nem mesmo um mínimo desabastecimento causado pela pandemia. Em meados do século passado, os lácteos foram ungidos a um grupo alimentar autônomo. A partir daí, acompanhando a produtividade cada vez mais intensa do leite, tornaram-se obrigatórios na alimentação, com um mínimo de três porções por dia. Em um país pode estar faltando tudo, mas, se falta leite, o assunto é sério. Aqui, os lácteos sobram.

Nem todos são iguais. Cada geladeira tem um público diferente e uma organização estruturada para cada um deles. Todos, no entanto, são capazes de incitar nossos centros de recompensa cerebral à medida que os percorremos de ponta a ponta. Morangos, cremes, doces: imagens fazem água na boca.

Conto vinte passos de uma extremidade da geladeira à outra: são francamente enormes. Não posso deixar de imaginar uma criança pulando ao lado do carrinho que a mãe empurra – uma situação praticamente proibida pela pandemia – enquanto um mundo imaginário de cores e sabores se abre na frente dela. 

O dia é frio e ainda é cedo, as pessoas caminham lentamente neste mundo brilhante e bem iluminado, cheio de recipientes com animais e cereais francamente psicodélicos. São as mães que parecem se colocar na cabeça de seus filhos, escolher. 

Para as mais inseguras, os iogurtes destinados a bebês. “Primeiros sabores”, da Sancor: leite e açúcar e aditivos. Nada diferente do iogurte da Danone para crianças de seis? Oito? Doze? Ou o Activia que recomendam para prisão de ventre. 

No entanto, a frente das embalagens diz outra coisa: cálcio extra, zinco, vitamina A, D, fibras, Ômega 3.

Nos últimos 50 anos, a indústria leiteira tem sido capaz de aperfeiçoar uma arte: destacar diferentes nutrientes intrínsecos ou incorporados em seus produtos, e vendê-los de tal forma que eles parecem estar fazendo, mais do que um negócio, uma contribuição para a imunidade da humanidade. Tanto que a adição de vitaminas e probióticos está entre suas tarefas de “sustentabilidade” e “responsabilidade empresarial”, como se dessa forma pudessem fugir dessa realidade: em todos os casos são produtos ultraprocessados com quantidades excessivas de açúcar ou com adoçantes e aditivos como estabilizadores, emulsificantes, conservantes, corantes, aromatizantes e perfumes.

Os iogurtes podem estar em embalagens brancas, verdes ou violetas. Oferecem saúde e, sem constrangimento, despem um universo de doces, cereais com açúcar e pílulas de chocolate. 

Qualquer preocupação encontra resposta nesta gôndola: divirta-se, aproveite, perca peso, ganhe músculo, evacue. Produtos comercializados para quem quer se livrar do excesso de gordura corporal têm nomes ontológicos, que se referem à existência: “Ser” (Danone), “Life” (Sancor). “Agora sem conservantes”, “sem xarope de milho de alta frutose”, “com probióticos”, “multivitamínicos para combater vírus e bactérias”. 

Em meio à pandemia, a estratégia de venda de nutrientes foi redobrada, e os benefícios também. Em tempos de Covid-19, as pessoas se lançaram a comprar produtos lácteos maciçamente. Apenas nos três primeiros meses de pandemia, a Danone aumentou suas vendas globais em 3,7%. Em dinheiro: 6,2 bilhões de euros.

Os produtos adquirem características ontológicas na busca por convencer os consumidores
Foto: Miguel Tovar

É a geleia, estúpido

O primeiro iogurte da Danone, que divide com a Nestlé a primazia global do mercado de lácteos, foi vendido em uma farmácia. Isac Carasso, o fundador, foi quem descobriu que saúde e iogurte eram duas ideias que vendiam bem juntas. Um judeu sefardita que havia fugido a Barcelona em 1919 enquanto o continente rachava com a 1ª Guerra Mundial, e revelou o poder de uma comida até então pertencente aos povos do Cáucaso, do Oriente Médio e do Mediterrâneo. 

Carasso fundou uma pequena empresa a que deu o nome de Danon, o diminutivo em catalão para Daniel, o nome de seu filho. Daniel deu sequência ao trabalho do pai e decidiu estudar marketing para profissionalizar o comércio. Em 1942, instalado nos Estados Unidos para escapar da 2ª Guerra, comprou uma fábrica de iogurte que pertencia a gregos. Foi ali onde teve a ideia: agregar geleia de morangos. Então, conquistou o céu: havia inventado um snack supostamente saudável e que agradava muito ao paladar americano, tão voraz por coisas doces. Foi um boom.

Hoje as geladeiras dos supermercados são cada vez mais exageradas e têm uma oferta tão grande de iogurtes que ficamos desorientados, ainda mais em meio à promessa de panaceia contida em cada pote. 

A evidência mais recente mostra que os produtos ultraprocessados, caso de muitos iogurtes, estão relacionados com doenças crônicas como diabetes tipo 2 e problemas cardiovasculares. São produtos que diminuem a imunidade, e não aumentam. Quanto aos lácteos, a ciência tampouco tem sido generosa. Não se conseguiu comprovar a promessa de redução de risco de osteoporose. E, talvez, na verdade a fomente. Está associado ao câncer de ovário e de próstata pelo alto conteúdo de hormônios. E sabemos que há otras fontes de cálcio mais seguras, como as folhas verdes, legumes, frutas, peixes. 

O problema é que nenhum desses alimentos conseguiu vender US$ 85,5 bilhões em 2019, nem chegarão a US$ 106,6 bi em 2024 só nos Estados Unidos, como se projeta.    

Os guias alimentares de um país produtor de leite como a Argentina – no top 4 dos maiores exportadores – seguem bancando que é necessário consumir três porções de lácteos ao dia. E a cada Dia Mundial do Leite, em 1º de junho, divulga-se, com pesar, que a sociedade não está acompanhando o ritmo de compras que as marcas desejam. 

Os programas sociais destinados à infância estão baseados nos lácteos como garantidores de boa nutrição. As corporações são fornecedoras do Estado para escolas e refeitórios em todo o território. 

“Brindar saúde”, “produtos saudáveis e balanceados”, “impacto positivo no mundo”, diz a apresentação de Danone. Algo similar ao que diz a Nestlé, que promete “melhorar a qualidade de vida e contribuir a um futuro mais saudável”. 

Na província de Mendoza, no extremo oeste argentino, a Danone realizou uma campanha junto a várias secretarias – Direitos Humanos incluído – chamada “Mendoza é supersaudável”. Na teoria, o objetivo era ajudar a desenvolver o “pensamento crítico” na hora da alimentação. Será que ensinaram a ler a tabela de informação nutricional de seus próprios produtos?

Em Córdoba, na região central, fizeram uma campanha similar, chamada “Mais nutrição, mais sorrisos”. 

Aproveitando a pandemia, a Danone propagandeou uma doação de 4,5 milhões de iogurtes. A Nestlé entregou dinheiro à Cruz Vermelha e produtos aos bancos de alimentos. E ambas se comprometeram a garantir o abastecimento dos supermercados. 

"Mendoza es supersaludable" se apresentava como um "projeto educativo que busca melhorar a qualidade de vida"

A verdade é um gás

Mas, enquanto a indústria láctea distrai os consumidores oferecendo fortes campanhas de marketing disfarçadas de responsabilidade social, expande seu negócio em direção oposta à sustentabilidade.

As vacas de criação intensiva se tornaram sinônimo de contaminação, desmatamento e mudanças climáticas. Mantidas em currais de engorda, são alimentadas com grãos que vêm de extensos monocultivos. As unidades industriais contaminam bacias hidrográficas. E os ruminantes são uma fábrica biológica de gases causadores do efeito estufa: devido ao complicado processo digestivo, que transita por quatro estômagos, a cada três minutos a vaca solta pelo nariz enormes quantidades de metano, e a bosta e a urina em contato com o solo geram óxido nitroso. Ambos são gases invisíveis, mas, na atmosfera, prendem o calor do sol e evitam que os raios saiam ao exterior. Não há maneira de que esses gases sejam reabsorvidos pela natureza. 

O gado é um produto humano. As vacas se dedicaram a esquentar a terra e a extinguir as possibilidades de uma natureza autóctone. Seja porque transmitem doenças que fulminam os animais locais, como aconteceu com o huemul, um veado da Patagônia, seja porque os fazendeiros limpam com queimadas enormes quantidades de bosques ou pântanos. Quem se apresente pelo caminho, como os pumas, recebe como resposta uma bala, veneno ou armadilhas. 

Os ambientes são tramas complexas, desenvolvidas ao longo de milhões de anos pela interação do mundo físico e biológico. Ao tirar peças dos ecossistemas, estamos operando contra os elementos fundamentais que precisamos para a vida: água, solo, ar. 

Um milhão de espécies estão em risco de desaparecer da lista da vida. E os iogurtes, o que têm a ver com isso? Sim, eles estão ajudando com a sexta extinção massiva de maneira muito direta. Nossa forma de produzir e consumir é o meteorito da vez. E isso, entre outras coisas, é outro ponto contra nossa saúde: a perda de biodiversidade é a responsável pela aparição de novas pandemias. 

Adobe Stock

Ordenhando o planeta

Com os arrotos e os rejeitos das vacas, as emissões de metano e de óxido nitroso bateram recorde em 2020. Segundo um estudo do Institute for Agriculture and Trade Policy (IATP), chamado “Ordenhando o planeta”, as 13 maiores corporações lácteas do mundo emitiram tantos gases e substâncias contaminantes como a petroleira multinacional Conoco Phillips, que está entre as 25 maiores do planeta. 

A indústria láctea sabe que tem um problema estratégico. Porque as emissões seguem aumentando, na contramão do estabelecido pelo Acordo de Paris, de 2015, que busca zerar as emissões até 2050. 

As emissões desse setor aumentaram 11% no último registro disponível, e o número atual é seguramente maior, porque os dados são de 2017.

O logotipo da Danone é acompanhado do slogan “Um planeta, uma saúde”. Diz ser una companhia que se propõe a diminuir a pegada ambiental, mas, se olhamos a seu discurso com atenção, não se fala das emissões totais da empresa, mas de baixar a intensidade das emissões, ou seja, da quantidade de gases que se desprendem à atmosfera por quilo de leite produzido. Pode ser um truque de contabilidade, porque, ainda que baixando a intensidade de emissão por vaca, o aumento da produção fará com que o total nunca chegue a zero. 

Em sistemas menores, aqueles nos quais as vacas estão integradas a processos de rotação de pastagem que permitem o sequestro e o armazenamento de carbono nos solos, é possível uma pecuária mais correta. Mas, claro, essa atividade leiteira jamais poderia sustentar recomendações de três lácteos ao dia para toda a humanidade.

Socialwashing. Ou o marketing disfarçado de filantropia. Versão Covid

Social washing. Ou o marketing disfarçado de filantropia. Versão Covid

por Tatiana Merlino Brasil

Como a pandemia abrevia o caminho para que corporações da área de alimentos se apropriem de pautas antiopressão e se aproximem de movimentos sociais. Da comunidade LGBTQI+ a movimentos de periferia, passando por sustentabilidade e machismo, um guia de como um dos piores episódios da humanidade se transforma em oportunidade de lucro e publicidade

Publicado em 8 setembro 2020

14 de junho de 2020, avenida Paulista, região central de São Paulo. Durante três horas, uma projeção de luzes nas cores do arco-íris ilumina a avenida mais famosa da cidade. A instalação, feita a partir de um dos seus prédios, teve visibilidade de até 60 quilômetros de distância, garantiram os organizadores da iniciativa. 

O show de luzes fez parte da comemoração da Parada do Orgulho LGBT, que este ano foi toda feita online por conta da pandemia. Mas tem mais: foi parte de uma campanha da marca de salgadinhos Doritos Rainbow, da empresa de produtos alimentícios PepsiCo.

A corporação também anunciou uma doação de R$ 1 milhão (em torno de US$ 200 mil) para entidades que apoiam a causa LGBTQI+. Lançados pela primeira vez em 2017, a embalagem e os salgadinhos Doritos Rainbow levam as cores do arco-íris, em referência à pauta LGBT. 

Este ano, a empresa de produtos ultraprocessados também lançou a campanha #1Kiss1Donation, criada especialmente para o contexto da pandemia. Uma plataforma foi desenvolvida para que pessoas enviem um “beijo virtual”, com o objetivo de “criar uma corrente de amor”. A cada beijo virtual enviado, a Doritos doou R$ 1 a instituições LGBT+, até atingir mais R$ 1 milhão. Para a iniciativa, contratou as cantoras Pablo Vittar, Ludmilla e Luiza Sonza.

A campanha também ocorreu no México, com uma doação de 1 milhão de pesos. 

“O objetivo maior é manter o compromisso em apoiar a comunidade LGBT+ e promover a igualdade, o respeito e o apoio à diversidade, missão que Doritos, marca da PepsiCo, vem fazendo no Brasil desde 2017”, diz o material de divulgação da campanha. Durante a pandemia, a Doritos Rainbow ainda fez uma parceria com a Rede Filantropia para capacitação de associações e projetos relacionados à comunidade LGBTQI+.

Reprodução

Social washing

Assim como a Pepsico, dezenas de corporações da indústria de produtos alimentícios estão aproveitando o período da pandemia para se aproximar de movimentos sociais, de periferia e de pautas antiopressão. Um dos problemas é que muitas são fabricantes de ultraprocessados marcados pelo excesso de sal, açúcar e gorduras que, por sua vez, estão ligados a doenças crônicas (diabetes, hipertensão, câncer) que agravam os casos de Covid-19. Outra questão é que muitas das empresas têm histórico de desrespeito às leis trabalhistas. 

São doações, postagens nas redes sociais, campanhas online, lives, webinares, muitos deles incluindo figuras públicas e influenciadores. “Na nutrição, há o health washing, quando as empresas tentam dar uma cara de saudável para algum produto. O social washing também acontece. É a tentativa de mostrar que a empresa está incluindo nas suas pautas ações em relação à questão da superação, do enfrentamento racial, empoderamento feminino, questão LGBT”, afirma a nutricionista Camila Maranha, consultora da ACT Promoção da Saúde, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A estratégia de aproximação de movimentos de periferia e que debatem racismo não é nova. Quando a Coca-Cola revelou a lista de doações feitas ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos, havia uma série de aportes de pequenos valores a organizações locais. Associações de bairro, movimentos de luta contra o racismo, organizações de latinos. Justamente os grupos sociais que mais sofrem com doenças crônicas e que mais consomem refrigerantes e outras bebidas adoçadas. Um estudo recém-publicado calcula que, no país-sede da empresa, o grupo mais pobre da população toma 2,5 vezes mais refrigerantes que o grupo mais rico.  

Durante a pandemia, diz Maranha, o social washing se intensificou. “Há muitas empresas distribuindo seus fast foods e chocolates, doações para profissionais de saúde, caminhoneiros, e isso com divulgação nas redes sociais, na mídia.” Sem mencionar o Solidariedade S.A., quadro fixo que passou a ser exibido diariamente pelo Jornal Nacional, o maior telejornal do país, valorizando doações feitas por essas empresas, sempre de maneira acrítica e sem relativizar o montante doado frente ao faturamento da empresa. 

Para Maranha, o que se vê, “infelizmente, é que as empresas estão muito mais engajadas na promoção da imagem pública do que de fato em fazer ações concretas, na cadeia de produção desses alimentos, e alcançar esses objetivos, que seriam muito legítimos. Cada vez mais consumidores querem produtos de empresas que sejam limpas, sustentáveis, não discriminatórias”.

Da periferia ao centro

Em 18 de junho, o Carrefour realizou o lançamento do relatório de sustentabilidade de 2019. Em vez de um simples documento de PDF escondido em algum canto da página corporativa, a rede de supermercados optou por reunir o CEO e alguns dos principais diretores para uma transmissão online. Não estavam sozinhos: apresentaram agricultores-modelo e o coordenador de um projeto voltado a áreas de classe baixa. 

O representante de relações institucionais, Stephane Engelhart, disse que a empresa tem a missão de levar comida de qualidade a todos os brasileiros e que é a maior compradora de carne do Brasil – com ênfase na garantia de que a origem não é de fazendas desmatadoras. 

Em meio a preocupações dos consumidores sobre a qualidade e o rastro ambiental de legumes, frutas e verduras oferecidos nos supermercados, o Carrefour parecia querer se vacinar. Apresentou agricultores que moram próximos ao maior centro consumidor, a cidade de São Paulo, e que teceram juras de amor à empresa, em particular ao Atacadão, o braço de atacado, justamente onde é mais difícil encontrar alimentos frescos de qualidade. 

Roberto Mussnich, CEO do Atacadão, falou sobre o propósito de “levar produtos de qualidade a preços baixos para todo o país”. Disse, ainda: “Procuramos fornecedores locais e buscamos incentivar a indústria local para gerar emprego e sustentabilidade. Amor pelo negócio, pela causa e pela maneira de fazer.”

Quando o encontro completou uma hora, os diretores não esconderam a empolgação ao apresentar Edson Leite, chef de cozinha e idealizador do projeto Gastronomia Periférica. Além de atuar nas franjas da capital paulista, onde se multiplicam as lojas do Atacadão, o projeto trabalha sobre uma agenda sensível do setor: o desperdício de alimentos, além de oferecer formação em culinária e oferecer refeições. 

“Precisamos mostrar o universo periférico, que é gigantesco. É importante quando conseguimos ter esse espaço, fechar parcerias”, como a com o Carrefour. De acordo com ele, há um projeto de invisibilização da periferia, e o poder público não age para que isso seja diferente. “Sempre fizeram a gente acreditar que nossa comida, tudo nosso era ruim.”

O grupo de supermercados anunciou a doação de R$ 15 milhões em cestas básicas para ajudar famílias carentes diante da pandemia do novo coronavírus – boa parte garantida pelos fornecedores ou por doações de clientes. Enquanto bateu recorde de faturamento nas primeiras semanas da pandemia, a rede fez segredo sobre quantos funcionários se infectaram por Sars-Cov-2 no ambiente de trabalho.

Toda essa “preocupação” da rede supermercadista rendeu até uma reportagem num dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo, com o sugestivo título “Carrefour reduz impacto ambiental e apoia democratização da alimentação saudável”.

“Tais investidas estão sendo feitas claramente para se melhorar a imagem das marcas na sociedade, como se estivessem preocupadas com questões sociais”, avalia Ana Paula Bortoletto, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Mas na verdade elas representam uma grande contradição quando vamos ver o que de fato investem e comercializam em relação a produtos não saudáveis.”

Bortoletto também afirma que “o cruel é que essas marcas ampliam seus mercados junto a camadas mais vulneráveis e isso acaba aumentando o risco de desenvolvimento de doenças crônicas na população”.

Além da intensificação das ações virtuais, patrocínios de lives e estratégias com influenciadores, Bortoletto afirma que se aprofundou a pressão política dessas empresas para aprovação de leis. Isso se traduziu na recente aprovação da lei que flexibiliza a doação de alimentos, sancionada em 23 de junho (Lei 14.016/20), que pretende evitar o desperdício e incentivar a doação de alimentos e refeições. 

Embora pareça positiva diante do contexto, na prática facilita o aumento de doações de alimentos processados e ultraprocessados. “Ao se oferecer alimentação de baixa qualidade à população, está se aumentando o problema, e não ajudando.”

Maquiagem

A tentativa de manter uma boa imagem por meio de ações de responsabilidade social corporativa não é novidade. Nos anos 1980 e 1990, popularizou-se a expressão greenwashing, ou maquiagem verde, para se referir a empresas que destroem a natureza, mas vendem a tese da sustentabilidade em seus discursos. 

O movimento feminista cunhou a expressão maquiagem lilás, purple washing, para as empresas que se apropriam do discurso do empoderamento e diversidade em suas campanhas. “Chamamos assim quando as empresas adotam argumentos, as lutas do movimento feminista, para encobrir outros tipos de práticas. E aí a primeira coisa que a gente olha é como é o funcionamento da empresa, a relação de trabalho interna que eles têm”, afirma Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista. 

“Essas mesmas empresas que usam esse discurso enriquecem com base na exploração do trabalho feminino por meio da terceirização e no trabalho precário realizado pelas mulheres na condição de trabalhadoras por conta própria ou no trabalho a domicílio, no controle dos territórios e da água”, aponta a Marcha Mundial das Mulheres.

Orgulho que multiplica?

“Nada deve impedir o orgulho de ser quem somos, né? #SeuOrgulhoNinguémPara #TodoMundoÉBemVindo.” Dá para adivinhar de qual empresa é essa campanha? Chega a ser irônico, mas é a frase de uma campanha da Uber Eats para o mês do orgulho LGBTQIA+. Em parceria com o Burger King, a Uber Eats anunciou que de 22 a 28 de junho parte do lucro das vendas de dois combos seria doada para ONGs que apoiam a comunidade. 

Irônico porque, juntamente com outras empresas de aplicativos de entrega de alimentos, como Rappi e iFood, a UberEats se recusa a reconhecer os direitos trabalhistas dos entregadores. Mas todas vêm realizando uma série de iniciativas de suposta responsabilidade social, enquanto os trabalhadores em vários países organizam paralisações por melhores condições. Motoboys e ciclistas reivindicam mais segurança, taxas justas nos pagamento de corridas, alimentação durante a jornada e licença remunerada em casos de acidentes.

“Essa relação ambígua e tensa com o mercado marca o movimento desde sua origem. Há setores do movimento que criticam esse tipo de mercantilização e o esvaziamento da pauta”, diz  Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ativista de direitos humanos e diversidade sexual.

A Rappi também promoveu uma campanha no mês do orgulho LGBTQIA+. Em suas redes, anunciou que, até 30 de junho, na compra de qualquer produto Skol Beats em seu aplicativo, o usuário receberia uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo do movimento, para estender na sua janela. E que parte do faturamento da Rappi, 20%, seria doado à ONG Casa Chama, espaço coletivo de cuidados LGBTQIA+.

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Compromisso efetivo

A partir do início das paradas do orgulho LGBT na década de 1970 em várias cidades dos Estados Unidos e de todo o mundo, “empresas passaram a ter uma postura mais agressiva para ter visibilidade e colocar suas marcas [nos eventos]”, complementa Quinalha. “O problema é que elas somem durante o ano inteiro, e, mais que isso, fazem campanhas para ajudar em determinado momento e, quando passa, há episódios de LGBTfobia dentro das empresas, em relação a funcionários, prestadores, no caso da Uber, ou com terceiros, e a empresa não responde adequadamente e de forma rápida.”

Para Quinalha, essas empresas precisam ser cobradas por campanhas não só para destinarem parte do que estão lucrando, mas também para assumirem um compromisso efetivo. “Que tipo de política interna há para LGBTS, onde estão, em qual posição de liderança na empresa, tem possibilidade de inserção, tem pessoas trans trabalhando nas empresas? Elas [empresas] precisam se posicionar muito além de colocar um carro, pagar uma conta. Precisam se comprometer com uma mudança que é cultural e isso precisa começar dentro das empresas e perante a sociedade. Essa é uma maneira de buscar coerência que muitas vezes tem faltado para essas empresas que aparecem só no mês de junho.”

O professor da Unifesp também avalia que é preciso considerar outras pautas, pois “o movimento LGBT não é só uma agenda pela libertação sexual e pelo direito à identidade de gênero e livre orientação sexual. É um movimento que busca inclusão, acesso à educação, saúde, e renda, que toque em questões de desigualdade econômica, de relações de trabalho. Então, é muito problemático que empresas que precarizam trabalho, que não respeitam o meio ambiente, questões alimentares, apropriem-se disso. São pautas que estão cruzadas, a pauta LGBT não está descolada de todas essas agendas”.

Toddynho e Cheetos para comunidades vulneráveis

A PepsiCo aproveitou o amplo portfólio de marcas de ultraprocessados para se aproximar de diferentes bandeiras. A corporação é dona das linhas eQlibri, Quaker, Toddy, Toddynho, Ruffles, Doritos, Cheetos, Fandangos e Pepsi. Além da doação de produtos com excesso de sal e açúcar para governos e organizações da sociedade, apoiou um projeto de valorização da música brasileira.

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Em outra frente, a linha de salgadinhos eQlibri, que “traduz externamente a sua proposta de valorização e reconhecimento da força das mulheres”, doou mais de 1.200 cestas básicas de alimentos para famílias carentes chefiadas por mulheres e doou produtos para a Associação de Mulheres de Paraisópolis, uma das maiores comunidades pobres de São Paulo.

Já a Nestlé investiu forte na substituição do aleitamento materno. No México, a empresa se associou à FEMSA, fabricante da Coca-Cola, para fazer publicidade sugerindo a doação de fórmulas infantis, uma prática proibida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). 

No Brasil, a estratégia foi semelhante. A corporação chegou a anunciar a live “A vida não para”, direcionada a profissionais de saúde, para o lançamento da fórmula infantil para NAN Supreme. O evento teria a presença da cantora Maria Rita, o que, de novo, é proibido pela OMS por se tratar de uma estratégia publicitária. Organizações se reuniram nas redes sociais para um tuitaço com a hashtag #DesisteMariaRita. A artista decidiu não participar, mas a live foi realizada. 

A empresa também estreitou laços com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) num programa “para capacitar residentes” em um curso no qual projeta chegar a 1.700 profissionais. Os participantes foram selecionados de acordo com indicações de médicos e professores experientes. A corporação prometeu ainda uma residência em Boston, nos Estados Unidos, e pagar a anuidade dos profissionais na SBP.

Em carta enviada à SBP, a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar – IBFAN-Brasil criticou a parceria, afirmando que o único objetivo é beneficiar uma corporação em detrimento da proteção do aleitamento materno. “A estreita relação que se pretende estabelecer entre médicos em formação e a mencionada indústria, que lança no mercado produtos que serão alvo da prescrição desses profissionais aos seus futuros pacientes, não pode ser vista como ética.”

Ética. Uma palavra tão relevante quanto desgastada em tempos nos quais corporações se apropriam até mesmo de uma tragédia ímpar na história da humanidade. A pandemia acelerou o processo de captura de bandeiras legítimas da sociedade. Acelerará, também, a resistência por parte de movimentos e dos cidadãos? 

Leite de morte, leite de vida

Leite de morte, leite de vida

por Fabián Mauricio Martínez G Colômbia

Na Colômbia, a pandemia dificulta o aleitamento materno e separa recém-nascidos de suas mães. De outro lado, abre caminho a estratégias de promoção de fórmulas infantis. Rappi e Mead Johnson dão as mãos em um combo que ignora as recomendações médicas, as leis e as realidades locais

Publicado em 8 setembro 2020

Alguns dias após o nascimento, os exames de Covid-19 deram positivo para a mãe e a criança. O bebê nasceu às 10h27 do dia 14 de julho de 2020 no Hospital San José, no centro de Bogotá. Pesou 2.830 gramas e mediu 50 centímetros. Seus gritos, como anunciando ao planeta que tinha acabado de chegar, foram ouvidos na sala de parto antes que seus batimentos cardíacos, respiração e reflexos fossem medidos. Antes de cortarem seu cordão umbilical e que os braços se dobrassem sobre o peito. Cor da pele e tônus muscular mostraram que o bebê estava bem de saúde. No entanto, ele tinha Covid-19.

A mãe do bebê não apresentou nenhum sintoma (febre, tosse seca, cansaço, dor de cabeça), mas, pelo protocolo de saúde colombiano, ela e o filho foram testados. Ambos positivos, embora a mãe — 17 anos, magra, cabelo preto — não tivesse saído de casa nos últimos meses. A garota, que vamos chamar de Johana, manteve uma quarentena rigorosa, preocupada com sua gravidez. Mas o pai do garoto — 19 anos, alto, moreno — teve que sair de casa para percorrer a cidade vendendo sacos de lixo, flores, frutas ou o que quer que estivesse à mão. A situação de John Freddy não é única.

Na Colômbia, embora cerca de 11.000 casos positivos de coronavírus estejam sendo relatados diariamente, para centenas de cidadãos não é possível ficar em casa. Seus trabalhos são informais e devem ser feitos na rua, andando pela cidade, empurrando carrinhos com abacates, mangas ou bananas. Cerca de 15.000 pessoas já morreram no país por causa da pandemia. E só em Bogotá, os infectados estão se aproximando de 160.000. Este paradoxo é muito bem definido por John Freddy, o pai do bebê: “Ou o vírus nos mata ou morremos de fome, mas não podemos ficar em casa com os braços cruzados.” 

O bebê está na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), isolado da mãe. Johana, assintomática, espera em casa. Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomende que a mãe e a criança não sejam separadas, mesmo que ambos tenham Covid-19, esse isolamento é feito para garantir a saúde do bebê. Segundo o neonatologista Carlos Alberto Acosta, “sendo menor que 6 meses há um alto risco de deterioração clínica, para este caso de ordem respiratória por Covid. Então, não há outra maneira, a criança deve ser observada”. Além disso, deve-se ressaltar que o isolamento também é feito para quebrar a cadeia de contágio e exercer maior controle epidemiológico.  

Johana, a mãe, espera confinada por 14 dias antes de receber um novo teste. A equipe do hospital a visita para coletar o leite — que ela extrai — e levá-la à clínica onde está o bebê. Eles armazenam no banco de leite e a cada três horas tiram um pouco para alimentar a criança. “Pensei que tínhamos que comprar leite artificial por causa do vírus, mas os médicos insistiram que eu lhe desse leite materno.” 


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Coberto com uma roupa que lembra astronautas em missões espaciais, o neonatólogo Acosta examina o bebê três vezes ao dia. Cuida dele na Fundação Cardiovascular de Soacha, para onde a criança foi transferida por falta de vagas na UTI do Hospital São José. Verifica sinais respiratórios e cardíacos; mede a temperatura e liga para a jovem mãe para dizer como a luta de seu filho pequeno está indo contra o vírus que tem o mundo nas mãos. Até agora, a criança está ganhando. 

“A melhor coisa para o bebê é o leite materno”, diz Acosta. “Não há nada melhor para esta criança do que o leite de sua mãe”, ele continua, através de seu escafrandro, que também lembra a proteção que os bombeiros usavam em Chernobyl, após a explosão nuclear em 1986. De acordo com a Pesquisa Nacional de Situação Nutricional, o aleitamento materno exclusivo em bebês menores de seis meses de idade diminuiu para 36,1%, contra 42,8% em 2010. E de acordo com a página de Aleitamento Materno e Nutricional do Ministério da Saúde, “de cada 100 crianças nascidas na Colômbia, apenas 56 começam a amamentar na primeira hora de nascimento”.

O médico explica que os recém-nascidos têm um sistema imunológico fraco e a melhor substância para elevar a imunidade é o leite materno. “Mesmo que a mamãe tenha coronavírus?”, eu pergunto. “Não importa”, ele responde, “a única contraindicação ao leite materno é o HIV ou que a mãe decida não amamentar. Não há nada que beneficie seu bebê mais do que o leite materno porque fortalece seu sistema imunológico e é precisamente isso que você precisa para vencer o vírus.”

Em um relatório de 27 de maio de 2020, a OMS e a Unicef enfatizam que as mulheres devem continuar amamentando durante a pandemia, mesmo que tenham a suspeita ou confirmação de que estão infectadas. Os dados atuais, diz o relatório, indicam que é improvável que a Covid-19 possa ser transmitida através da amamentação ou do leite materno extraído de uma mulher com vírus. Os muitos benefícios do aleitamento materno superam em muito os riscos potenciais. Mas essa verdade anunciada por organizações internacionais é inquietante para empresas que se esforçam para promover leites de fórmula como alimento ideal para recém-nascidos.

María Eugenia Delgado, nutricionista e consultora internacional de aleitamento materno, tem travado uma luta contra as imposições, às quais seus pacientes são frequentemente submetidos, pela promoção publicitária de leites de fórmula. “O leite materno é um fluido vivo cujas células fornecem os macronutrientes necessários para o bebê, e eles também lhe dão a carga imunológica que os leites de jarra não têm”, diz a especialista – cabelo castanho e sorriso largo – e continua: “O fato de o leite materno estar vivo significa que ele tem células dinâmicas e mutáveis, ou seja, tem a capacidade de criar uma relação única e próxima com o bebê que está se alimentando.” 

No entanto, a consultora reconhece que, em alguns casos, o aleitamento materno é contraindicado. “Em nosso país, se a mãe for HIV positivo, a Empresa Promotora de Saúde deve fornecer a fórmula para o bebê. Ou se a mãe está em processo de quimioterapia, o leite materno não deve ser dado.” Por sua vez, ela explica que em certos casos médicos, atípicos e de baixa prevalência na população, o bebê nasce com erros inatos do metabolismo, como galactosemia e fenilcetonúria. “No caso do primeiro acontece que o bebê não tolera galactose, um monossacarídeo de leite materno, ou seja, seu corpo não tem enzima para metabolizá-lo e começa a ocorrer um acúmulo que pode causar insuficiência hepática ou alterações neurológicas. Nestes casos, nenhum leite materno pode ser dado.” 

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Negócio disfarçado

Federico García Lorca escreveu Yerma em 1934. Uma obra teatral de ambiente rural que expressa, em vários de seus diálogos, a poesia da sabedoria popular. No Ato III, a protagonista diz: “Imagino que as recém-paridas estão como iluminadas por dentro – e as crianças dormem horas e horas em cima delas ouvindo esse arroio de leite morno que lhes vai enchendo os peitos, para que mamem, para que brinquem, até não quererem mais.”

Quase cem anos depois, a cena mágica de García Lorca sobrevive, e a ciência soma certezas. 

Tedros Adhanom, diretor da OMS, disse que: “O aleitamento materno oferece aos bebês o melhor começo possível na vida porque o leite materno atua como a primeira vacina do bebê, já que protege contra doenças potencialmente fatais e oferece todo o alimento de que precisam para prosperar.” E essa potente vacina natural, um arroio de leite morno, mantém com vida o bebê de Johana e John Freddy. 

É por isso que é difícil aceitar que, neste momento de pandemia, as marcas promovam doações disfarçadas de filantropia, a fim de se favorecer economicamente em meio à emergência sanitária global. Essa situação foi denunciada pela Red PaPaz, uma organização sem fins lucrativos composta por pais colombianos que zelam pelo bem-estar integral das crianças. 

Imagino que as recém-paridas estão como iluminadas por dentro - e as crianças dormem horas e horas em cima delas ouvindo esse arroio de leite morno que lhes vai enchendo os peitos, para que mamem, para que brinquem, até não quererem mais.”

 

Em carta enviada ao Instituto Nacional de Vigilância de Medicamentos e Alimentos da Colômbia), a Red PaPaz denunciou uma promoção lançada pela Rappi Colombia, chamada “Sementes de Apego”, para apoiar um programa de mesmo nome da United Way Foundation. De acordo com a promoção, a corporação das entregas prometeu doar uma lata de 180g de Premium Enfagrow para a United Way Foundation para cada ordem completa dos produtos Enfagrow da Mead Johnson. As doações foram para as crianças mais vulneráveis do município de Tumaco, Nariño, no sul do país.  

Os produtos Enfagrow Premium, explica a carta enviada pela Red PaPaz, são fórmulas para crianças menores de dois anos, feitas a partir de leite de vaca integral com a adição de nutrientes declarados em seu rótulo nutricional. Por se tratar de um produto processado de origem animal com a adição de nutrientes, corresponde à definição de “alimento de fórmula para bebês”, segundo o artigo 2º do Decreto 1.397, de 1992. Um tipo de produto para o qual não pode haver publicidade por meio de doação; atividades de publicidade e promoção em nível público em geral; e entrega de amostras grátis às mães.

A proibição da lei colombiana é muito clara. E, apesar da clareza na denúncia, a resposta do órgão público “parece ser redigida pela Enfragrow”, diz Carolina Piñeros, representante legal da Red PaPaz. A posição oficial, assinada por Carlos Robles Cocuyame, diretor de Alimentos e Bebidas da INVIMA, conclui que: “O produto não corresponde a uma fórmula infantil ou a um alimento complementar do aleitamento materno” e que “A atividade realizada na plataforma não corresponde a um anúncio, mas a uma atividade promocional”. 

Para além das formas e da discussão sobre publicidade, o caso se agrava ao conhecer o contexto da população de Tumaco. 

Leite de morte, leite de vida

Lorena Muñoz, nutricionista, membro do Observatório de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade Nacional da Colômbia, conhece bem a situação de Tumaco porque trabalhou lá em 2019 na recuperação da memória alimentar do território. 

“A primeira coisa que devo salientar é que essas fórmulas, como as da promoção da Rappi Colômbia e da United Way, exigem água potável para preparação, bem como para esterilização das mamadeiras em que é dada”, diz Muñoz. 

Em Tumaco, segundo dados divulgados pelo censo de 2018, a cobertura de aquedutos atinge apenas 31,7% da população, e apenas 5,5% da população possui sistema de esgoto. Isso significa que naquela cidade, habitada por 212 mil pessoas, apenas 11 mil possuem serviços de coleta e transporte de águas residuais. “Isso torna a doença diarreica aguda muito alta, assim como a infecção respiratória aguda. Ambas as doenças são as principais causas de morte em crianças menores de 5 anos em Tumaco.” 

Se há sérios problemas de água potável, por que oferecer doações de leite artificial quando não há sequer garantia de acesso à água para prepará-los? “Se realmente quiséssemos ajudar, uma boa dieta para as mães teria que ser promovida”, reflete Muñoz, que conclui, “o que realmente está sendo feito através dessas doações é a ação política corporativa a fim de promover interesses econômicos corporativos no direito das crianças ao aleitamento materno e à alimentação adequada das crianças”.  

Tumaco | Foto: Adobe Stock y Colombia Reports

Jennifer Preciado tem 28 anos, é líder social e gerente em segurança alimentar e nutricional em Tumaco. Ela mora no Barrio Obrero, um subúrbio com sujeira e ruas de paralelepípedos, onde as crianças se divertem correndo com cães magros. Jennifer – pele castanha e cabelo preto – está grávida pela terceira vez, uma menina que nascerá em agosto. Seu primeiro filho tem onze anos e o segundo, cinco. “O primeiro eu dei leite materno até os dois anos de idade. O segundo, por razões de trabalho, eu não pude amamentá-lo. Tive que dar fórmula. Eu tive que ir trabalhar e fiquei longe de casa por vários dias.”

Deitado em uma cadeira, usa o leque para espantar o calor das três da tarde com a mão direita; com a esquerda, segura o celular. “Aqui não temos água potável. Você abre a torneira e a água desce turva, às vezes com cheiros. Temos que ferver. Com meu segundo filho eu tinha que fazer isso o tempo todo.” Preciosamente conta que seu segundo filho – aquele que tomou fórmula – ficou constipado, sofreu com febres e cólicas durante os primeiros meses de vida, o que não aconteceu com seu primeiro, a quem amamentou. “Meu primogênito está em ótima saúde, mas meu segundo filho adoece muitas vezes.”

A revista britânica The Lancet, uma das mais prestigiadas do mundo, em sua edição de fevereiro de 2016, sobre aleitamento materno, oferece um estudo abrangente sobre os benefícios. Diz, entre outras coisas: “Crianças amamentadas por períodos mais longos têm menor morbidade e mortalidade infecciosa (…) e inteligência superior às que são amamentadas por períodos mais curtos ou não são amamentadas. Essa desigualdade persiste ao longo da vida. Há evidências crescentes de que o aleitamento materno pode proteger contra o excesso de peso e diabetes no futuro.” Benefícios e desvantagens que se tornam evidentes nos filhos de Jennifer Preciado.

É por isso que ela tem muito claro que sua filha será amamentada exclusivamente por pelo menos seis meses. É uma escolha que ela faz a partir de seu conhecimento como gerente em segurança alimentar e nutricional, mas também usando o conhecimento ancestral da área. “Veja, aqui em Tumaco a melhor dieta que uma mãe pode fazer para produzir um bom leite é tomar como base a água de panela [uma infusão]. Você tem que tomar várias vezes por dia, almoçar com um bom frango e jantar com peixe fresco, além de comer boas frutas e legumes durante o dia”, diz a mulher, com dentes brancos e alegria transbordante. 

Mas nem todas as mulheres têm a mesma disposição da Jennifer. Além das contraindicações médicas descritas, há outro fator que afeta o aleitamento materno. Lorena Muñoz, nutricionista, explica assim: “O desejo de amamentar é algo a se considerar. Nem todas as mulheres querem fazer isso e é respeitável. Há mulheres que simplesmente não estão interessadas em amamentar seus filhos. Nesse caso, devemos encontrar a fórmula que melhor se adapte ao bebê e respeite a retirada da mãe. No entanto, não é muito comum. O aleitamento materno hoje é uma tendência na maioria das mulheres.” 

Na costa do Pacífico da Colômbia, Jennifer planeja um futuro de peito e saúde para sua filha. Em Bogotá, o bebê de Johana e John Freddy já venceu a Covid-19 após 14 dias de uma odisseia para garantir a amamentação. O bebê nascido em 14 de julho agora conhece sua mãe. Crescendo e colado no peito. 

 

Um presente envenenado

Um presente envenenado

por Milo Milfort Haiti
Publicado em 7 setembro 2020

Se tivéssemos de escolher um único exemplo de por que as doações são um bom negócio apenas para as corporações e as ONGs que as representam, esse exemplo seria o Haiti. Quando os haitianos ainda removiam escombros, buscando centenas de milhares de mortos depois do terremoto de 2010, a multinacional Monsanto tentava entrar no país com 475 toneladas de sementes transgênicas disfarçadas de doação. Deparou-se com um país faminto, mas um campesinato que leva a resistência no sangue e que jamais se colocaria de joelhos

Janeiro de 2010. Um poderoso terremoto de magnitude 7,3 na escala Richter golpeia severamente o Haiti. Mais de 200 mil pessoas morrem e 1,5 milhão ficam desalojadas. Centenas de milhares de construções vão abaixo em 35 segundos. Há danos severos, sobretudo no Oeste, na zona da capital Porto Príncipe, onde vive um terço da população.

A essa catástrofe se seguiu outra: a investida de centenas de organizações não governamentais (ONGs), organismos humanitários e multinacionais. Estima-se que foram quase 10 mil organizações, que durante algum tempo substituíram o Estado, preso sob os escombros. A ajuda internacional se canalizou por essas organizações, criando atritos entre o poder público e as comunidades. 

Quando começaram a se esgotar os fundos e a ajuda internacional, em 2013 e 2014, as ONG e os organismos humanitários começaram a deixar o país. Não deixaram nada duradouro. Problemas e dificuldades persistem. Um fracasso registrado no documentário Assistance Mortelle, do cineasta hatiaiano Raoul Peck.

Nesse contexto, na primavera de 2010, através de um projeto da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), a companhia agroalimentar Monsanto fez uma doação de 475 toneladas de sementes de milho e legumes sob o argumento de “apoiar o esforço de reconstrução”. 

As sementes da corporação, principal produtora de transgênicos e uma das maiores de pesticidas, chegaram à ilha e não foram bem recebidas. Os camponeses haitianos, ainda em meio ao colapso, recusaram a “doação”. 

Mas o projeto Watershed Initiative for National Natural Environmental Resources (Winner, ou vencedor, em inglês) continuou. Com um plano de cinco anos e 126 milhões de dólares, dizia buscar “reduzir a pobreza mediante o crescimento agrícola”. Foi dirigido pela Chemonics International, um gigante que executa os planos da Usaid, com mais de 5.000 empregados em cem países. Como gerente, um homem conhecido no país: Jean Robert Estimé, antigo ministro de Relações Exteriores da ditadura de Jean-Claude Duvalier, que, além de tudo, já havia trabalhado para a corporação na África. 

Com alarde, o Winner prometia melhorar as condições de vida das populações e investir no crescimento econômico, regalando fertilizantes e sementes de milho amarelo, além de sorgo, arroz, melão, espinafre, brócolis, berinjela, cebola, melancia para cobrir milhares de hectares. O programa foi executado entre 2010 e 2015. Segundo os informes da própria ONG, ajudou “1.500 camponeses” com “técnicas inovadoras”. O balanço oficial da Usaid diz que “os agricultores haitianos experimentaram aumentos dramáticos na produtividade dos cultivos este ano graças a seu programa inovador dirigido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional”, ou seja, por eles mesmos. 

O certo é que o Winner nunca prestou contas de forma transparente, nem concedeu nenhuma entrevista à imprensa. Porém, o programa serviu para a entrada – a conta-gotas, mas entrada – das sementes que os camponeses não queriam. O projeto garante que eram “híbridas”, mas muitos temem que tenham sido sementes geneticamente modificadas. Um combo que não conseguiu alterar os índices de segurança alimentar, que, inclusive, estão piores. 

O Haiti já foi outro país

O Haiti é hoje o país mais pobre das Américas, mas também foi a primeira república negra livre e independente do continente. Um país que se rebelou ao colonialismo francês até colocá-lo de joelhos, em 1803. Um país que sofreu uma longa lista de terremotos, furacões e grandes incêndios. 

A ilha foi povoada por negros trazidos em barcos. Aqueles que conseguiram resistir à opressão usando as línguas creole e vudu. Em 1915, souberam resistir à ocupação pelos Estados Unidos. E um grupo valioso repetiu o feito em 2010, quando a Monsanto prometeu o paraíso. Os haitianos resistem desde sempre, e por vezes triunfam. Um exemplo é o beisebol: apesar das muitas tentativas, nunca conseguiram fazer com que a população simpatize com esse esporte. Parece um detalhe, mas é uma marca de resistência. 

O Haiti é, também, um país que arrasta mais de 30 anos em crise social, política e econômica. Devastado pela pobreza: 8 de cada 10 habitantes não podem satisfazer suas necessidades básicas, têm a renda per capita mais baixa de todo o Ocidente e ocupam os piores postos mundiais quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (145 de 177). Assolado também pela corrupção, na 168ª posição entre 180 países analisados pela Transparência Internacional em 2019. A inflação ficou em 23,4% apenas em maio de 2020. Somam-se a tudo isso instabilidade política, manifestações violentas, guerras de grupos armados, golpes de Estado e uma lista de dramas sem fim. 

Os governos das últimas três décadas não conseguiram levar o país ao tão sonhado desenvolvimento – ou nem tentaram – e a comunidade internacional assistiu muda aos acontecimentos ou foi partícipe deles. Muitas vezes, os governos de outros países facilitaram a tomada do poder, interferiram de forma recorrente e estimularam a precariedade política.

O Haiti é hoje um país no qual a miséria aumenta a cada dia. O desespero se vê nos rostos. A comida se converte em luxo. E os jovens se vão, em massa, a outros lugares – entre 10% e 12% vivem fora do país. É, também, um país no qual os agricultores estão vendendo sua porção de terra para comprar uma passagem para trabalhar na terra em outros países da América Latina. 

Mas, até há não muito tempo, era um outro país. Alimentos como o tamarindo e a “árvore verdadeira”, que dá a fruta-pão, boa para sucos ou para comer cozida, eram usados para alimentar animais, como os porcos. Os camponeses produziam em quantidade e a fome não os incomodava. 

“Costumávamos cultivar milho e algodão. Vendemos algodão a grandes comerciantes. Isso nos fez ganhar dinheiro”, recorda Franck Chérilus, de 68 anos, pai de 5 filhos. “Eu não sabia comercializar. Comprei grãos, moí e vendi. Foi uma realidade que não durou muito com (François) Duvalier. Com o canal de irrigação que instalou, as plantas começaram a desaparecer.”

Chérilus tem o cabelo grisalho. Veste uma camiseta azul e calça jeans. Em Molette, uma localidade a 88 quilômetros da capital, onde ainda trabalha a terra, recorda dos alimentos que já não existem. Fala da pita, que o Haiti exportava em grandes quantidades. Das enormes plantações de cana-de-açúcar. Dos tomates para as fábricas que desapareceram. 

Nas ruas, os haitianos consumiam alimentos feitos com itens locais, como o Acasan, um purê de milho, e a Cassave, um pão de mandioca, entre muitas outras preparações de milho, milho miúdo e tubérculos. Os hábitos alimentares começaram a mudar há três décadas, com a introdução do frango e das bebidas açucaradas. As pessoas costumavam tomar suco de frutas locais e comer frangos criados aqui, mas faz pelo menos três décadas que passaram a comprar ultraprocessados importados e frangos industriais criados na República Dominicana.

Tudo começou a mudar nos anos 1980. Políticas de ajuste estrutural, diminuição de tarifas de importação e falta de investimento na agricultura local foram os principais fatores de desmoronamento. O Haiti deixou de ter porcos convencionais porque deixaram de ser criados sob o pretexto de que tinham doenças. Foi uma estratégia para introduzir porcos trazidos dos Estados Unidos. Também se trouxe o arroz, que antes era comido em apenas algumas ocasiões. E, agora, todos os grãos que chegam ao prato são importados. Arroz, milho ou feijões, como parte de um gosto criado. 

O suíço Jean Ziegler, primeiro relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Alimentação (2000-2008), lista no livro Destruição em massa vários e vários casos nos quais a imposição de um mercado global de alimentos teve efeitos devastadores em pequenos países. 

O Haiti passou por planos de ajuste do Fundo Monetário Internacional (FMI) que o obrigaram a praticamente zerar as tarifas de importação. “Entre 1985 e 2004, as importações haitianas de arroz — essencialmente norte-americano, cuja produção é largamente subsidiada pelo governo — saltaram de quinze mil para 350 mil toneladas por ano. Simultaneamente, a produção local de arroz desabou: caiu de 124 mil para 73 mil toneladas. Desde inícios dos anos 2000, o governo haitiano teve de gastar um pouco mais de 80% de seus escassos recursos para pagar suas importações de alimentos. E a destruição da rizicultura provocou um êxodo rural em massa.” 

Franck Chérilus diz que antes “não tínhamos problemas para comer. Sabíamos como criar gado. Não havia carne importada. Depois da colheita, soltávamos vacas nos jardins e sabíamos tirar leite. Nos domingos, comíamos frango caipira. Mas a agricultura perdeu importância para os chefes de Estado, que veem nossa salvação nas importações: no lugar de fomentar o cultivo de arroz, preferem abrir o ventre do país para aceitar o arroz importado”.

Port-au-Prince. Foto: Marco Dormino / ONU

Um presente envenenado

É meio-dia. Depois de viajar três horas em automóvel e uns quinze minutos em moto, estamos em Papaye, uma área da cidade de Hinche, no Platô Central. Nessa região, o desmatamento é duro, a seca é selvagem, as estradas estão em mal estado e a agricultura definha. Nos últimos dois anos, as plantações têm sido devastadas por colônias de lagartas. Os camponeses se queixam e denunciam que as autoridades não fazem nada para conter o fenómeno. 

Papaye é um lugar calmo, no qual tudo funciona como se não existisse uma pandemia. As pessoas, inclusive, acreditam que a Covid-19 nunca chegará. Não se respeita o uso obrigatório de máscaras, nem o distanciamento, nem as restrições de funcionamento. 

Além de haver sido uma região fundamental na resistência à ocupação estadunidense, em anos mais recentes essa área se tornou sede de uma influente organização camponesa, o Mouvement Paysan Papaye (MPP), grupo que tem como objetivo unir todos os trabalhadores rurais haitianos e, sobretudo, os jovens. 

Chavannes Jean Baptiste, coordenador do MPP, veste una camisa de estilo camponês e nos recebe perto de sua casa, numa granja que tem uma área de treinamento para os membros do movimento e dormitórios. O líder fala entre as árvores, tendo ao fundo o som de pássaros cantando. São pássaros locais, o ar é frio, o lugar é muito agradável. 

Passados dez anos da chegada da Monsanto, Baptiste recorda o que aconteceu. Conta que conseguiu um saco de fertilizantes em Croix-Des-Bouquets para ter provas, para saber com certeza que doariam. 

“Era um complô mundial. Era um sinal de solidariedade e uma maneira de criar empregos, mas, enquanto alguns foram golpeados pela catástrofe, outros viram uma oportunidade para mover suas próprias peças. Foi o caso da Monsanto, uma multinacional do agronegócio que domina o mundo, sobretudo com suas produções de sementes híbridas ou geneticamente modificadas e herbicidas extremamente perigosos.”

Em 4 de junho de 2010, 20 mil pessoas de todo o país se reuniram em Papaye. Marcharam até a praça principal, que se chama Charlemagne Péralte em homenagem a um revolucionário que combateu contra a ocupação dos Estados Unidos. “Nos manifestamos contra um presente envenenado. Era uma mobilização enorme. Era um êxito louco. Ao final da marcha, queimamos sementes da Monsanto.”

Ele relata que havia certeza de que as sementes modificariam a agricultura local. “Quisemos mostrar ao mundo inteiro que, mesmo que tenhamos sido vítimas de um terremoto devastador, não aceitamos que multinacionais venenosas se aproveitem de nossa desgraça para afundar-nos ainda mais. Se querem nos ajudar, não precisamos desse tipo de ajuda.”

Era uma atmosfera festiva, de carnaval, ao ritmo de bandas de rara, que são grupos tradicionais compostos por tambores, trombetas feitas de cana e instrumentos nativos. Apesar do sol, do calor, as pessoas dançavam. Lançavam gritos de guerra hostis à Monsanto e ao governo. Os camponeses estavam muito irritados com a multinacional, e exigiam que as autoridades freassem a distribuição de sementes. Carregavam cartazes, placas e retórica anti-Monsanto. 

A briga não acabou por aí. O MPP levou o caso a organismos internacionais. Baptiste viajou aos Estados Unidos, onde apresentaram uma ação contra a Monsanto ante o Departamento de Agricultura, o Congresso e a Organização das Nações Unidas. 

A “doação” da Monsanto abriu um debate no Haiti. Numerosas discussões se deram em torno da verdadeira intenção com as sementes. Em entrevista a Bocado, Joanas Gué, ex-ministro da Agricultura durante o governo de René Preval (2006-2011), pondera que “o setor camponês tem razão em ter inquietudes. Por quê? Porque no sistema de produção que temos no Haiti haverá problemas. No caso do milho, que é uma planta de polinização cruzada, haverá problemas se introduzimos uma semente da qual o camponês não pode ter controle”.

Além disso, “ao entrar nessa dinâmica [da Monsanto], terão que comprar sementes a cada ano das grandes filiais das multinacionais. Sementes híbridas e transgênicas”. Passada uma década, o debate persiste. As autoridades haitianas e a Usaid insistem que se trata de sementes híbridas – cruzamentos naturais selecionados em laboratório –, enquanto os críticos insistem que são transgênicas. No meio do caminho, uma parte da população segue confundindo os dois conceitos. 

 

País de camponeses

Justimé Octave tem 50 anos e é pai de 8 filhos. Ele mora em Bassin Zim, no Departamento do Centro, na cidade de Terrier, perto de uma cachoeira muito visitada nas férias. Ele parece mais velho que sua idade, mas transmite a energia de um jovem. Claramente, tem um bom relacionamento com pessoas da comunidade. Ele é um membro fervoroso do MPP e um camponês que está envolvido na agricultura desde a infância.  

Já são 38 anos semeando, cuidando, colhendo. Ele conhece a agricultura e, pelo seu conhecimento, nos diz: “A semente híbrida, quando cultivada, produzirá rendimento, mas não pode ser reutilizada. Então, você sempre será obrigado a comprar indefinidamente. A semente coletada pode ser reutilizada, comida ou vendida.” 

Essas são as razões pelas quais se juntou aos protestos e à resistência contra a famosa “doação”: “Pudemos ver que perderíamos toda a nossa produção nacional. Estávamos dizendo um ao outro que se deixássemos a Monsanto entrar em nosso país, estaríamos na merda. Nossa miséria cresceria. É por isso que protestamos contra eles.”

O Haiti é considerado um país essencialmente agrícola. Segundo a FAO, 70% da população haitiana é economicamente dependente da agricultura. Portanto, a questão da semente está no centro do debate.

Os agricultores haitianos têm uma relação tradicional de cuidado com as sementes. Uma parte para consumo, outra destinada à venda e o restante é economizado para semear na próxima temporada: este é o ciclo de plantio. A colheita de um ano dará a semente para o próximo, sejam eles próprios ou vizinhos, porque os camponeses trocam sementes. Portanto, a entrada da Monsanto significaria perder uma dinâmica social e cultural com milhares de anos de história.  

Como em muitas partes da região, os agricultores são párias na sociedade: têm poucas ferramentas, o que gera baixos níveis de produção, e o Estado não investe no campo e os bancos não oferecem empréstimos. Mal se tem machado, facão, enxadas. Muitas vezes são as mesmas ferramentas sendo reaproveitadas desde os tempos da Colônia. 

Enfrentam problemas como erosão, baixo acesso aos meios de produção e dependência de chuvas. Eles também são frequentemente vítimas de riscos ambientais aos quais não estão protegidos. 

Suas fazendas são pequenas. Os agricultores têm dificuldade em aproveitar sua atividade de subsistência e o pequeno excedente que recebem é investido na educação de seus filhos. 

Este estado de opressão no passado, juntamente com as políticas de importação de alimentos, significa que os camponeses não podem trabalhar como sabem que são capazes. Justamente essa depreciação é usada como pretexto para a entrada do projeto estrangeiro que, longe de chegar à agricultura local, era um outro experimento estrangeiro de laboratório. 

A multinacional Monsanto conseguiu inserir sementes usando o programa Winner, embora não em grande escala, como pretendiam. Enquanto isso, a agricultura haitiana continua a despencar e a insegurança alimentar está piorando a cada dia. Muitas ONGs que haviam se estabelecido em 2010 foram aposentadas algum tempo depois. Mas agora, com a pandemia de Covid-19, encontram outra oportunidade de fazer “doações” que acabam sendo bons negócios para eles, enquanto, para o Haiti, deixam apenas dependência.