JBS, uma história de corrupção, desmatamento e exploração.

Por: Redação Bocado

A história da JBS é um reflexo da história do Brasil no século 21: nos primeiros anos, a empresa, no ramo da carne, e o país cresceram. Os irmãos Joesley e Wesley Batista apareceram nas páginas dos jornais como símbolos de uma era de expansão econômica em que as empresas brasileiras se preparavam para figurar entre as maiores do mundo. Mas quando o país viu o sonho da prosperidade acabar, a JBS deixou de estar apenas nas boas notícias econômicas: casos policiais, escândalos de corrupção e desmatamento passaram a conviver com os bons resultados financeiros, que fazem da empresa uma das maiores  do mundo em processamento de carne. Hoje, não há mês que passe sem uma notícia negativa sobre a JBS. A seguir, listamos a Santíssima Trindade que acompanha a família Batista.

1. Exploração

Vamos perguntar aos irmãos Wesley e Joesley Batista como se consegue passar, em mais de 65 anos, de processar 5 vacas por dia para 23.000 em apenas um dos seus frigoríficos. A resposta não seria difícil: terra e trabalho. A conta que não fecha é o tratamento que recebem esses 240 mil colaboradores (como são chamados dentro da JBS).

Vestidos de branco manchado de sangue e fechados em ambientes onde o oxigênio não entra facilmente, os trabalhadores são frequentemente alterados, devido à baixa tolerância do corpo ao clima do processamento. Eles são expostos a temperaturas congelantes que prejudicam seus tendões e geralmente acabam causando queimaduras ou danos permanentes.

A JBS possui uma técnica magistral para garantir a eficiência de seus colaboradores. Em ordem, cada funcionário da processadora é chamado para colocar suas mãos em uma água cheia de gelo. Segundo a empresa, esse é um método de cuidado dos seus trabalhadores, que ajuda a diminuir a inflamação dos tendões, mas é óbvio que é apenas uma estratégia para garantir um maior tempo de trabalho.

Um dos casos mais conhecidos é o de Itamar Bedin, técnico em eletromecânica de 45 anos que, ao ir consertar um hidrômetro caído na sede da JBS em São José, em Santa Catarina, ficou preso entre o helicoide que transporta as galinhas e a parede do equipamento. Apesar dos esforços de seus colegas de trabalho para ajudá-lo, morreu asfixiado.

Um caso semelhante ocorreu no país vizinho ao Brasil, a Argentina. Em outubro de 2009, um trabalhador da seção de manutenção de uma das fábricas caiu de oito metros de altura durante o conserto de uma lâmpada, o que o deixou com uma deficiência que requer cuidados permanentes. A JBS teve que pagar uma soma milionária como compensação, mas nunca poderá devolver ao trabalhador a vida que ele tinha.

Os casos registrados de brucelose também geraram comoção. A bactéria, que tende a atacar os órgãos reprodutivos de animais e humanos, não seria transmitida tão facilmente se a vacina fosse aplicada sem problemas. No entanto, o processo de vacinação tem um custo e, se ninguém controla isso, esse custo não é pago.

A JBS reluta em fazer os exames depois que um trabalhador deixa o cargo. A questão é por que, e a resposta parece clara: quem chega de uma maneira, sai de outra.
A condenação que a processadora recebeu em agosto de 2014 foi escandalosa. Não só os “colaboradores” da JBS são alvo dos maus-tratos citados, mas há até dificuldades na hora de comer. A irregularidade neste caso surgiu quando se detectou que certas carnes que davam aos seus trabalhadores estavam contaminadas com larvas de moscas. O estado da carne parece ter pouca importância para o frigorífico.

Além das histórias, há também dados estatísticos. Entre julho de 2018 e março de 2020, os frigoríficos da JBS emitiram 4.677 comunicações de acidentes de trabalho em 32 cidades brasileiras. Dedos, mãos, pés cobertos de hematomas, queimaduras, lacerações e escoriações. Sete dessas comunicações correspondiam ao pior cenário possível: mortes.

Se pegarmos a calculadora, teremos algo assustador: sete acidentes de trabalho por dia. E só no Brasil.

2. Corrupção

Sem dúvida, os resultados que a JBS consegue não são alcançados de forma isolada. É preciso poder para ter o status desta empresa, e quem melhor do que o presidente do Brasil para colaborar? Qual é a trajetória de um empresário que foi chamado pelo ex-presidente Michel Temer de “o bandido notório de maior sucesso na história brasileira”?

Embora tenha havido um enorme estímulo do Estado brasileiro para estabelecer competidores poderosos no comércio exterior (desde a década de 1990 e intensificado durante o governo Lula), nem tudo foi feito por cima da mesa. Os irmãos Batista admitiram, ao assinar um acordo de delação premiada, terem pago propina para 1.900 políticos em uma década.
A Operação Carne Fraca vai ficar para sempre na ficha da JBS. Já mencionamos que a empresa dava carne com larvas aos seus funcionários. E o que ela fazia em pequena escala também fazia em grande escala.

O silêncio tem um preço. Para manter essas atividades, a empresa pagou propina ao partido Movimento Democrático Brasileiro, do ex-presidente.
Parece que eles estavam entre a cruz e a espada. Tiveram que delatar Temer para, mesmo que admitindo a culpa, pudessem reduzir a sentença. Com um gravador oculto, Joesley Batista teve uma conversa de aproximadamente 40 minutos com Temer na qual registrou como lhe foi dado suposto aval para subornar o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Temer teria se tornado o primeiro presidente brasileiro a ser julgado no exercício de seu mandato, não fosse o auxílio do Congresso, que não autorizou seu julgamento.
Após a comprovação de que a JBS colocou em risco a vida dos consumidores, a empresa foi multada financeiramente. No entanto, o valor estava longe de ser um montante significativo, correspondia a 5,62% do faturamento do grupo em 2016, livre de impostos,a ser pago nos próximos 25 anos com correções pela inflação. Um número risível para uma empresa que, só em 2015, teve lucro de 4,64 bilhões de reais.
Depois do escândalo político em que se meteram, pode parecer que a coisa acabou. Mas tem mesmo? Wesley e Joesley foram presos algumas semanas depois pelo suposto uso de informações privilegiadas na bolsa de valores durante a turbulência criada pelo caso de corrupção. 

3. Desmatamento

No início deste texto, explicamos que para abater dezenas de milhares de vacas, a JBS precisava de mão de obra e território. Já entendemos como a JBS trata sua força de trabalho e não é de se estranhar que trate o seu solo da mesma forma.

Um dos métodos que a empresa utiliza é a triangulação de gado. Em termos simples, a triangulação é feita assim: os animais são criados em uma zona ilegal, eles são levados disfarçados para uma zona legal e de lá sai o carregamento.

Em meados de 2019, o primeiro elo em uma das triangulações foi descoberto. Após a extração ilegal de mais de 1.500 hectares em Mato Grosso, a área recebeu um embargo que proibia a criação de gado ali, que custou ao proprietário uma soma milionária.

Essa descoberta levou a uma investigação, com base na premissa de que quem faz alguma coisa uma vez ou já fez isso antes ou vai repetir a ação. Assim, foi obtido registros de que, entre junho de 2018 e agosto de 2019, cerca de 7.000 vacas foram transportadas com esta metodologia.

Entre 1993 e 2013, a pecuária cresceu exponencialmente, chegando a 60 milhões de cabeças de gado somente na Amazônia (uma expansão de cerca de 200%).

O mundo sabe que as políticas de proteção ambiental do atual presidente Jair Bolsonaro não são um exemplo. A queima da floresta tem sido alvo de duras críticas ao seu mandato, e sabe-se que 60% das áreas desmatadas são destinadas à pecuária. São queimadas que têm finalidade econômica. Um caso a ser citado é o exposto pela revista Science, da American Association for the Advancement of Science, que publicou que 17% da carne exportada para a União Européia vem do desmatamento ilegal da Amazônia.

Assim como mencionamos o caso da carne fraca anteriormente, houve uma operação com nome semelhante que também envolveu a JBS: Carne Fria, em 2017.

Eles não apenas violaram as políticas governamentais ao criar gado em áreas ligadas ao desmatamento, mas também violaram suas próprias políticas ao fazer o que prometeram não fazer.

Embora a multa tenha sido de 8 milhões de dólares, os supermercados europeus não pararam de vender os produtos obtidos com base no desmatamento no Brasil.
Mas parece que estão começando a reconhecer os danos ambientais. “Alimentar a mudança é o nosso compromisso” é o título de um comunicado da JBS há poucos dias. As promessas incluídas no texto incluem zerar o balanço das suas emissões de gases de efeito estufa. Será?

Bancos, carne e desmatamento

Para que na Espanha possam desfrutar de um bom churrasco, desmatam o Brasil. Porque a Europa, apesar de suas estritas regulamentações, consome milhares de toneladas de carne originada da destruição de pontos sensíveis do planeta (como a Amazônia).

E dentro desse negócio obscuro está um dos maiores bancos espanhóis, o Santander, que tem investimentos de pelo menos 1,17 bilhão de euros em três grandes empresas da indústria da carne: Marfrig, Minerva e JBS.

Sim, a mesma JBS que fez do Brasil um país com mais vacas do que pessoas e que espreme imigrantes sem documentos nos Estados Unidos.

Seguir o rastro do dinheiro é uma tarefa complexa. Entretanto, @s colegas de Carro de Combate conseguiram fazer uma investigação que você não pode perder.

Por que é tão importante falar disso agora? Porque a União Europeia e o Mercosul estão negociando um tratado de livre comércio que aumentaria as importações espanholas de carne brasileira em até 30%. Estão planejando mais vacas e mais destruição para continuar abastecendo mesas a partir de muita injustiça.

Dois textos que o Bocado recomenda que você devore.

O Tratado entre o Mercosul e a União Europeia, oportunidade histórica ou “acordo vampiro”?

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários

Nazaret Castro, com a colaboração de Amigos da Terra

Foi Susan George, a ativista de Attac (Associação pela Taxação das Transações financeiras e pela Ação Cidadã), quem popularizou a expressão “acordos vampiro”, se referindo a tratados de livre comércio que são negociados nas sombras porque, “se saírem à luz, morrem, já que raramente resistem ao debate democrático”. Algo assim ocorre com o tratado que poderia ser assinado entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), do qual participam atualmente o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado da União Europeia, entre os setores que mais serão beneficiados pelo acordo estão as empresas do setor automobilístico, a indústria química e os serviços mas, também o setor farmacêutico, agropecuário, energético, mineração e os bancos.

Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários e, em particular, os grandes frigoríficos brasileiros. “São os grandes produtores e exportadores que vão ser beneficiados, não os pequenos e médios produtores”, afirma Luciana Ghiotto, membro de TNI e Attac Argentina e coautora do livro O Acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Estudo integral de suas cláusulas e efeitos, que analisa criticamente as consequências que teria o tratado caso seja ratificado.

Ghiotto conclui que o acordo “congelaria as assimetrias comerciais entre ambos blocos econômicos, tornando mais difícil mudar o fato de que o Mercosul exporta fundamentalmente produtos de baixo valor agregado, como carne, soja ou suco de laranja”. Mas também haverá perdas para os pecuaristas do outro lado do Atlântico: o sindicato agrário COAG estimou as perdas para os agricultores espanhóis em 2.7 bilhões de euros por ano.

Empresas de carne brasileiras como JBS, Marfrig, BRF e Minerva se tornaram líderes do setor em nível global. Aqueles que exportam grandes quantidades de carne bovina, como JBS, poderão fazê-lo com tarifas muito mais baixas. Atualmente a chamada “cota Hilton” permite exportar do Brasil para a UE até 46 mil toneladas de carne bovina por ano com uma tarifa de 20%. Agora, esse volume não pagará mais tarifa, e será adicionada uma nova cota de 55 mil toneladas a uma taxa de 7,5%. Desse modo, essas empresas vão acumular lucros, apesar de investigações de organizações como Amigos da Terra, Greenpeace, Repórter Brasil, Anistia Internacional, Imazon e Mercy For Animals terem provado o vínculo dessas empresas com o desmatamento da floresta amazônica e de outros ecossistemas vulneráveis, como o Chaco e o Cerrado.

Essas empresas brasileiras são financiadas por entidades bancárias como o Banco Santander, que entre 2014 e 2019 foi a segunda instituição bancária europeia que mais financiou a JBS, Marfrig e Minerva, diretamente vinculadas com o desmatamento da floresta amazônica. A ratificação do acordo comercial UE-MERCOSUL pode representar o aumento do investimento em atividades de desmatamento por parte de instituições financeiras da União Europeia.

De acordo com Mute Schimpf, Responsável de Alimentação da Amigos da Terra Europa, “este acordo facilitaria as atividades dos bancos e investidores da UE no financiamento do desmatamento nos países do Mercosul, agravando a ameaça que enfrentam as florestas e terras dessas comunidades”.

Com este tratado, “o setor de carnes terá a oportunidade de aumentar suas exportações ou, ao menos, de melhorar a sua rentabilidade graças à redução de taxas”, concluem os analistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Algo parecido acontece com a produção de soja. Neste caso, as exportações de soja do Mercosul para a UE, que alcançaram 2.19 bilhões de dólares em 2019, já estão livres de taxa, mas as empresas agroexportadoras pagam retenções na Argentina. Tais taxas devem ser reduzidas a um máximo de 14%, o que implica uma perda de soberania na política econômica do país austral. Isso em um setor que é crítico para a economia do país e que tem sido fortemente contestado pelo uso intensivo de água, terra e agrotóxicos, com implicações severas para a saúde humana  e dos territórios.

Menos garantias para os consumidores

Também diminuirão, em caso da assinatura do acordo, os controles nas alfândegas, o que preocupa setores críticos na Europa, em alerta para o excessivo uso de agroquímicos nas monoculturas de soja, além de hormônios e antibióticos nas enormes granjas. O relatório “O verdadeiro custo do Tratado UE-Mercosul”, da Amigos da Terra, documenta que o Brasil usa 149 pesticidas proibidos na Europa. O documento afirma ainda que a diminuição dos controles de produtos importados dos países do Mercosul poderia expor os consumidores europeus à ractopamina, um hormônio de crescimento que está proibido em 160 países, incluídos todos os da UE, mas que é utilizado na Argentina e no Brasil. Por tudo isso, há temores de que, se o tratado avançar, haja um impacto que prejudique a saúde dos cidadãos e cidadãs europeias.

Essa diminuição dos controles alfandegários e o incentivo à importação de carne bovina do Mercosul pode fazer com que a Espanha aumente o volume de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil e comercializada nos supermercados espanhóis –muito difícil de rastrear pelas deficiências da legislação atual, principalmente no caso de carne processada. Entre 2014 e 2019, a Espanha importou 48.157 toneladas de carne bovina do Brasil, sendo, em 2019, o quarto país europeu em volume de importações de carne bovina de áreas afetadas pelo desmatamento no Brasil.

Aumentar as exportações de soja e carne implicaria, além disso, um aumento das emissões de gases de efeito estufa que aprofundam a mudança climática, não só devido ao desmatamento ligado à expansão do modelo do agronegócio, mas também pelo aumento do transporte em navios de carga. Segundo a comissão de pesquisadores independentes que avaliou o impacto do acordo, isso significaria o desmatamento de 700.000 hectares nos seis anos seguintes à assinatura do tratado, especialmente na Amazônia. A Espanha é atualmente o terceiro país europeu em pegada de carbono associada à importação de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil, segundo um estudo recente da Earthsight.  

O risco dos protocolos ‘ad hoc’

O acordo, forjado ao longo de duas décadas de negociações, a maior parte do tempo secretas, está hoje em fase de “revisão técnica e legal”, o que em inglês é conhecido como scrubbing. Nesta fase, explica Ghiotto, é habitual que sejam introduzidas reformas importantes no texto, com uma falta de transparência ainda maior do que no resto do processo. Em seguida, o texto deverá ser traduzido a todas as línguas da UE, para passar à ratificação pelo Conselho Europeu e por cada um dos países do Mercosul. No caso de ser aprovado pelo Conselho, passaria aos parlamentos nacionais, mas não o texto completo: a parte crítica do tratado, relativa à política comercial, pode entrar em vigor ainda sem ratificação nos parlamentos nacionais, como já aconteceu com o TLC assinado entre a UE e a Colômbia.

Do lado europeu, foi colocado sobre a mesa a preocupação pelas políticas de meio ambiente do presidente Jair Bolsonaro: durante seu primeiro ano no poder, o desmatamento cresceu 85% no Brasil. Um relatório recente encomendado pelo Comitê de Meio Ambiente do Parlamento Europeu põe em dúvida a capacidade do Brasil de cumprir com tratados internacionais como o de Paris, e admite que o tratado não contém disposições que garantam a proteção dos ecossistemas e dos direitos humanos, já que o recurso legal só é aplicável a violações das cláusulas comerciais. Atualmente a Comissão Europeia está trabalhando na redação de anexos que amenizem as preocupações ambientais e climáticas de alguns governos, como o da França e Alemanha.

O tratado UE-Mercosul, da mesma forma que a maioria dos regulamentos comerciais, é muito concreto sobre os aspectos econômicos, mas não regula adequadamente os impactos sociais e ambientais. Este acordo foi elogiado pela inclusão de pontos sobre sustentabilidade, apesar da sua redação imprecisa e não vinculante, o que faz que a sua efetividade dependa da boa vontade de cada país. “Se a UE e os países do Mercosul realmente têm disposição de enfrentar a mudança climática, o desmatamento e frear as violações aos Direitos Humanos, o lugar para fazer isso e conseguir resultados é, respectivamente, a Convenção Quadro sobre a Mudança Climática, o Convênio sobre a Diversidade Biológica e o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, que está sendo negociado atualmente na ONU. Não neste, nem em nenhum Tratado de Livre Comércio disfarçado como Acordo de Associação” afirma Alberto Villarreal, coordenador regional do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Amigos da Terra América Latina e Caribe.

Ainda é difícil prever se o texto, ao menos seu braço comercial, vai avançar. Se isso acontecer no hemisfério sul, vai encontrar também, previsivelmente, oposição na Argentina, talvez o país mais prejudicado pelo acordo na sua redação atual – em especial pelo impacto que terá na indústria automobilística e de autopeças e, portanto, no emprego. São também polêmicas as cláusulas que obrigariam os Estados, nas suas compras públicas e o setor de serviços, a tratar de igual para igual as empresas dos países membros, com consequências que poderiam ser fatais para as pequenas e microempresas locais. 

“O problema é que não há um plano B: não estão sendo discutidas alternativas de reconversão das pequenas e microempresas e trabalhadores locais que sofrerão diretamente seu impacto”, explica Ghiotto. Segundo declarações recentes do governo português, que assume em janeiro a presidência rotativa da União Europeia, a ratificação do tratado será uma prioridade do seu mandato. Entretanto, os parlamentos da Áustria, Bélgica, Irlanda e Países Baixos já se posicionaram contra a ratificação. No momento, o Estado espanhol se posicionou como um dos maiores promotores do acordo, talvez porque, como sugere o militante de Ecologistas em Ação Tom Kucharz, serão beneficiários do tratado “empresas do Ibex 35 com presença nos países do Mercosul, tais como Telefônica, Santander, BBVA, Iberdrola e Gas Natural Fenosa”. O fato é que o apoio do governo espanhol ignora graves impactos econômicos para o setor agrário e a ameaça para a segurança alimentar dos consumidores, assim como o previsível aumento da pegada ecológica.

Santander financia empresas brasileiras da indústria de carne ligadas a desmatamento da floresta amazônica

Banco espanhol concedeu ao menos 1,37 bi de dólares às gigantes Marfrig, JBS e Minerva entre 2013 e 2019. Foi o segundo maior financiador, atrás apenas do britânico HSBC

Por: Nazaret Castro, con la colaboración de Amigos de la Tierra

O Banco Santander está entre as entidades financeiras europeias apontadas como financiadoras de empresas brasileiras da indústria da carne diretamente ligadas ao desmatamento da floresta amazônica. Assim demonstram os dados coletados pela ONG Global Witness junto à holandesa Profundo e que foram disponibilizados pela Amigos da Terra. Em meados de 2020, uma investigação do The Guardian, o Bureau of Investigative Journalism e Repórter Brasil demonstrou que, entre 2013 e 2019, diferentes bancos instalados em território europeu financiaram com 12 bilhões de dólares empresas como JBS, Marfrig e Minerva, que concentram, segundo dados do Greenpeace, 70% do gado que é criado e abatido na Amazônia brasileira.

Segundo os dados obtidos, o Santander contratou pelo menos 1,37 bilhão de dólares com essas empresas entre 2013 e 2019, majoritariamente através da compra de títulos, que alcançaram 1,36 bilhão de dólares. Marfrig foi, com grande diferença, a maior beneficiária dos investimentos do banco espanhol, com 1,12 bilhão de dólares em títulos. É, além disso, a empresa com a qual o banco teve um relacionamento mais continuado ao longo do tempo e foram observados investimentos praticamente todos os anos desde 2013, com exceção de 2015. A segunda empresa que recebeu mais financiamento do Santander foi a JBS, com 200 milhões de dólares em títulos em 2013 e, finalmente, Minerva, com 40 milhões em 2014. O Santander também adquiriu ações nas três empresas, por um total de 8,7 milhões de dólares. Neste caso, foi a JBS a principal receptora com cerca de sete milhões de dólares.

O Santander foi, assim, o segundo banco com o maior financiamento para essas três empresas, só atrás do britânico HSBC. No ranking geral está situado em sexto lugar, atrás de quatro bancos brasileiros, além do já citado HSBC. Não obstante, os dados foram elaborados a partir de informações públicas e poderiam estar incompletos. Os bancos, frequentemente, compram títulos e ações em representação de clientes que investem através de seus fundos de investimento, afirma o Bureau of Investigative Journalism.

JBS, Marfrig e Minerva são as principais empresas do setor do mundo. Entre elas, a JBS é a líder mundial. Em 2012, abateu diariamente 85.000 cabeças de gado, 7.000 suínos e 12 milhões de aves, que comercializou em 150 países.

Nos últimos anos, diversas investigações revelaram o vínculo que existe entre a indústria pecuária e a aceleração no desmatamento da floresta amazônica. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil (INPE), nove de cada dez focos de incêndio em áreas destinadas ao agronegócio foram em solo destinado à criação de gado. E outra investigação do Instituto Imazon mostrou que, em 2019, 70% dos incêndios aconteceram em áreas de compra de empresas da indústria da carne. “O Amazonas está sendo leiloado para a produção de carne; há estados onde há mais vacas que pessoas”, aponta Soledad Barruti, jornalista especializada em alimentação. “Os incêndios são a ferramenta necessária para o avanço desse modelo, que vai acompanhado da violência e da expulsão dos povos indígenas, que são os principais preservadores da natureza e dos territórios”, comenta a jornalista argentina.

O desmatamento na Amazônia disparou este ano, com um aumento de 9,5%, a cifra mais alta dos últimos 12 anos, segundo o INPE. Esta tendência vem se agravando com o governo de Jair Bolsonaro, já que, em 2019, seu primeiro ano de governo, o desmatamento na Amazônia cresceu 86% em comparação com o ano anterior e, no caso do Pantanal, um ecossistema igualmente biodiverso e vulnerável, o aumento foi de 573% segundo dados do INPE. Como alerta o relatório Queimando a Amazônia, da Amigos da Terra, esses números se devem, principalmente, à ação humana. 

“Os incêndios são uma das ações dentro desta rede bem articulada com o propósito de aumentar a exploração de bens comuns para obter lucro. Dessa maneira, se mantém a cadeia mundial de produtos básicos agroalimentares e minerais controlados por empresas multinacionais”, afirma Amigos da Terra, em um relatório. O documento destaca que a falta de supervisão dos fornecedores não exime as empresas de responsabilidade nesse processo.

No caso concreto da Marfrig, companhia que recebe o grosso do financiamento do Banco Santander destinado a essas empresas, a organização Global Witness apontou, em uma investigação recém publicada, que havia comprado, entre 2017 e 2019, 89 fazendas com mais de 3.300 hectares desmatados, “todos ilegais”, segundo o documento. Marfrig é considerada a segunda maior produtora mundial de carne de gado, uma empresa que exporta produtos para cerca de 100 países, incluindo a Espanha.

Evasão de responsabilidades

Segundo o relatório Restituir o Fornecimento de Alimentos da UE, da Amigos da Terra, quando a União Europeia calcula qual o seu impacto no desmatamento, não inclui o papel que desempenham as entidades financeiras que promovem esse modelo. “Os bancos desempenham uma função fundamental” há duas décadas, sublinha o relatório, que defende a imposição de uma obrigação juridicamente estrita e vinculante do dever de vigilância aos bancos, dentro do marco do futuro Tratado da ONU sobre empresas e direitos humanos, que está atualmente em negociação.

O Banco Santander rejeita sua cumplicidade com a devastação da floresta amazônica. “A entidade formulou políticas setoriais específicas que contêm critérios para analisar os riscos sociais e meio ambientais derivados das atividades de nossos clientes em setores sensíveis”, afirmou o Banco através de seu departamento de imprensa. A entidade afirma que teve em conta “os acordos que haviam assinado as processadoras de carne com o Greenpeace e o Ministério Público do Governo brasileiro em relação ao abastecimento de carne”. Além disso, comenta que “o Santander Brasil trabalha com uma empresa de imagens por satélite de vanguarda que monitora 5.000 propriedades” que financia. Essa empresa, cujo nome não foi revelado para a reportagem, “fornece informação diária sobre embargos relacionados com áreas desmatadas, trabalho em condições de escravidão e outros problemas”, de modo que “se for comprovada a existência de alguma situação ilegal, o Santander Brasil tem a faculdade contratual de declarar o vencimento antecipado da dívida e exigir o pagamento”.

O Banco Santander se refere ao acordo que surgiu quando, em 2009, uma investigação realizada pelo Greenpeace junto ao Ministério Público Fiscal brasileiro desmascarou o papel do setor da indústria de carne na destruição da floresta, como detalha o relatório A Farra do Boi. Dada a repercussão midiática do caso, a JBS, a Marfrig e Minerva assinaram, junto ao Ministério Público, um “compromisso de ajuste de conduta” (TAC ou Termo de Ajustamento de Conduta) e aderiram a “critérios mínimos para operações com gado e produtos bovinos em escala industrial no bioma Amazônia”.

“Lavagem de gado”

Entretanto, as empresas agropecuárias e seus fornecedores conseguiram evitar os compromissos assumidos no chamado “TAC da Carne”, como demonstraram investigações do Greenpeace, Repórter Brasil e Anistia Internacional. O Ministério Público não se mostrou severo com as violações dos compromissos: ao contrário, considerou satisfatórios os resultados de empresas com até 30% de compras irregulares em 2016 e optou por não punir nenhuma das companhias auditadas. Em 2018, uma nova auditoria do Ministério Público Federal detectou irregularidades em 19% das compras da JBS. A Marfrig decidiu não se submeter à fiscalização, então não existem dados a esse respeito.

O fato é que, uma década depois do acordo, aproximadamente 65% da área desmatada na selva amazônica é destinada a pastagens para o gado. Esse dado sugere que, além de irregularidades específicas, os sistemas de monitoramento sobre o fornecimento a essas empresas não estão funcionando. Isso acontece porque quando essas empresas afirmam que controlam a procedência de seus fornecedores, estão se referindo somente ao fornecedor final. A cadeia é muito mais longa e difícil de monitorar. É o que é chamado “lavagem de gado”: os fornecedores irregulares se encarregam da criação durante as primeiras etapas da vida do animal e vendem depois a um fornecedor que não está diretamente ligado a casos de desmatamento nem trabalho escravo. É esse proprietário “limpo” que se encarrega da etapa imediatamente anterior ao abate e da venda direta à empresa frigorífica.

Avanços na sustentabilidade ou no greenwashing?

Diante da pressão internacional, em 2020, Marfrig, Minerva e JBS reafirmaram os compromissos assumidos em 2009 e se isentaram dos escassos avanços até então argumentando que o sistema brasileiro de rastreamento de gado dificulta a análise dos “fornecedores indiretos”. A Marfrig Global Foods anunciou um ambicioso programa de sustentabilidade para a próxima década, com um orçamento de 500 milhões de reais, e se comprometeu a monitorar seus fornecedores na Amazônia de agora até 2025, e no Cerrado e em outros ecossistemas, até 2030. 

Para o Greenpeace Brasil, o verdadeiro problema é a falta de vontade política: “Se os compromissos tivessem sido assumidos com seriedade, o setor inteiro já estaria operando sobre critérios mínimos e controlando todos os fornecedores ao longo da cadeia, e o governo estaria apoiando com assistência técnica a concessão de créditos para aqueles que querem produzir provocando menos impacto”, aponta a organização. E a expectativa é que a atividade dessas empresas continue crescendo. Se estima que as exportações serão o principal motor do setor e que, para satisfazer a demanda nacional e internacional, o Brasil chegará a 2029 abatendo 52,9 milhões de cabeças de gado, 17,7% mais do que em 2019. Esse aumento será acelerado se acontecer a ratificação do tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul, segundo o qual Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai poderiam exportar 99.000 toneladas a mais de carne bovina para a UE com impostos reduzidos – o que poderia aumentar em 30% as exportações de gado para a UE.

Por sua parte, o Banco Santander, como também o Bradesco e Itaú, assinaram um compromisso com a preservação da Amazônia em julho de 2020. “Para que o plano seja eficaz, é fundamental que se intensifiquem as medidas de proteção da floresta amazônica, coordenando as ações dos bancos com o governo e as iniciativas públicas”.

O risco é que esse tipo de acordo derive em greenwashing (lavagem verde), através de medidas como a “promoção de instrumentos financeiros verdes” ou o apoio a tecnologias vinculadas à “bioeconomia”, que tem mais a ver com a chamada “economia verde”, que avança na financeirização dos bens comuns, do que com uma verdadeira aposta pela sustentabilidade.

A isso se soma, de novo, a ameaça da ratificação do acordo comercial UE-Mercosul, que pode supor o aumento do investimento em atividades de desmatamento por parte das instituições financeiras da União Europeia. Segundo Mute Schimpf, Responsável de Alimentação da Amigos da Terra Europa, “este acordo facilitaria as atividades dos bancos e os investidores da UE no financiamento ao desmatamento nos países do Mercosul, agravando assim a ameaça que as florestas e terras das comunidades enfrentam”.