Um presente envenenado

Um presente envenenado

por Milo Milfort Haiti
Publicado em 7 setembro 2020

Se tivéssemos de escolher um único exemplo de por que as doações são um bom negócio apenas para as corporações e as ONGs que as representam, esse exemplo seria o Haiti. Quando os haitianos ainda removiam escombros, buscando centenas de milhares de mortos depois do terremoto de 2010, a multinacional Monsanto tentava entrar no país com 475 toneladas de sementes transgênicas disfarçadas de doação. Deparou-se com um país faminto, mas um campesinato que leva a resistência no sangue e que jamais se colocaria de joelhos

Janeiro de 2010. Um poderoso terremoto de magnitude 7,3 na escala Richter golpeia severamente o Haiti. Mais de 200 mil pessoas morrem e 1,5 milhão ficam desalojadas. Centenas de milhares de construções vão abaixo em 35 segundos. Há danos severos, sobretudo no Oeste, na zona da capital Porto Príncipe, onde vive um terço da população.

A essa catástrofe se seguiu outra: a investida de centenas de organizações não governamentais (ONGs), organismos humanitários e multinacionais. Estima-se que foram quase 10 mil organizações, que durante algum tempo substituíram o Estado, preso sob os escombros. A ajuda internacional se canalizou por essas organizações, criando atritos entre o poder público e as comunidades. 

Quando começaram a se esgotar os fundos e a ajuda internacional, em 2013 e 2014, as ONG e os organismos humanitários começaram a deixar o país. Não deixaram nada duradouro. Problemas e dificuldades persistem. Um fracasso registrado no documentário Assistance Mortelle, do cineasta hatiaiano Raoul Peck.

Nesse contexto, na primavera de 2010, através de um projeto da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), a companhia agroalimentar Monsanto fez uma doação de 475 toneladas de sementes de milho e legumes sob o argumento de “apoiar o esforço de reconstrução”. 

As sementes da corporação, principal produtora de transgênicos e uma das maiores de pesticidas, chegaram à ilha e não foram bem recebidas. Os camponeses haitianos, ainda em meio ao colapso, recusaram a “doação”. 

Mas o projeto Watershed Initiative for National Natural Environmental Resources (Winner, ou vencedor, em inglês) continuou. Com um plano de cinco anos e 126 milhões de dólares, dizia buscar “reduzir a pobreza mediante o crescimento agrícola”. Foi dirigido pela Chemonics International, um gigante que executa os planos da Usaid, com mais de 5.000 empregados em cem países. Como gerente, um homem conhecido no país: Jean Robert Estimé, antigo ministro de Relações Exteriores da ditadura de Jean-Claude Duvalier, que, além de tudo, já havia trabalhado para a corporação na África. 

Com alarde, o Winner prometia melhorar as condições de vida das populações e investir no crescimento econômico, regalando fertilizantes e sementes de milho amarelo, além de sorgo, arroz, melão, espinafre, brócolis, berinjela, cebola, melancia para cobrir milhares de hectares. O programa foi executado entre 2010 e 2015. Segundo os informes da própria ONG, ajudou “1.500 camponeses” com “técnicas inovadoras”. O balanço oficial da Usaid diz que “os agricultores haitianos experimentaram aumentos dramáticos na produtividade dos cultivos este ano graças a seu programa inovador dirigido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional”, ou seja, por eles mesmos. 

O certo é que o Winner nunca prestou contas de forma transparente, nem concedeu nenhuma entrevista à imprensa. Porém, o programa serviu para a entrada – a conta-gotas, mas entrada – das sementes que os camponeses não queriam. O projeto garante que eram “híbridas”, mas muitos temem que tenham sido sementes geneticamente modificadas. Um combo que não conseguiu alterar os índices de segurança alimentar, que, inclusive, estão piores. 

O Haiti já foi outro país

O Haiti é hoje o país mais pobre das Américas, mas também foi a primeira república negra livre e independente do continente. Um país que se rebelou ao colonialismo francês até colocá-lo de joelhos, em 1803. Um país que sofreu uma longa lista de terremotos, furacões e grandes incêndios. 

A ilha foi povoada por negros trazidos em barcos. Aqueles que conseguiram resistir à opressão usando as línguas creole e vudu. Em 1915, souberam resistir à ocupação pelos Estados Unidos. E um grupo valioso repetiu o feito em 2010, quando a Monsanto prometeu o paraíso. Os haitianos resistem desde sempre, e por vezes triunfam. Um exemplo é o beisebol: apesar das muitas tentativas, nunca conseguiram fazer com que a população simpatize com esse esporte. Parece um detalhe, mas é uma marca de resistência. 

O Haiti é, também, um país que arrasta mais de 30 anos em crise social, política e econômica. Devastado pela pobreza: 8 de cada 10 habitantes não podem satisfazer suas necessidades básicas, têm a renda per capita mais baixa de todo o Ocidente e ocupam os piores postos mundiais quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (145 de 177). Assolado também pela corrupção, na 168ª posição entre 180 países analisados pela Transparência Internacional em 2019. A inflação ficou em 23,4% apenas em maio de 2020. Somam-se a tudo isso instabilidade política, manifestações violentas, guerras de grupos armados, golpes de Estado e uma lista de dramas sem fim. 

Os governos das últimas três décadas não conseguiram levar o país ao tão sonhado desenvolvimento – ou nem tentaram – e a comunidade internacional assistiu muda aos acontecimentos ou foi partícipe deles. Muitas vezes, os governos de outros países facilitaram a tomada do poder, interferiram de forma recorrente e estimularam a precariedade política.

O Haiti é hoje um país no qual a miséria aumenta a cada dia. O desespero se vê nos rostos. A comida se converte em luxo. E os jovens se vão, em massa, a outros lugares – entre 10% e 12% vivem fora do país. É, também, um país no qual os agricultores estão vendendo sua porção de terra para comprar uma passagem para trabalhar na terra em outros países da América Latina. 

Mas, até há não muito tempo, era um outro país. Alimentos como o tamarindo e a “árvore verdadeira”, que dá a fruta-pão, boa para sucos ou para comer cozida, eram usados para alimentar animais, como os porcos. Os camponeses produziam em quantidade e a fome não os incomodava. 

“Costumávamos cultivar milho e algodão. Vendemos algodão a grandes comerciantes. Isso nos fez ganhar dinheiro”, recorda Franck Chérilus, de 68 anos, pai de 5 filhos. “Eu não sabia comercializar. Comprei grãos, moí e vendi. Foi uma realidade que não durou muito com (François) Duvalier. Com o canal de irrigação que instalou, as plantas começaram a desaparecer.”

Chérilus tem o cabelo grisalho. Veste uma camiseta azul e calça jeans. Em Molette, uma localidade a 88 quilômetros da capital, onde ainda trabalha a terra, recorda dos alimentos que já não existem. Fala da pita, que o Haiti exportava em grandes quantidades. Das enormes plantações de cana-de-açúcar. Dos tomates para as fábricas que desapareceram. 

Nas ruas, os haitianos consumiam alimentos feitos com itens locais, como o Acasan, um purê de milho, e a Cassave, um pão de mandioca, entre muitas outras preparações de milho, milho miúdo e tubérculos. Os hábitos alimentares começaram a mudar há três décadas, com a introdução do frango e das bebidas açucaradas. As pessoas costumavam tomar suco de frutas locais e comer frangos criados aqui, mas faz pelo menos três décadas que passaram a comprar ultraprocessados importados e frangos industriais criados na República Dominicana.

Tudo começou a mudar nos anos 1980. Políticas de ajuste estrutural, diminuição de tarifas de importação e falta de investimento na agricultura local foram os principais fatores de desmoronamento. O Haiti deixou de ter porcos convencionais porque deixaram de ser criados sob o pretexto de que tinham doenças. Foi uma estratégia para introduzir porcos trazidos dos Estados Unidos. Também se trouxe o arroz, que antes era comido em apenas algumas ocasiões. E, agora, todos os grãos que chegam ao prato são importados. Arroz, milho ou feijões, como parte de um gosto criado. 

O suíço Jean Ziegler, primeiro relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Alimentação (2000-2008), lista no livro Destruição em massa vários e vários casos nos quais a imposição de um mercado global de alimentos teve efeitos devastadores em pequenos países. 

O Haiti passou por planos de ajuste do Fundo Monetário Internacional (FMI) que o obrigaram a praticamente zerar as tarifas de importação. “Entre 1985 e 2004, as importações haitianas de arroz — essencialmente norte-americano, cuja produção é largamente subsidiada pelo governo — saltaram de quinze mil para 350 mil toneladas por ano. Simultaneamente, a produção local de arroz desabou: caiu de 124 mil para 73 mil toneladas. Desde inícios dos anos 2000, o governo haitiano teve de gastar um pouco mais de 80% de seus escassos recursos para pagar suas importações de alimentos. E a destruição da rizicultura provocou um êxodo rural em massa.” 

Franck Chérilus diz que antes “não tínhamos problemas para comer. Sabíamos como criar gado. Não havia carne importada. Depois da colheita, soltávamos vacas nos jardins e sabíamos tirar leite. Nos domingos, comíamos frango caipira. Mas a agricultura perdeu importância para os chefes de Estado, que veem nossa salvação nas importações: no lugar de fomentar o cultivo de arroz, preferem abrir o ventre do país para aceitar o arroz importado”.

Port-au-Prince. Foto: Marco Dormino / ONU

Um presente envenenado

É meio-dia. Depois de viajar três horas em automóvel e uns quinze minutos em moto, estamos em Papaye, uma área da cidade de Hinche, no Platô Central. Nessa região, o desmatamento é duro, a seca é selvagem, as estradas estão em mal estado e a agricultura definha. Nos últimos dois anos, as plantações têm sido devastadas por colônias de lagartas. Os camponeses se queixam e denunciam que as autoridades não fazem nada para conter o fenómeno. 

Papaye é um lugar calmo, no qual tudo funciona como se não existisse uma pandemia. As pessoas, inclusive, acreditam que a Covid-19 nunca chegará. Não se respeita o uso obrigatório de máscaras, nem o distanciamento, nem as restrições de funcionamento. 

Além de haver sido uma região fundamental na resistência à ocupação estadunidense, em anos mais recentes essa área se tornou sede de uma influente organização camponesa, o Mouvement Paysan Papaye (MPP), grupo que tem como objetivo unir todos os trabalhadores rurais haitianos e, sobretudo, os jovens. 

Chavannes Jean Baptiste, coordenador do MPP, veste una camisa de estilo camponês e nos recebe perto de sua casa, numa granja que tem uma área de treinamento para os membros do movimento e dormitórios. O líder fala entre as árvores, tendo ao fundo o som de pássaros cantando. São pássaros locais, o ar é frio, o lugar é muito agradável. 

Passados dez anos da chegada da Monsanto, Baptiste recorda o que aconteceu. Conta que conseguiu um saco de fertilizantes em Croix-Des-Bouquets para ter provas, para saber com certeza que doariam. 

“Era um complô mundial. Era um sinal de solidariedade e uma maneira de criar empregos, mas, enquanto alguns foram golpeados pela catástrofe, outros viram uma oportunidade para mover suas próprias peças. Foi o caso da Monsanto, uma multinacional do agronegócio que domina o mundo, sobretudo com suas produções de sementes híbridas ou geneticamente modificadas e herbicidas extremamente perigosos.”

Em 4 de junho de 2010, 20 mil pessoas de todo o país se reuniram em Papaye. Marcharam até a praça principal, que se chama Charlemagne Péralte em homenagem a um revolucionário que combateu contra a ocupação dos Estados Unidos. “Nos manifestamos contra um presente envenenado. Era uma mobilização enorme. Era um êxito louco. Ao final da marcha, queimamos sementes da Monsanto.”

Ele relata que havia certeza de que as sementes modificariam a agricultura local. “Quisemos mostrar ao mundo inteiro que, mesmo que tenhamos sido vítimas de um terremoto devastador, não aceitamos que multinacionais venenosas se aproveitem de nossa desgraça para afundar-nos ainda mais. Se querem nos ajudar, não precisamos desse tipo de ajuda.”

Era uma atmosfera festiva, de carnaval, ao ritmo de bandas de rara, que são grupos tradicionais compostos por tambores, trombetas feitas de cana e instrumentos nativos. Apesar do sol, do calor, as pessoas dançavam. Lançavam gritos de guerra hostis à Monsanto e ao governo. Os camponeses estavam muito irritados com a multinacional, e exigiam que as autoridades freassem a distribuição de sementes. Carregavam cartazes, placas e retórica anti-Monsanto. 

A briga não acabou por aí. O MPP levou o caso a organismos internacionais. Baptiste viajou aos Estados Unidos, onde apresentaram uma ação contra a Monsanto ante o Departamento de Agricultura, o Congresso e a Organização das Nações Unidas. 

A “doação” da Monsanto abriu um debate no Haiti. Numerosas discussões se deram em torno da verdadeira intenção com as sementes. Em entrevista a Bocado, Joanas Gué, ex-ministro da Agricultura durante o governo de René Preval (2006-2011), pondera que “o setor camponês tem razão em ter inquietudes. Por quê? Porque no sistema de produção que temos no Haiti haverá problemas. No caso do milho, que é uma planta de polinização cruzada, haverá problemas se introduzimos uma semente da qual o camponês não pode ter controle”.

Além disso, “ao entrar nessa dinâmica [da Monsanto], terão que comprar sementes a cada ano das grandes filiais das multinacionais. Sementes híbridas e transgênicas”. Passada uma década, o debate persiste. As autoridades haitianas e a Usaid insistem que se trata de sementes híbridas – cruzamentos naturais selecionados em laboratório –, enquanto os críticos insistem que são transgênicas. No meio do caminho, uma parte da população segue confundindo os dois conceitos. 

 

País de camponeses

Justimé Octave tem 50 anos e é pai de 8 filhos. Ele mora em Bassin Zim, no Departamento do Centro, na cidade de Terrier, perto de uma cachoeira muito visitada nas férias. Ele parece mais velho que sua idade, mas transmite a energia de um jovem. Claramente, tem um bom relacionamento com pessoas da comunidade. Ele é um membro fervoroso do MPP e um camponês que está envolvido na agricultura desde a infância.  

Já são 38 anos semeando, cuidando, colhendo. Ele conhece a agricultura e, pelo seu conhecimento, nos diz: “A semente híbrida, quando cultivada, produzirá rendimento, mas não pode ser reutilizada. Então, você sempre será obrigado a comprar indefinidamente. A semente coletada pode ser reutilizada, comida ou vendida.” 

Essas são as razões pelas quais se juntou aos protestos e à resistência contra a famosa “doação”: “Pudemos ver que perderíamos toda a nossa produção nacional. Estávamos dizendo um ao outro que se deixássemos a Monsanto entrar em nosso país, estaríamos na merda. Nossa miséria cresceria. É por isso que protestamos contra eles.”

O Haiti é considerado um país essencialmente agrícola. Segundo a FAO, 70% da população haitiana é economicamente dependente da agricultura. Portanto, a questão da semente está no centro do debate.

Os agricultores haitianos têm uma relação tradicional de cuidado com as sementes. Uma parte para consumo, outra destinada à venda e o restante é economizado para semear na próxima temporada: este é o ciclo de plantio. A colheita de um ano dará a semente para o próximo, sejam eles próprios ou vizinhos, porque os camponeses trocam sementes. Portanto, a entrada da Monsanto significaria perder uma dinâmica social e cultural com milhares de anos de história.  

Como em muitas partes da região, os agricultores são párias na sociedade: têm poucas ferramentas, o que gera baixos níveis de produção, e o Estado não investe no campo e os bancos não oferecem empréstimos. Mal se tem machado, facão, enxadas. Muitas vezes são as mesmas ferramentas sendo reaproveitadas desde os tempos da Colônia. 

Enfrentam problemas como erosão, baixo acesso aos meios de produção e dependência de chuvas. Eles também são frequentemente vítimas de riscos ambientais aos quais não estão protegidos. 

Suas fazendas são pequenas. Os agricultores têm dificuldade em aproveitar sua atividade de subsistência e o pequeno excedente que recebem é investido na educação de seus filhos. 

Este estado de opressão no passado, juntamente com as políticas de importação de alimentos, significa que os camponeses não podem trabalhar como sabem que são capazes. Justamente essa depreciação é usada como pretexto para a entrada do projeto estrangeiro que, longe de chegar à agricultura local, era um outro experimento estrangeiro de laboratório. 

A multinacional Monsanto conseguiu inserir sementes usando o programa Winner, embora não em grande escala, como pretendiam. Enquanto isso, a agricultura haitiana continua a despencar e a insegurança alimentar está piorando a cada dia. Muitas ONGs que haviam se estabelecido em 2010 foram aposentadas algum tempo depois. Mas agora, com a pandemia de Covid-19, encontram outra oportunidade de fazer “doações” que acabam sendo bons negócios para eles, enquanto, para o Haiti, deixam apenas dependência. 

Fritar, rezar e (sobre)viver

O supermercadismo na pandemia