Açaí: de fruto tradicional amazônico a commodity global

Pesquisador reúne evidências sobre o processo de equiparação de um tradicional fruto do Norte do Brasil com produtos como açúcar, milho, palma e soja

22 de fevereiro de 2021 – Por Guilherme Zocchio

Nos idos dos anos 1990, um empresário de São Paulo se deparou com uma pequena fruta saborosa de coloração escura, nativa da região amazônica e exótica aos olhos de um empreendedor industrial do Sudeste do Brasil. Esse encontro, no entanto, não se limitaria à interação de dois universos pitorescos distintos. Seria, na verdade, o marco de um processo atualmente em curso e que está transformando o açaí, um dos mais tradicionais alimentos da região Norte do Brasil. Ali, o fruto faz parte da dieta cotidiana das populações ribeirinhas e povos nativos da Amazônia. Está presente em todas as refeições, do café da manhã ao jantar, e é muito consumido com farinha e peixe. 

Mas o empresário tinha outra ideia para o açaí, que mudaria para sempre esse elemento central da cultura alimentar nortista. Ele decidiu fabricar sorvetes, misturando-os com creme da fruta, e vendê-los pelas praias dos Estados do Sudeste. Daí em diante, foi questão de tempo até aquele mix ganhar paladares sedentos por novidades e se tornar um ícone dos sabores de sucos, granolas e comidas geladas pelo Brasil.

Essa história, reduzida aqui a uma pequena sinopse, é apenas um dos elementos que o pesquisador Rafael Fonseca, do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (Fomeri) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), levantou, em sua dissertação de mestrado, para mostrar que o açaí está em vias de se tornar uma commodity agrícola, como são hoje o açúcar, o milho, a palma e a soja.

Para que a pequena fruta escura tomasse esse rumo, no entanto, não bastou uma decisão com ares disruptivos vinda de um pequeno-burguês de São Paulo. Fonseca afirma que o empresário em questão tinha um contexto mais do que favorável para o desenvolvimento da sua ideia — e é aí que está o pulo do gato.

“Sob um olhar da geopolítica”, diz o pesquisador, um internacionalista, “desde a década de 1980 vivemos, sob o neoliberalismo, um regime agroindustrial corporativo, no qual empresas multinacionais começam a controlar cada vez mais a distribuição de alimentos. Nessa época, os países do Sul global começaram a exportar mais frutas, tanto para atender o mercado interno quanto para a exportação”.

Entre as frutas que passaram de alimento cultural para item de desejo em outras regiões do Brasil e do mundo estava, justamente, o açaí. 

Fonseca concedeu uma entrevista para O Joio e O Trigo sobre esse processo, tema da sua pesquisa, intitulada “O regime agroalimentar corporativo: questionamentos sobre a materialização do açaí ultraprocessado no século XXI”.

Na dissertação, ele investiga como o fruto está se tornando uma commodity, resultado de um cultivo extensivamente produzido para exportação, com o objetivo principal de alimentar a indústria que o utiliza para fabricar outras mercadorias — e vale dizer: boa parte delas, alimentos ultraprocessados. Para visualizar esse decurso, o pesquisador afirma que há duas principais evidências.

“Primeiro, é a transformação na forma de cultivar”, explica. “Se naturalmente o açaí crescia na beira dos rios, hoje em dia a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) trabalha com sementes modificadas para poder plantá-lo em fazendas. Antes, ele era uma cultura extrativa. E agora vem sendo produzido como se fosse um grande monocultivo, com a mecanização da colheita cada vez mais discutida.”

O pesquisador se refere ao melhoramento genético do fruto desempenhado pela Embrapa, que é a empresa pública brasileira de inovações sobre a atividade econômica rural. Recentemente, a companhia concluiu o desenvolvimento de um tipo de semente que facilita a plantação de açaí em grandes extensões de terra e oferece ganhos maiores. A variedade obtida, a BRS Pai d’Égua, é, segundo a empresa, 50% mais produtiva e rende até 30% do que as espécies tradicionais.

Disputa fundiária

A entrada em cena de um dos grandes atores da pesquisa e do desenvolvimento agropecuários nacionais reforça, de acordo com o pesquisador, os indícios da integração do cultivo do açaí com um complexo agroindustrial, semelhante ao que acontece em outras cadeias de matérias-primas agrícolas.

Além disso, a inserção nas linhas das grandes indústrias indica, segundo ele, a entrada do ciclo produtivo do açaí no mercado financeiro, tal qual ocorre com a soja e o milho, entre outros itens negociados na bolsa de valores. Mas atenção aqui: isso não significa que o açaí já é parte do jogo de especulação de preços. O que Fonseca mostra é que ele está quase lá, uma vez que boa parte das empresas que manufaturam o fruto —da porteira das fazendas para fora— está sendo comprada por fundos de investimento.

Da porteira para dentro, a busca por terras para plantations de açaí provoca —assim como no caso da cana-de-açúcar, do milho, da palma e da soja— disputas fundiárias, um problema mais do que comum nas atividades do agronegócio

Fonseca cita, para ilustrar no seu estudo, que o estado do Pará, no Norte, é não só uma das porções do Brasil onde mais se produz açaí, mas também é uma das localidades em que mais há conflitos por grilagem de terras. A dissertação apresenta dados que dão conta de que há mais terras registradas do que a área total do Estado, indicando que existem regiões em que uma ou mais pessoas reivindicam posse da mesma propriedade: são 495 milhões de hectares registrados, o que corresponde a um total quatro vezes superior à área total do Pará.

“A principal conclusão que a pesquisa traz é apontar que não necessariamente uma commodity precisa estar vinculada à bolsa para ser considerada uma commodity”, comenta Fonseca na entrevista para este repórter. “Para um cultivo entrar na trajetória de comoditização e financeirização, ele precisa especular terras. A partir do momento em que precisa de mais terras para produzir o fruto, passa a disputar essas mesmas terras”, completa.

A segunda grande evidência sobre a transformação do açaí em commodity é o trato do Estado brasileiro para com o fruto. O interesse da Embrapa no cultivo já é um indício, mas não é o único nem o mais explícito. Em 2016, o então governador do Pará, Simão Jatene, publicou um decreto criando incentivos fiscais para a exploração industrial, com a condição de que as indústrias se comprometessem a desenvolver pelo menos três novas linhas de produtos a partir da polpa do fruto.

Segundo Fonseca, a medida tomada por Jatene foi um importante passo para consolidar a inserção definitiva do açaí em dois setores da indústria: o processamento de alimentos, para a fabricação de ultraprocessados como os mix, sorvetes e sucos; e o mercado de cosméticos, cujo maior expoente é a multinacional brasileira Natura.

“Esse processo de inserção na indústria está acontecendo hoje e está em constante expansão. Cada vez mais as empresas estão criando encontros para discutir produtos e pensar em maneiras sobre a industrialização do açaí”, diz o pesquisador.

Cultura e saúde

Em que pese o fato de o fruto ter se popularizado como um alimento ultraprocessado, Fonseca recorda que o açaí é, antes de tudo, parte da cultura alimentar do Norte do Brasil. Enquanto em regiões como a Sudeste ele é servido na forma de sorvetes, misturados não raro a leite condensado, achocolatados, doces e outras porcarias, o açaí é consumido no seu berço como um alimento in natura ou similar. 

“No Norte, come-se o açaí como um alimento básico, minimamente processado, como o arroz. Ele compõe a dieta cotidiana das pessoas, ao lado das farinhas e do peixe”, lembra o pesquisador. “Ao mesmo tempo em que, na Amazônia, é consumido mais do que o leite, em outras regiões ele é exportado como produto químico.”

E complementa: “Uma parte do complexo industrial pode considerar o fruto uma commodity, como a palma, o milho, a soja. Por outro lado, ele é uma cultura tradicional. E esses dois modelos estão em disputa”.

É nesse embate entre dois usos tão distintos de um mesmo fruto que o pesquisador quer dar sequência ao seu estudo. Ele afirma que deseja levar as discussões da dissertação para a área da saúde coletiva. Diz que vê relações entre a comoditização do açaí e o que aconteceu outrora com o açúcar — que foi de um item de luxo a um ingrediente barato, relacionado à profusão de males que são as principais causas de morte mundialmente.  

“Para mim, a grande reflexão que tiro é como existe essa relação entre três fenômenos: o da financeirização; o da flexibilização dos cultivos, no qual um mesmo cultivo pode servir para várias indústrias; e o fenômeno dos ultraprocessados”, conclui. “A partir do momento em que a gente está exposto a isso, há uma série de doenças crônicas não transmissíveis que se proliferam.” 

JBS, uma história de corrupção, desmatamento e exploração.

Por: Redação Bocado

A história da JBS é um reflexo da história do Brasil no século 21: nos primeiros anos, a empresa, no ramo da carne, e o país cresceram. Os irmãos Joesley e Wesley Batista apareceram nas páginas dos jornais como símbolos de uma era de expansão econômica em que as empresas brasileiras se preparavam para figurar entre as maiores do mundo. Mas quando o país viu o sonho da prosperidade acabar, a JBS deixou de estar apenas nas boas notícias econômicas: casos policiais, escândalos de corrupção e desmatamento passaram a conviver com os bons resultados financeiros, que fazem da empresa uma das maiores  do mundo em processamento de carne. Hoje, não há mês que passe sem uma notícia negativa sobre a JBS. A seguir, listamos a Santíssima Trindade que acompanha a família Batista.

1. Exploração

Vamos perguntar aos irmãos Wesley e Joesley Batista como se consegue passar, em mais de 65 anos, de processar 5 vacas por dia para 23.000 em apenas um dos seus frigoríficos. A resposta não seria difícil: terra e trabalho. A conta que não fecha é o tratamento que recebem esses 240 mil colaboradores (como são chamados dentro da JBS).

Vestidos de branco manchado de sangue e fechados em ambientes onde o oxigênio não entra facilmente, os trabalhadores são frequentemente alterados, devido à baixa tolerância do corpo ao clima do processamento. Eles são expostos a temperaturas congelantes que prejudicam seus tendões e geralmente acabam causando queimaduras ou danos permanentes.

A JBS possui uma técnica magistral para garantir a eficiência de seus colaboradores. Em ordem, cada funcionário da processadora é chamado para colocar suas mãos em uma água cheia de gelo. Segundo a empresa, esse é um método de cuidado dos seus trabalhadores, que ajuda a diminuir a inflamação dos tendões, mas é óbvio que é apenas uma estratégia para garantir um maior tempo de trabalho.

Um dos casos mais conhecidos é o de Itamar Bedin, técnico em eletromecânica de 45 anos que, ao ir consertar um hidrômetro caído na sede da JBS em São José, em Santa Catarina, ficou preso entre o helicoide que transporta as galinhas e a parede do equipamento. Apesar dos esforços de seus colegas de trabalho para ajudá-lo, morreu asfixiado.

Um caso semelhante ocorreu no país vizinho ao Brasil, a Argentina. Em outubro de 2009, um trabalhador da seção de manutenção de uma das fábricas caiu de oito metros de altura durante o conserto de uma lâmpada, o que o deixou com uma deficiência que requer cuidados permanentes. A JBS teve que pagar uma soma milionária como compensação, mas nunca poderá devolver ao trabalhador a vida que ele tinha.

Os casos registrados de brucelose também geraram comoção. A bactéria, que tende a atacar os órgãos reprodutivos de animais e humanos, não seria transmitida tão facilmente se a vacina fosse aplicada sem problemas. No entanto, o processo de vacinação tem um custo e, se ninguém controla isso, esse custo não é pago.

A JBS reluta em fazer os exames depois que um trabalhador deixa o cargo. A questão é por que, e a resposta parece clara: quem chega de uma maneira, sai de outra.
A condenação que a processadora recebeu em agosto de 2014 foi escandalosa. Não só os “colaboradores” da JBS são alvo dos maus-tratos citados, mas há até dificuldades na hora de comer. A irregularidade neste caso surgiu quando se detectou que certas carnes que davam aos seus trabalhadores estavam contaminadas com larvas de moscas. O estado da carne parece ter pouca importância para o frigorífico.

Além das histórias, há também dados estatísticos. Entre julho de 2018 e março de 2020, os frigoríficos da JBS emitiram 4.677 comunicações de acidentes de trabalho em 32 cidades brasileiras. Dedos, mãos, pés cobertos de hematomas, queimaduras, lacerações e escoriações. Sete dessas comunicações correspondiam ao pior cenário possível: mortes.

Se pegarmos a calculadora, teremos algo assustador: sete acidentes de trabalho por dia. E só no Brasil.

2. Corrupção

Sem dúvida, os resultados que a JBS consegue não são alcançados de forma isolada. É preciso poder para ter o status desta empresa, e quem melhor do que o presidente do Brasil para colaborar? Qual é a trajetória de um empresário que foi chamado pelo ex-presidente Michel Temer de “o bandido notório de maior sucesso na história brasileira”?

Embora tenha havido um enorme estímulo do Estado brasileiro para estabelecer competidores poderosos no comércio exterior (desde a década de 1990 e intensificado durante o governo Lula), nem tudo foi feito por cima da mesa. Os irmãos Batista admitiram, ao assinar um acordo de delação premiada, terem pago propina para 1.900 políticos em uma década.
A Operação Carne Fraca vai ficar para sempre na ficha da JBS. Já mencionamos que a empresa dava carne com larvas aos seus funcionários. E o que ela fazia em pequena escala também fazia em grande escala.

O silêncio tem um preço. Para manter essas atividades, a empresa pagou propina ao partido Movimento Democrático Brasileiro, do ex-presidente.
Parece que eles estavam entre a cruz e a espada. Tiveram que delatar Temer para, mesmo que admitindo a culpa, pudessem reduzir a sentença. Com um gravador oculto, Joesley Batista teve uma conversa de aproximadamente 40 minutos com Temer na qual registrou como lhe foi dado suposto aval para subornar o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Temer teria se tornado o primeiro presidente brasileiro a ser julgado no exercício de seu mandato, não fosse o auxílio do Congresso, que não autorizou seu julgamento.
Após a comprovação de que a JBS colocou em risco a vida dos consumidores, a empresa foi multada financeiramente. No entanto, o valor estava longe de ser um montante significativo, correspondia a 5,62% do faturamento do grupo em 2016, livre de impostos,a ser pago nos próximos 25 anos com correções pela inflação. Um número risível para uma empresa que, só em 2015, teve lucro de 4,64 bilhões de reais.
Depois do escândalo político em que se meteram, pode parecer que a coisa acabou. Mas tem mesmo? Wesley e Joesley foram presos algumas semanas depois pelo suposto uso de informações privilegiadas na bolsa de valores durante a turbulência criada pelo caso de corrupção. 

3. Desmatamento

No início deste texto, explicamos que para abater dezenas de milhares de vacas, a JBS precisava de mão de obra e território. Já entendemos como a JBS trata sua força de trabalho e não é de se estranhar que trate o seu solo da mesma forma.

Um dos métodos que a empresa utiliza é a triangulação de gado. Em termos simples, a triangulação é feita assim: os animais são criados em uma zona ilegal, eles são levados disfarçados para uma zona legal e de lá sai o carregamento.

Em meados de 2019, o primeiro elo em uma das triangulações foi descoberto. Após a extração ilegal de mais de 1.500 hectares em Mato Grosso, a área recebeu um embargo que proibia a criação de gado ali, que custou ao proprietário uma soma milionária.

Essa descoberta levou a uma investigação, com base na premissa de que quem faz alguma coisa uma vez ou já fez isso antes ou vai repetir a ação. Assim, foi obtido registros de que, entre junho de 2018 e agosto de 2019, cerca de 7.000 vacas foram transportadas com esta metodologia.

Entre 1993 e 2013, a pecuária cresceu exponencialmente, chegando a 60 milhões de cabeças de gado somente na Amazônia (uma expansão de cerca de 200%).

O mundo sabe que as políticas de proteção ambiental do atual presidente Jair Bolsonaro não são um exemplo. A queima da floresta tem sido alvo de duras críticas ao seu mandato, e sabe-se que 60% das áreas desmatadas são destinadas à pecuária. São queimadas que têm finalidade econômica. Um caso a ser citado é o exposto pela revista Science, da American Association for the Advancement of Science, que publicou que 17% da carne exportada para a União Européia vem do desmatamento ilegal da Amazônia.

Assim como mencionamos o caso da carne fraca anteriormente, houve uma operação com nome semelhante que também envolveu a JBS: Carne Fria, em 2017.

Eles não apenas violaram as políticas governamentais ao criar gado em áreas ligadas ao desmatamento, mas também violaram suas próprias políticas ao fazer o que prometeram não fazer.

Embora a multa tenha sido de 8 milhões de dólares, os supermercados europeus não pararam de vender os produtos obtidos com base no desmatamento no Brasil.
Mas parece que estão começando a reconhecer os danos ambientais. “Alimentar a mudança é o nosso compromisso” é o título de um comunicado da JBS há poucos dias. As promessas incluídas no texto incluem zerar o balanço das suas emissões de gases de efeito estufa. Será?

Bancos, carne e desmatamento

Para que na Espanha possam desfrutar de um bom churrasco, desmatam o Brasil. Porque a Europa, apesar de suas estritas regulamentações, consome milhares de toneladas de carne originada da destruição de pontos sensíveis do planeta (como a Amazônia).

E dentro desse negócio obscuro está um dos maiores bancos espanhóis, o Santander, que tem investimentos de pelo menos 1,17 bilhão de euros em três grandes empresas da indústria da carne: Marfrig, Minerva e JBS.

Sim, a mesma JBS que fez do Brasil um país com mais vacas do que pessoas e que espreme imigrantes sem documentos nos Estados Unidos.

Seguir o rastro do dinheiro é uma tarefa complexa. Entretanto, @s colegas de Carro de Combate conseguiram fazer uma investigação que você não pode perder.

Por que é tão importante falar disso agora? Porque a União Europeia e o Mercosul estão negociando um tratado de livre comércio que aumentaria as importações espanholas de carne brasileira em até 30%. Estão planejando mais vacas e mais destruição para continuar abastecendo mesas a partir de muita injustiça.

Dois textos que o Bocado recomenda que você devore.

O Tratado entre o Mercosul e a União Europeia, oportunidade histórica ou “acordo vampiro”?

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários

Nazaret Castro, com a colaboração de Amigos da Terra

Foi Susan George, a ativista de Attac (Associação pela Taxação das Transações financeiras e pela Ação Cidadã), quem popularizou a expressão “acordos vampiro”, se referindo a tratados de livre comércio que são negociados nas sombras porque, “se saírem à luz, morrem, já que raramente resistem ao debate democrático”. Algo assim ocorre com o tratado que poderia ser assinado entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), do qual participam atualmente o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado da União Europeia, entre os setores que mais serão beneficiados pelo acordo estão as empresas do setor automobilístico, a indústria química e os serviços mas, também o setor farmacêutico, agropecuário, energético, mineração e os bancos.

Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários e, em particular, os grandes frigoríficos brasileiros. “São os grandes produtores e exportadores que vão ser beneficiados, não os pequenos e médios produtores”, afirma Luciana Ghiotto, membro de TNI e Attac Argentina e coautora do livro O Acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Estudo integral de suas cláusulas e efeitos, que analisa criticamente as consequências que teria o tratado caso seja ratificado.

Ghiotto conclui que o acordo “congelaria as assimetrias comerciais entre ambos blocos econômicos, tornando mais difícil mudar o fato de que o Mercosul exporta fundamentalmente produtos de baixo valor agregado, como carne, soja ou suco de laranja”. Mas também haverá perdas para os pecuaristas do outro lado do Atlântico: o sindicato agrário COAG estimou as perdas para os agricultores espanhóis em 2.7 bilhões de euros por ano.

Empresas de carne brasileiras como JBS, Marfrig, BRF e Minerva se tornaram líderes do setor em nível global. Aqueles que exportam grandes quantidades de carne bovina, como JBS, poderão fazê-lo com tarifas muito mais baixas. Atualmente a chamada “cota Hilton” permite exportar do Brasil para a UE até 46 mil toneladas de carne bovina por ano com uma tarifa de 20%. Agora, esse volume não pagará mais tarifa, e será adicionada uma nova cota de 55 mil toneladas a uma taxa de 7,5%. Desse modo, essas empresas vão acumular lucros, apesar de investigações de organizações como Amigos da Terra, Greenpeace, Repórter Brasil, Anistia Internacional, Imazon e Mercy For Animals terem provado o vínculo dessas empresas com o desmatamento da floresta amazônica e de outros ecossistemas vulneráveis, como o Chaco e o Cerrado.

Essas empresas brasileiras são financiadas por entidades bancárias como o Banco Santander, que entre 2014 e 2019 foi a segunda instituição bancária europeia que mais financiou a JBS, Marfrig e Minerva, diretamente vinculadas com o desmatamento da floresta amazônica. A ratificação do acordo comercial UE-MERCOSUL pode representar o aumento do investimento em atividades de desmatamento por parte de instituições financeiras da União Europeia.

De acordo com Mute Schimpf, Responsável de Alimentação da Amigos da Terra Europa, “este acordo facilitaria as atividades dos bancos e investidores da UE no financiamento do desmatamento nos países do Mercosul, agravando a ameaça que enfrentam as florestas e terras dessas comunidades”.

Com este tratado, “o setor de carnes terá a oportunidade de aumentar suas exportações ou, ao menos, de melhorar a sua rentabilidade graças à redução de taxas”, concluem os analistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Algo parecido acontece com a produção de soja. Neste caso, as exportações de soja do Mercosul para a UE, que alcançaram 2.19 bilhões de dólares em 2019, já estão livres de taxa, mas as empresas agroexportadoras pagam retenções na Argentina. Tais taxas devem ser reduzidas a um máximo de 14%, o que implica uma perda de soberania na política econômica do país austral. Isso em um setor que é crítico para a economia do país e que tem sido fortemente contestado pelo uso intensivo de água, terra e agrotóxicos, com implicações severas para a saúde humana  e dos territórios.

Menos garantias para os consumidores

Também diminuirão, em caso da assinatura do acordo, os controles nas alfândegas, o que preocupa setores críticos na Europa, em alerta para o excessivo uso de agroquímicos nas monoculturas de soja, além de hormônios e antibióticos nas enormes granjas. O relatório “O verdadeiro custo do Tratado UE-Mercosul”, da Amigos da Terra, documenta que o Brasil usa 149 pesticidas proibidos na Europa. O documento afirma ainda que a diminuição dos controles de produtos importados dos países do Mercosul poderia expor os consumidores europeus à ractopamina, um hormônio de crescimento que está proibido em 160 países, incluídos todos os da UE, mas que é utilizado na Argentina e no Brasil. Por tudo isso, há temores de que, se o tratado avançar, haja um impacto que prejudique a saúde dos cidadãos e cidadãs europeias.

Essa diminuição dos controles alfandegários e o incentivo à importação de carne bovina do Mercosul pode fazer com que a Espanha aumente o volume de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil e comercializada nos supermercados espanhóis –muito difícil de rastrear pelas deficiências da legislação atual, principalmente no caso de carne processada. Entre 2014 e 2019, a Espanha importou 48.157 toneladas de carne bovina do Brasil, sendo, em 2019, o quarto país europeu em volume de importações de carne bovina de áreas afetadas pelo desmatamento no Brasil.

Aumentar as exportações de soja e carne implicaria, além disso, um aumento das emissões de gases de efeito estufa que aprofundam a mudança climática, não só devido ao desmatamento ligado à expansão do modelo do agronegócio, mas também pelo aumento do transporte em navios de carga. Segundo a comissão de pesquisadores independentes que avaliou o impacto do acordo, isso significaria o desmatamento de 700.000 hectares nos seis anos seguintes à assinatura do tratado, especialmente na Amazônia. A Espanha é atualmente o terceiro país europeu em pegada de carbono associada à importação de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil, segundo um estudo recente da Earthsight.  

O risco dos protocolos ‘ad hoc’

O acordo, forjado ao longo de duas décadas de negociações, a maior parte do tempo secretas, está hoje em fase de “revisão técnica e legal”, o que em inglês é conhecido como scrubbing. Nesta fase, explica Ghiotto, é habitual que sejam introduzidas reformas importantes no texto, com uma falta de transparência ainda maior do que no resto do processo. Em seguida, o texto deverá ser traduzido a todas as línguas da UE, para passar à ratificação pelo Conselho Europeu e por cada um dos países do Mercosul. No caso de ser aprovado pelo Conselho, passaria aos parlamentos nacionais, mas não o texto completo: a parte crítica do tratado, relativa à política comercial, pode entrar em vigor ainda sem ratificação nos parlamentos nacionais, como já aconteceu com o TLC assinado entre a UE e a Colômbia.

Do lado europeu, foi colocado sobre a mesa a preocupação pelas políticas de meio ambiente do presidente Jair Bolsonaro: durante seu primeiro ano no poder, o desmatamento cresceu 85% no Brasil. Um relatório recente encomendado pelo Comitê de Meio Ambiente do Parlamento Europeu põe em dúvida a capacidade do Brasil de cumprir com tratados internacionais como o de Paris, e admite que o tratado não contém disposições que garantam a proteção dos ecossistemas e dos direitos humanos, já que o recurso legal só é aplicável a violações das cláusulas comerciais. Atualmente a Comissão Europeia está trabalhando na redação de anexos que amenizem as preocupações ambientais e climáticas de alguns governos, como o da França e Alemanha.

O tratado UE-Mercosul, da mesma forma que a maioria dos regulamentos comerciais, é muito concreto sobre os aspectos econômicos, mas não regula adequadamente os impactos sociais e ambientais. Este acordo foi elogiado pela inclusão de pontos sobre sustentabilidade, apesar da sua redação imprecisa e não vinculante, o que faz que a sua efetividade dependa da boa vontade de cada país. “Se a UE e os países do Mercosul realmente têm disposição de enfrentar a mudança climática, o desmatamento e frear as violações aos Direitos Humanos, o lugar para fazer isso e conseguir resultados é, respectivamente, a Convenção Quadro sobre a Mudança Climática, o Convênio sobre a Diversidade Biológica e o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, que está sendo negociado atualmente na ONU. Não neste, nem em nenhum Tratado de Livre Comércio disfarçado como Acordo de Associação” afirma Alberto Villarreal, coordenador regional do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Amigos da Terra América Latina e Caribe.

Ainda é difícil prever se o texto, ao menos seu braço comercial, vai avançar. Se isso acontecer no hemisfério sul, vai encontrar também, previsivelmente, oposição na Argentina, talvez o país mais prejudicado pelo acordo na sua redação atual – em especial pelo impacto que terá na indústria automobilística e de autopeças e, portanto, no emprego. São também polêmicas as cláusulas que obrigariam os Estados, nas suas compras públicas e o setor de serviços, a tratar de igual para igual as empresas dos países membros, com consequências que poderiam ser fatais para as pequenas e microempresas locais. 

“O problema é que não há um plano B: não estão sendo discutidas alternativas de reconversão das pequenas e microempresas e trabalhadores locais que sofrerão diretamente seu impacto”, explica Ghiotto. Segundo declarações recentes do governo português, que assume em janeiro a presidência rotativa da União Europeia, a ratificação do tratado será uma prioridade do seu mandato. Entretanto, os parlamentos da Áustria, Bélgica, Irlanda e Países Baixos já se posicionaram contra a ratificação. No momento, o Estado espanhol se posicionou como um dos maiores promotores do acordo, talvez porque, como sugere o militante de Ecologistas em Ação Tom Kucharz, serão beneficiários do tratado “empresas do Ibex 35 com presença nos países do Mercosul, tais como Telefônica, Santander, BBVA, Iberdrola e Gas Natural Fenosa”. O fato é que o apoio do governo espanhol ignora graves impactos econômicos para o setor agrário e a ameaça para a segurança alimentar dos consumidores, assim como o previsível aumento da pegada ecológica.

Santander financia empresas brasileiras da indústria de carne ligadas a desmatamento da floresta amazônica

Banco espanhol concedeu ao menos 1,37 bi de dólares às gigantes Marfrig, JBS e Minerva entre 2013 e 2019. Foi o segundo maior financiador, atrás apenas do britânico HSBC

Por: Nazaret Castro, con la colaboración de Amigos de la Tierra

O Banco Santander está entre as entidades financeiras europeias apontadas como financiadoras de empresas brasileiras da indústria da carne diretamente ligadas ao desmatamento da floresta amazônica. Assim demonstram os dados coletados pela ONG Global Witness junto à holandesa Profundo e que foram disponibilizados pela Amigos da Terra. Em meados de 2020, uma investigação do The Guardian, o Bureau of Investigative Journalism e Repórter Brasil demonstrou que, entre 2013 e 2019, diferentes bancos instalados em território europeu financiaram com 12 bilhões de dólares empresas como JBS, Marfrig e Minerva, que concentram, segundo dados do Greenpeace, 70% do gado que é criado e abatido na Amazônia brasileira.

Segundo os dados obtidos, o Santander contratou pelo menos 1,37 bilhão de dólares com essas empresas entre 2013 e 2019, majoritariamente através da compra de títulos, que alcançaram 1,36 bilhão de dólares. Marfrig foi, com grande diferença, a maior beneficiária dos investimentos do banco espanhol, com 1,12 bilhão de dólares em títulos. É, além disso, a empresa com a qual o banco teve um relacionamento mais continuado ao longo do tempo e foram observados investimentos praticamente todos os anos desde 2013, com exceção de 2015. A segunda empresa que recebeu mais financiamento do Santander foi a JBS, com 200 milhões de dólares em títulos em 2013 e, finalmente, Minerva, com 40 milhões em 2014. O Santander também adquiriu ações nas três empresas, por um total de 8,7 milhões de dólares. Neste caso, foi a JBS a principal receptora com cerca de sete milhões de dólares.

O Santander foi, assim, o segundo banco com o maior financiamento para essas três empresas, só atrás do britânico HSBC. No ranking geral está situado em sexto lugar, atrás de quatro bancos brasileiros, além do já citado HSBC. Não obstante, os dados foram elaborados a partir de informações públicas e poderiam estar incompletos. Os bancos, frequentemente, compram títulos e ações em representação de clientes que investem através de seus fundos de investimento, afirma o Bureau of Investigative Journalism.

JBS, Marfrig e Minerva são as principais empresas do setor do mundo. Entre elas, a JBS é a líder mundial. Em 2012, abateu diariamente 85.000 cabeças de gado, 7.000 suínos e 12 milhões de aves, que comercializou em 150 países.

Nos últimos anos, diversas investigações revelaram o vínculo que existe entre a indústria pecuária e a aceleração no desmatamento da floresta amazônica. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil (INPE), nove de cada dez focos de incêndio em áreas destinadas ao agronegócio foram em solo destinado à criação de gado. E outra investigação do Instituto Imazon mostrou que, em 2019, 70% dos incêndios aconteceram em áreas de compra de empresas da indústria da carne. “O Amazonas está sendo leiloado para a produção de carne; há estados onde há mais vacas que pessoas”, aponta Soledad Barruti, jornalista especializada em alimentação. “Os incêndios são a ferramenta necessária para o avanço desse modelo, que vai acompanhado da violência e da expulsão dos povos indígenas, que são os principais preservadores da natureza e dos territórios”, comenta a jornalista argentina.

O desmatamento na Amazônia disparou este ano, com um aumento de 9,5%, a cifra mais alta dos últimos 12 anos, segundo o INPE. Esta tendência vem se agravando com o governo de Jair Bolsonaro, já que, em 2019, seu primeiro ano de governo, o desmatamento na Amazônia cresceu 86% em comparação com o ano anterior e, no caso do Pantanal, um ecossistema igualmente biodiverso e vulnerável, o aumento foi de 573% segundo dados do INPE. Como alerta o relatório Queimando a Amazônia, da Amigos da Terra, esses números se devem, principalmente, à ação humana. 

“Os incêndios são uma das ações dentro desta rede bem articulada com o propósito de aumentar a exploração de bens comuns para obter lucro. Dessa maneira, se mantém a cadeia mundial de produtos básicos agroalimentares e minerais controlados por empresas multinacionais”, afirma Amigos da Terra, em um relatório. O documento destaca que a falta de supervisão dos fornecedores não exime as empresas de responsabilidade nesse processo.

No caso concreto da Marfrig, companhia que recebe o grosso do financiamento do Banco Santander destinado a essas empresas, a organização Global Witness apontou, em uma investigação recém publicada, que havia comprado, entre 2017 e 2019, 89 fazendas com mais de 3.300 hectares desmatados, “todos ilegais”, segundo o documento. Marfrig é considerada a segunda maior produtora mundial de carne de gado, uma empresa que exporta produtos para cerca de 100 países, incluindo a Espanha.

Evasão de responsabilidades

Segundo o relatório Restituir o Fornecimento de Alimentos da UE, da Amigos da Terra, quando a União Europeia calcula qual o seu impacto no desmatamento, não inclui o papel que desempenham as entidades financeiras que promovem esse modelo. “Os bancos desempenham uma função fundamental” há duas décadas, sublinha o relatório, que defende a imposição de uma obrigação juridicamente estrita e vinculante do dever de vigilância aos bancos, dentro do marco do futuro Tratado da ONU sobre empresas e direitos humanos, que está atualmente em negociação.

O Banco Santander rejeita sua cumplicidade com a devastação da floresta amazônica. “A entidade formulou políticas setoriais específicas que contêm critérios para analisar os riscos sociais e meio ambientais derivados das atividades de nossos clientes em setores sensíveis”, afirmou o Banco através de seu departamento de imprensa. A entidade afirma que teve em conta “os acordos que haviam assinado as processadoras de carne com o Greenpeace e o Ministério Público do Governo brasileiro em relação ao abastecimento de carne”. Além disso, comenta que “o Santander Brasil trabalha com uma empresa de imagens por satélite de vanguarda que monitora 5.000 propriedades” que financia. Essa empresa, cujo nome não foi revelado para a reportagem, “fornece informação diária sobre embargos relacionados com áreas desmatadas, trabalho em condições de escravidão e outros problemas”, de modo que “se for comprovada a existência de alguma situação ilegal, o Santander Brasil tem a faculdade contratual de declarar o vencimento antecipado da dívida e exigir o pagamento”.

O Banco Santander se refere ao acordo que surgiu quando, em 2009, uma investigação realizada pelo Greenpeace junto ao Ministério Público Fiscal brasileiro desmascarou o papel do setor da indústria de carne na destruição da floresta, como detalha o relatório A Farra do Boi. Dada a repercussão midiática do caso, a JBS, a Marfrig e Minerva assinaram, junto ao Ministério Público, um “compromisso de ajuste de conduta” (TAC ou Termo de Ajustamento de Conduta) e aderiram a “critérios mínimos para operações com gado e produtos bovinos em escala industrial no bioma Amazônia”.

“Lavagem de gado”

Entretanto, as empresas agropecuárias e seus fornecedores conseguiram evitar os compromissos assumidos no chamado “TAC da Carne”, como demonstraram investigações do Greenpeace, Repórter Brasil e Anistia Internacional. O Ministério Público não se mostrou severo com as violações dos compromissos: ao contrário, considerou satisfatórios os resultados de empresas com até 30% de compras irregulares em 2016 e optou por não punir nenhuma das companhias auditadas. Em 2018, uma nova auditoria do Ministério Público Federal detectou irregularidades em 19% das compras da JBS. A Marfrig decidiu não se submeter à fiscalização, então não existem dados a esse respeito.

O fato é que, uma década depois do acordo, aproximadamente 65% da área desmatada na selva amazônica é destinada a pastagens para o gado. Esse dado sugere que, além de irregularidades específicas, os sistemas de monitoramento sobre o fornecimento a essas empresas não estão funcionando. Isso acontece porque quando essas empresas afirmam que controlam a procedência de seus fornecedores, estão se referindo somente ao fornecedor final. A cadeia é muito mais longa e difícil de monitorar. É o que é chamado “lavagem de gado”: os fornecedores irregulares se encarregam da criação durante as primeiras etapas da vida do animal e vendem depois a um fornecedor que não está diretamente ligado a casos de desmatamento nem trabalho escravo. É esse proprietário “limpo” que se encarrega da etapa imediatamente anterior ao abate e da venda direta à empresa frigorífica.

Avanços na sustentabilidade ou no greenwashing?

Diante da pressão internacional, em 2020, Marfrig, Minerva e JBS reafirmaram os compromissos assumidos em 2009 e se isentaram dos escassos avanços até então argumentando que o sistema brasileiro de rastreamento de gado dificulta a análise dos “fornecedores indiretos”. A Marfrig Global Foods anunciou um ambicioso programa de sustentabilidade para a próxima década, com um orçamento de 500 milhões de reais, e se comprometeu a monitorar seus fornecedores na Amazônia de agora até 2025, e no Cerrado e em outros ecossistemas, até 2030. 

Para o Greenpeace Brasil, o verdadeiro problema é a falta de vontade política: “Se os compromissos tivessem sido assumidos com seriedade, o setor inteiro já estaria operando sobre critérios mínimos e controlando todos os fornecedores ao longo da cadeia, e o governo estaria apoiando com assistência técnica a concessão de créditos para aqueles que querem produzir provocando menos impacto”, aponta a organização. E a expectativa é que a atividade dessas empresas continue crescendo. Se estima que as exportações serão o principal motor do setor e que, para satisfazer a demanda nacional e internacional, o Brasil chegará a 2029 abatendo 52,9 milhões de cabeças de gado, 17,7% mais do que em 2019. Esse aumento será acelerado se acontecer a ratificação do tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul, segundo o qual Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai poderiam exportar 99.000 toneladas a mais de carne bovina para a UE com impostos reduzidos – o que poderia aumentar em 30% as exportações de gado para a UE.

Por sua parte, o Banco Santander, como também o Bradesco e Itaú, assinaram um compromisso com a preservação da Amazônia em julho de 2020. “Para que o plano seja eficaz, é fundamental que se intensifiquem as medidas de proteção da floresta amazônica, coordenando as ações dos bancos com o governo e as iniciativas públicas”.

O risco é que esse tipo de acordo derive em greenwashing (lavagem verde), através de medidas como a “promoção de instrumentos financeiros verdes” ou o apoio a tecnologias vinculadas à “bioeconomia”, que tem mais a ver com a chamada “economia verde”, que avança na financeirização dos bens comuns, do que com uma verdadeira aposta pela sustentabilidade.

A isso se soma, de novo, a ameaça da ratificação do acordo comercial UE-Mercosul, que pode supor o aumento do investimento em atividades de desmatamento por parte das instituições financeiras da União Europeia. Segundo Mute Schimpf, Responsável de Alimentação da Amigos da Terra Europa, “este acordo facilitaria as atividades dos bancos e os investidores da UE no financiamento ao desmatamento nos países do Mercosul, agravando assim a ameaça que as florestas e terras das comunidades enfrentam”.

Após denúncias, JBS promete vacinar trabalhadores em Greeley

Por: Redacción Bocado

Após nossa investigação “Diário de um matadouro”, realizada pela jornalista Wendy Selene Pérez, na qual denunciamos as péssimas condições do frigorífico da JBS em Greeley, no Colorado, Estados Unidos, o jornal Folha de S.Paulo informou que os funcionários da fábrica vão ser vacinados contra a COVID-19.

A JBS é uma das empresas de processamento de carne mais poderosas do mundo, e o frigorífico de Greeley é uma das suas maiores fábricas nos EUA. Esta não é a primeira vez que a JBS se envolve em escândalos. Durante a pandemia, somente nesse frigorífico, seis funcionários morreram e quatrocentos ficaram infectados. “Somos humanos descartáveis” resumiu uma trabalhadora sindicalista, para a nossa reportagem.

Para acessar a investigação Diário de um matadouro: https://bocado.lat/pt/diario-de-un-matadero-2/
Para acessar o artigo do jornal Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2021/02/apos-surto-de-covid-jbs-paralisa-fabrica-nos-eua-para-vacinar-funcionarios.shtml

México e Peru avançam na batalha contra o milho transgênico – e seus venenos

Por: Redação Bocado

2020 legou recordações sombrias para o mundo inteiro, mas no México terminou com gosto de esperança. No último dia do ano, o presidente do país, Andrés Manuel López Obrador, proibiu a plantação e o cultivo de milho transgênico e o herbicida que os acompanha – o glifosato.

Com isso, concretizou um dos avanços mais importantes da luta contra os transgênicos e estabeleceu que, desde a entrada em vigor do decreto até o último dia do seu mandato (em 31 de janeiro de 2024), se realizará um período de transição com o objetivo de “alcançar a substituição total do glifosato por alternativas mais sustentáveis e adequadas”. E colocou um ponto final às autorizações de plantios experimentais e plantações piloto, concedidas em 2009 pelo governo do ex-presidente Felipe Calderón.

Para ativistas rurais, indígenas, intelectuais e cozinheiros reunidos desde 2007 na campanha Sin Maíz No Hay País (Sem milho, o país não existe), as medidas são um grande passo para a preservação da soberania alimentar.

“O México produz 24,1 milhões de toneladas de milho branco em grão, destinadas à elaboração do principal alimento dos mexicanos, as tortillas”, explica ao Bocado o presidente da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade, Alejandro Espinoza Calderón.

“Dentro desse panorama, o decreto em questão é de suma importância, porque incide na produção do alimento a ser consumido pelo povo mexicano”, afirma o especialista, que vêm acompanhando de perto todo esse processo.

Em versão transgênica e em contato com o glifosato, o milho implica riscos. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, catalogou o glifosato como um provável carcinogênico em humanos e, após receber 125 mil processos, a Bayer-Monsanto teve que indenizar as vítimas dessa substância em 10 bilhões de dólares.

“No México, o glifosato é utilizado em uma grande variedade e quantidade de cultivos. Em grãos e cereais como milho, sorgo, arroz, trigo; oleaginosas como cártamo, girassol, soja; frutas como abacate, manga, goiaba, mamão, maçã, banana, laranja e vinhedos, só para mencionar alguns casos”, conta Calderón.

O decreto de López Obrador estabelece textualmente que, além de proibir, propõe-se buscar alternativas que “permitam manter a produção e que sejam seguras para a saúde humana e para a biodiversidade cultural do país e do ambiente”. Na seção “Desenvolvimento Sustentável” do Plano Nacional de Desenvolvimento 2019-2024 mexicano, existe um projeto que busca “alcançar a autossuficiência e a soberania alimentar”.

O México é um país com ampla biodiversidade, especialmente em relação ao teocintle – espécie mais popularmente conhecida como o antepassado do milho, a forma que o grão tinha há milhares de anos.

De acordo com a Comissão Nacional para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade, estima-se que haja no país 59 variedades nativas de milho.

Para o Greenpeace México, o decreto presidencial paga uma dívida histórica com a diversidade genética. Mas o Conselho Nacional Agropecuário do México expressou seu desagrado com a medida ao mencionar, em sua opinião, a desvantagem produtiva que a medida implica em comparação com outros países.

A decisão será implementada pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que vai coordenar e promover pesquisas científicas com objetivo de encontrar alternativas ao uso do glifosato, além de emitir recomendações anuais. Também vai impulsionar reformas constitucionais ao lado das secretarias de Meio Ambiente e Recursos Naturais, Saúde, e Agricultura e Desenvolvimento Rural.

Peru

A batalha pela defesa do milho nativo, e com ele da cultura do campo e da cultura alimentar em todo o país, também teve um grande triunfo no Peru em dezembro do ano passado: foi ampliada a moratória implementada em 2011, que impede o plantio de sementes modificadas geneticamente. Assim, se mantém a proibição de entrada no país e da produção de organismos vivos modificado (OVM) com o fim de “fortalecer as capacidades nacionais, desenvolver a infraestrutura e gerar linhas de base em relação à biodiversidade nativa, que permita uma avaliação adequada das atividades de liberação de OVM ao ambiente”.

Com isso, também ganhou 15 anos uma luta que parecia perdida em meados do ano passado, quando em plena pandemia o agronegócio quis aproveitar a conjuntura para derrubar a moratória.

“A estratégia do lobby Monsanto-Bayer foi dirigida ao interior do Estado, com a colocação, em cargos públicos, de especialistas próximos a eles. Por exemplo, na direção do Ministério de Agricultura e Riego, no Ministério do Ambiente e na Comissão Nacional para a Inovação e Capacitação no Agro, liderada por Alexander Grobman, presidente da PeruBiotech, uma empresa próxima do lobby pró-transgênico”, enumera Karla Gabaldoni, integrante da rede Slow Food no Peru e membro do Consórcio Agroecológico Peruano, à reportagem.

Gabaldoni elenca outras interferências: “A participação ativa da Bayer aconteceu por meio da intervenção direta no Regulamento Interno Setorial sobre Segurança da Biotecnologia, para o desenvolvimento de atividades com organismos vivos modificados no setor agrário, conhecido como Ribsa”. Também menciona a presença da empresa em entrevistas com outros órgãos públicos e meios de comunicação.

O Peru também é um país com uma tradição agrícola de mais de 10 mil anos e ampla biodiversidade. Só de batatas, conta com 4 mil variedades. A entrada de cultivos transgênicos põe em risco seu sistema alimentar, por isso encontra resistência maior no interior do país e nas cozinhas dos lares peruanos. “No Peru, 50% das crianças padecem de anemia e desnutrição”, afirma Gabaldoni. “O acesso a uma alimentação saudável e nutritiva com produção diversa local é necessária e urgente.”

Hoje a ampliação da moratória permite que o país continue a se desfazer, de forma paulatina, do uso de sementes geneticamente modificadas com o fim de preservar uma das culturas alimentares mais valiosas da humanidade.

Essas conquistas não significam que a ameaça desapareça – com a moratória em plena vigência, soube-se que em lugares como na província de Piura 63,1% dos cultivos haviam sido contaminados com genética da Monsanto e algo semelhante aconteceu ao longo dos anos em Estados mexicanos, apesar da vigência, desde 2013, de uma medida cautelar.

No entanto, decreto e moratória são um grande impulso aos ativismos em prol do bem viver e da soberania alimentar, que tanta falta fazem em todo o continente.

Rotulagem contra as doenças que nos matam

Em documento, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) cataloga a rotulagem frontal de advertências como um instrumento de política capaz de prevenir doenças não transmissíveis. Assim, o maior fator de invalidez e morte da região poderia encontrar na informação um antídoto seguro e de baixo custo. Se o lobby permitir, claro.

Por: Redação Bocado

Nas Américas, 44% das mortes têm como causa enfermidades que possuem relação com dietas pouco saudáveis, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas – organismo especializado no tema para o continente, e que é parte da Organização Mundial de Saúde – OMS – desde 1949). Ou seja, 4 em cada 10 latino-americanos morrem devido a doenças causadas por sua própria alimentação. “Se as pessoas não consumissem nenhum produto processado ou ultraprocessado, a alimentação seria muito melhor do que a que existe hoje em dia”, disse o médico e pesquisador Carlos Monteiro, integrante do Grupo Assessor de Especialistas em Recomendações de Nutrição da OMS, durante o evento organizado pela Opas.

No início deste mês, a organização realizou virtualmente o lançamento do documento “A rotulagem frontal como instrumento de política para prevenir doenças não transmissíveis na Região das Américas”. O evento teve duração de duas horas e foi dividido em cinco partes: as boas-vindas do diretor, a apresentação do documento, diálogo entre os expositores convidados, respostas às perguntas que surgiram durante a transmissão e palavras de encerramento.

O público foi muito ativo, tanto no fórum de comentários como no de perguntas e respostas. Foram enviadas 68 perguntas, cujas respostas haviam sido contempladas no completo documento elaborado pela instituição.

Durante o fórum virtual, a Opas apresentou um documento de 36 páginas, em que explica os sistemas de rotulagem existentes e o melhor perfil de nutrientes possível. O material também contém uma série de 13 prováveis perguntas frequentes, com possíveis argumentos contrários aos postulados da entidade e respostas. 

Carlos Monteiro assinalou, em várias ocasiões, que o sistema de rotulagem proposto pela Opas está diretamente associado com os critérios da OMS e corresponde à evidência científica mais sólida atualmente. Isso significa também que qualquer mudança feita pela OMS em suas recomendações de dieta em relação a nutrientes e níveis críticos geraria mudanças imediatas nos parâmetros de rotulagem da Opas.

Benn McGrady, oficial técnico legal do Departamento de Doenças Não Transmissíveis da OMS, insistiu em uma mensagem direta: move forward, ou seja, sigamos em frente, avancemos. De acordo com McGrady, devido à lentidão do processo (aproveitada por lobistas para tornar mais lenta também a aplicação de políticas públicas), é preciso prescindir do Codex Alimentarius (órgão da OMS que propõe uma coleção de normas, diretrizes e recomendações relacionadas com alimentos, produção e inocuidade). O técnico considera também que a harmonização muitas vezes exigida, por parte dos participantes de blocos – como o Mercosul -, não requer o diálogo de todos com todos, e que são suficientes as individualidades de cada país.

Após duas horas de exposições, debates e perguntas, os especialistas da Opas terminaram o evento enfatizando três pontos-chave: harmonização, direitos humanos e sustentação científica. Harmonização que aconteceria através de decisões individuais de cada país; inação por parte de alguns países, o que a entidade considera uma violação aos direitos humanos; e lei de rotulagem como expressão da evidência científica mais forte no momento.

A lei de rotulagem frontal de advertência, medida à qual se aventuraram vários países – Chile, Peru, Uruguai, mas que foi aplicada de forma mais aprofundada no México -, salva vidas. É uma garantia de direitos humanos e se baseia na melhor evidência científica disponível até agora, o que a leva a ter o aval da Organização Mundial da Saúde. Funciona. Por isso gera tanta resistência entre os que buscam defender os interesses das marcas e que baseiam grande parte do seu negócio em vender produtos desnecessários, que afetam a saúde – e sobre os quais seus consumidores são pouco ou nada informados.

Esse material espera ser uma ferramenta de consulta para divulgar por que é preciso avançar em políticas públicas de rotulagem frontal nos países onde elas não existem.

Veja o documento completo neste link: https://iris.paho.org/handle/10665.2/52740

Fim do recreio para os ultraprocessados nas escolas de Yucatán

O México é o país que mais sofre os estragos do sistema alimentar, com uma população cada vez mais doente por conta do que come (e do que não come). Mas também é onde estão sendo aprovadas mais e melhores políticas públicas. Desde uma rotulagem clara em território nacional até a proibição de vender comidas e bebidas a crianças em sete Estados. A última medida é a “expulsão” dos ultraprocessados nas instituições de ensino de Yucatán.

Por: Redação Bocado

Os dados são alarmantes. Em Yucatán foram registrados casos de hipertensão arterial em crianças entre 6 e 12 anos, uma situação assustadora que fica ainda pior ao estar associada à taxa de obesidade. Porque, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o México é um dos países com maior índice de sobrepeso e obesidade no mundo — o sobrepeso atinge 70% da sua população —, e Yucatán, um dos 32 Estados mexicanos, é uma das regiões onde as estatísticas geram maior preocupação.

Para combater a obesidade, indica a OMS, é preciso começar desde cedo, porque as crianças com sobrepeso possuem maiores probabilidades de se tornarem adultos obesos. E no México a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição registrou um crescimento que oscila entre 7,8% e 9,7% em relação à prevalência de sobrepeso e obesidade em menores de cinco anos, entre 1988 e 2012.

A esse panorama inquietante somam-se outros dados: 1,2 milhão dos menores de 5 anos que moram no México apresentam anemia crônica, e 12,7% dessa população padece desnutrição crônica, segundo informações dos Serviços de Saúde de Yucatán (SSY) referentes ao período entre 2012 e 2018.

Desnutrição, anemia, hipertensão, obesidade e sobrepeso são fatores preocupantes, ainda mais no universo dos pré-escolares. Tanto que as autoridades aprovaram medidas importantes. Assim como deram luz verde a um sistema de rotulagem de alimentos em território nacional — e que aperfeiçoou seu antecedente chileno —, governantes de vários Estados mexicanos estão dando novos passos.

Em Yucatán, o congresso local reagiu frente aos dados. Em 26 de novembro, modificou sua Lei de Nutrição e Combate à Obesidade com um adendo taxativo: proibiu a distribuição, venda, oferecimento e abastecimento de alimentos e bebidas não alcoólicas com excesso de sódio, gorduras e açúcares nas escolas de nível pré-escolar e fundamental. Ou seja, proibiu que sejam entregues ultraprocessados a crianças menores de 12 anos.

A medida é importante porque a escola é a segunda casa de uma criança. É o que diz o Instituto Nacional de Saúde Pública, ao indicar que estudantes menores de idade consomem 50% das suas calorias diárias dentro do ambiente escolar.

Mas as mudanças impulsionadas pelo governo de Yucatán vão além: ordenam que as escolas de educação básica fomentem competições esportivas e bons hábitos alimentares; e que promovam o consumo de água potável ou a ingestão de produtos orgânicos cultivados pelos mesmos alunos (apesar de ser conhecida a realidade de que são poucas as escolas com bebedouros e ainda menos as que vendem frutas ou verduras). Outra nova regra determinada pela administração local é que os alunos do curso de nutrição possam colocar seus serviços à disposição da educação básica, com a possibilidade de realizar um acompanhamento pessoal dos alunos. O fim é prevenir casos de obesidade ou desnutrição e, se preciso for, tratá-los em tempo e forma.

Yucatán está deixando claro qual é o foco. Constatados seus altíssimos índices de obesidade, o combate a essa realidade com medidas concretas. Os objetivos são claros: conscientizar e proibir alimentos prejudiciais ao corpo desde cedo. Ou seja: formar pessoas saudáveis.