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Carrefour e Pão de Açúcar se recusam a informar sobre trabalhadores infectados

por Victor Matioli e João Peres
Publicado em 29 junho 2020
O crescimento das vendas dos supermercados foi, no mundo dos negócios, altamente celebrado em meio à pandemia de Covid-19. “Todos os dias como 23 de dezembro”, diz um CEO, deixando de fora das celebrações os danos ‘colaterais’ do fenômeno: os contágios a que foram expostos os funcionários, na linha de frente que recebe multidões

Até meados de março, Madalena tinha uma das profissões mais seguras do mundo. Trabalhava sentada, a poucos metros de seguranças armados, cercada de colegas e clientes. Mesmo com a rotina desgastante, nada a ameaçava diretamente. Mas a pandemia de Covid-19 mudou tudo; hoje, poucas profissões são mais arriscadas que a dela.

Madalena vive na zona norte de São Paulo, tem 41 anos e trabalha há três em uma unidade do Atacadão, a linha de atacarejo do grupo Carrefour. É uma mulher direta, sem rodeios, que fala de si no plural, incluindo em sua história a tragédia de outras 20 mulheres com quem compartilha o turno das 8h. Esquecidas pela empresa, aprenderam a cuidar umas das outras.

O Atacadão sempre foi próspero, mas desde o início da quarentena convocou multidões em busca de preços baixos para encher o armário com enlatados, congelados e produtos de limpeza. As imagens registradas por clientes e funcionários mostram cenas de guerra: as pessoas rapando as gôndolas, empregados exaustos tentando repor os produtos que se esgotam.

O Jaraguá, bairro no qual se passa essa história, nunca foi um lugar fácil. Favelas e cortiços fazem do distanciamento social algo impossível. Não faz falta o vírus: a idade média ao morrer é de 61 anos, segundo o levantamento da Rede Nossa São Paulo. Quinze ou vinte a menos que nos bairros de classe alta. Mas, em junho de 2020, faz parte de um cinturão que responde pela maior parte das mortes, na cidade que tem mais mortes, do país que tem mais mortes na América Latina.

Nos atacarejos não há música, não há ar-condicionado, não há espaço entre as gôndolas e o teto. Cada corredor tem um cheiro diferente, quase sempre desagradável, e os clientes parecem ter se acostumado a conviver com embalagens violadas, frascos quebrados e produtos espalhados pelo chão.

O carrinho de uma senhora ostenta, sobre uma montanha de ultraprocessados, um resistente maço de salsinha. Um corpo estranho. É isso que os vegetais se tornaram por aqui: um luxo. Um apetrecho quase desnecessário em meio ao êxtase colorido de embalagens plásticas que anunciam a tragédia social, ambiental e sanitária que vai se aprofundando.

“Não tem nem como ter uma segurança porque ficam todos os clientes em cima da gente. Eles implantaram uma portinha lá pra gente pra ficar afastado, mas, mesmo assim, os clientes não respeitam”, nos disse Madalena, por telefone, no começo de abril. “Colocaram faixas indicando pra ficar a um metro e meio longe da gente. Não ficam porque já é um ambiente que não respeitam, mesmo. Então, fica difícil. E o pessoal [do Atacadão] não tá tomando a providência perfeita, que seria eliminar tanto cliente pra entrar, aglomeração.”

Clientes e empregados se tocavam, vítimas de um sistema impiedoso que se ergue sobre as diferenças, a ponto de o direito à saúde ser, também, um luxo. “A gente vai se foder”, disse um homem, num vídeo registrado exatamente no Atacadão de Taipas logo no começo da quarentena, em 21 de março. As mortes no Brasil apenas começavam a dar a cara, mas já se vislumbrava o caos.

Compras de guerra para um cenário imprevisível. “Foram sete dias como se fosse 23 de dezembro. O time precisou ser muito guerreiro, com muita garra para atender aquele movimento que veio”, afirmou Belmiro Gomes, CEO do Assaí, rede de atacarejos do Pão de Açúcar, durante a apresentação dos resultados do primeiro trimestre. Ele projetava um crescimento de 20% nas vendas para os meses seguintes.

Do mercado ao supermercado

O supermercadismo é uma febre que se apossou da América Latina entre o começo e a metade dos anos 1990. As fronteiras se abriram de vez à importação de alimentos, os sistemas alimentares locais foram rotulados como marcas do atraso e os alimentos ultraprocessados acabaram abraçados como sinais da modernidade.

O sucesso é inegável. No Chile, mais de 50% da comida é comprada nos supermercados. Em Honduras, no México, no Peru, três empresas controlam cerca de 90% do setor. Walmart, Casino, Carrefour, Cencosud, Oxxo: nada muda.

Esse êxito foi acompanhado pelo aumento das doenças crônicas não transmissíveis, principal causa de mortes da região, que conta com alguns dos piores indicadores do mundo em prevalência de diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, câncer e obesidade.

O campo também sofreu as consequências. O agronegócio dissolveu fronteiras, e aglutinou Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia na República Unida da Soja, com quase 90 milhões de hectares de uma planta que se utiliza para alimentar animais em escala industrial ou produzir ultraprocessados. No Brasil, a produção de milho transgênico passa de 18 milhões de hectares.

Hoje, os alimentos ultraprocessados respondem por quase 20% das calorias consumidas diariamente. Ao longo do século, o consumo per capita de feijão caiu 50%, enquanto o arroz perdeu 37%.

Nesse cenário, Carrefour e Pão de Açúcar controlam um terço do varejo alimentar brasileiro. E vivem a euforia da pandemia. Nas duas últimas semanas de março, o Carrefour registrou 20,9% de crescimento nas vendas, enquanto o rival fechou o trimestre com aumento de 56,5%.

Mas são vendas diferenciadas. Os mais ricos compram pela internet e recebem as compras em casa. Os pobres colocam o corpo em risco, amontoando-se em frente às gôndolas do Atacadão e do Assaí. Hoje, 70% das vendas do Carrefour estão no atacarejo; no Pão de Açúcar, em torno de 60%.

O “atacarejo” é como o coronavírus: vai bem na riqueza, mas vai melhor na pobreza. O modelo se consolidou e foi abocanhado pelas duas redes durante os anos Lula. Mas, agora, é crucial. Motoristas de Uber, diaristas, assistentes de telemarketing, funcionários do comércio, recepcionistas, professores, vendedores de comida de rua: cada vez mais gente está lá dentro.

Um jovem casal escolhe uma caixa com 36 hambúrgueres. Um senhor analisa os preços de pacotes com dezenas de salsichas. Mães com crianças – muitas, sozinhas ou acompanhadas – levam iogurtes, biscoitos, salgadinhos, leite em pó, achocolatados.

Perguntamos a uma senhora se há sacolões em Parada de Taipas, onde podemos encontrar frutas, legumes e verduras. Ali, no Atacadão, é o melhor lugar, ela diz, enquanto caça frutas que tenham se salvado da podridão.

Enquanto andávamos pelo Atacadão, poucas semanas antes da pandemia, uma garrafa de energético se esvaziava, jogada sobre outros produtos; cinco quilos de alho escorriam por um pote enorme virado perto da seção de pães; um senhor se equilibrava sobre a fina camada de pó branco acumulada em frente à prateleira das farinhas de trigo.

Corpocentrismo

Quando conversamos pela primeira vez, Madalena não escondia a tensão de ser quem levaria o coronavírus para dentro de casa. Como ficariam o marido, as filhas, a sogra?

Passados 45 dias, telefonamos outra vez. As notícias não eram boas. Com febre, falta de ar, dores no corpo e ausência de olfato e paladar, a operadora de caixa se recuperava da infecção pelo novo coronavírus.

— Onde você recebeu o diagnóstico?
— No trabalho. Estava suando frio, passando mal.
— E você disse a alguém?
— Sim, imediatamente. Pra supervisora.
— E ela?
— Ignorou. Aí eu chamei o segurança e falei ‘olha, eu vou abandonar o caixa porque eu vou desmaiar’.

No pronto-socorro, ouviu de um médico que seu pulmão estava “manchado” e que deveria permanecer em casa por cinco dias. O protocolo oficial do Ministério da Saúde, entretanto, afirma claramente que as pessoas infectadas e que apresentam sintomas leves devem permanecer em isolamento domiciliar por pelo menos 14 dias. Madalena conseguiu um atestado de apenas sete.

Eles estão limitando a quantidade de clientes, mas quando uma pessoa sai já entra outra. Antes não era assim. Principalmente nas duas últimas semanas do mês, era muito mais tranquilo.”

Enquanto isso, os diretores do Carrefour celebravam em os resultados financeiros do primeiro trimestre na teleconferência ao mercado financeiro. “O que estamos vendo pra frente é um cenário também muito bom”, resumiu Roberto Mussnich, presidente do Atacadão. “Um cenário onde nós, como temos um modelo excepcional, que mantém um equilíbrio muito bom entre custo baixo e preço baixo, estamos sendo entendidos e ganhando novos clientes. Somos uma solução para a pandemia. Não uma solução médica, é claro. Mas uma solução para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.”

Diz o documento oficial da empresa que foram instalados painéis de acrílico nos caixas e distribuídos máscaras e luvas. “Essas medidas estão em total conformidade, ou até foram além, das regras recomendadas pelas autoridades de saúde e que foram compartilhadas com a indústria.”

Camila*, que trabalha na reposição das prateleiras do Atacadão de Taipas, diz que a propalada eficiência está distante da realidade. “O movimento é bem maior do que era antes da pandemia”, nos disse. “Eles estão limitando a quantidade de clientes, mas quando uma pessoa sai já entra outra. Antes não era assim. Principalmente nas duas últimas semanas do mês, era muito mais tranquilo.”

Como se fosse segredo

Em meados de maio, no Atacadão de Taipas, havia em torno de 30 empregados afastados, como nos relatou uma fonte que trabalha na unidade. O número não é oficial, já que o Carrefour se negou a fornecer informações sobre funcionários infectados ou sob suspeita. “Os dados são de uso interno”, alegaram. O Pão de Açúcar tampouco quis fornecer informações.

A Secretaria da Previdência do Ministério da Economia não tem qualquer dado sobre o número de infectados por setor econômico. Simplesmente não sabemos quantos trabalhadores de supermercados ficaram doentes ou morreram.

Uma das poucas informações disponíveis foi fornecida ao final de abril pela Associação dos Supermercados do Rio de Janeiro. Naquela altura, espantosos 7% dos 200 mil trabalhadores já haviam sido afastados por infecção ou suspeita de. Depois disso, a organização não divulgou novos números.

Algumas das ações judiciais vencidas pelo Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro dão uma ideia do tamanho das violações. Foi somente ao final de maio que o principal supermercado das áreas ricas da cidade acabou obrigado a fornecer máscaras aos funcionários e a limitar a densidade de clientes nas lojas.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) em São Paulo registrou 1.453 denúncias de violações relacionadas à Covid-19 até o dia 13 de maio. Dessas, 45 eram sobre supermercados. As queixas resultaram na abertura de 15 inquéritos para investigar as condutas dos varejistas. As alegações são tão diversas quanto graves. A mais comum é de não fornecimento de equipamentos de proteção, seguida de perto pela permissividade com a formação de aglomerações.

Uma semana depois de quase desmaiar em serviço, ainda com dores no corpo, Madalena voltou a trabalhar. Que esperava encontrar? As cenas que se veem sempre nesse lugar: bebidas abertas e largadas no chão, sacos de farinha abertos, clientes que tentam esticar o dinheiro ao máximo, queixas e desentendimentos. E, agora, também, pessoas que temem e não sabem como enfrentar o vírus.

Sobre o suporte que recebeu da empresa, lamenta: “Não me mandaram mensagem, não me ligaram, nada. Só recebo mensagens das minhas colegas mesmo. Mas deles não, não se preocuparam com nada.”

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das fontes.