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Fritar, rezar
e (sobre)viver

por Fernando Silva e Jennifer Avila Contracorriente
fotos Martín Cálix Contracorriente
Publicado em 29 junho 2020

Honduras: um dos países com mais fome na América Latina. Um país de fertilidade rural que foi secando, violentando seus campos com monocultivos de palma africana das quais só se pode extrair um óleo que serviria para cozinhar se houvesse comida. Nesse contexto, chegou a pandemia, que se converteu num confinamento que agravou a pobreza e ao qual o governo deu uma resposta horrível: entregar às pessoas pacotes de farinha e folhetos bíblicos, como se fosse fé o que faz falta

Donaldo Madrid tem 30 anos e 4 filhos. É “O” taxista de Tegucigalpa: o que sabe todos os atalhos, todos os preços, todos os endereços, onde está tudo, onde estão todos. Quando criança, sonhava em ser jogador de futebol, e tentou, mas uma lesão o levou ao ofício que estava à mão. A seguir os passos do pai. Agora a pandemia o impediu de exercer esse trabalho, que por 13 anos sustentou a família. Faz três meses e meio. Por isso simplesmente cobriu o número de registro de táxi e converteu o automóvel em serviço de delivery de legumes e frutas, pão ou o que quer que se encomende.

Em 16 de março, as autoridades hondurenhas, lideradas pelo presidente Juan Orlando Hernández e pelo Sistema Nacional de Gestão de Riscos, iniciaram uma série de medidas restritivas diante do registro do primeiro caso no país, reportado na capital. Tegucigalpa tem em torno de 800 bairros, dos quais 74% estão em condições vulneráveis.

Pobreza, violência e falta de serviços públicos. São o reflexo do que ocorreu na urbanização hondurenha desde os anos 1980: famílias do campo chegaram às cidades esperando oportunidades de trabalho que nunca apareceram ou que foram precárias.

A maior fonte de emprego é a burocracia estatal. Fora isso, o setor informal abriga 70% da população economicamente ativa. As ruas são imensos mercados de frutas e verduras, roupa usada importada dos Estados Unidos, sapatarias, comida tradicional, oficinas que consertam tudo o que se queira, o lugar no qual se encontra tudo o que se necessita.

Antes da pandemia, Donaldo se virava também da venda de roupas, sapatos e materiais escolares. Queria tirar o máximo proveito do carro porque o serviço de táxi já não bastava para pagar as contas. O automóvel era o motor da economia e da unidade familiar.

À margem da cidade

Diante da quarentena, muitos dos que não tinham opções ou tiveram os empregos suspensos voltaram ao interior para viver com as famílias. Apesar da fertilidade da terra e da exuberância das paisagens, no campo se vive na precariedade por causa dos múltiplos conflitos que ceifaram centenas de vidas. Essa é a história da América Central: as guerras civis que se deram em vários países foram impulsionadas por processos fracassados de reforma agrária e, apesar de Honduras não haver declarado guerra, a violência chegou aos campos através de um estado contrainssurgente.

Hoje em dia, a atenção está nos efeitos das mudanças climáticas, com um acelerado processo de expulsão das terras em prol do monocultivo, como o óleo de palma. O campo deixou de ser o lugar da segurança alimentar para garantir as fontes de energia dos países do Norte. Como dizem os camponeses: “Agora temos o óleo para cozinhar, mas não a comida.”

Na zona mais produtiva do país, o Bajo Aguán, no norte de Honduras, se trava um conflito agrário iniciado na década passada, e que se agravou depois do golpe de Estado de 2009. A disputa de terras entre camponeses e empresas de exportação de óleo de palma causou em torno de 120 assassinatos entre 2008 e 2010. Sempre agricultores e agentes privados de segurança.

Segundo a Secretaria de Agricultura e Pecuária, em 2018 os cultivos da palma africana abarcaram 1.900 quilômetros quadrados, superfície mais extensa que a de Bogotá ou da Cidade do México (com 22 milhões de habitantes).

No Vale de Quimistán, no oeste do país, o monocultivo de cana de açúcar desbancou a produção de grãos básicos. Segundo o Movimento Ambientalista Santabarbarense (MAS), 60% das terras são dedicadas à cana.

A seca está acabando com qualquer forma de agricultura. O corredor seco, que abriga 174 dos 298 municípios hondurenhos, enfrenta uma estiagem que se agravou nos últimos anos. Nessa terra arrasada chegou a pandemia. Um documento publicado pela organização não governamental Eurosan Occidente indica que em Honduras “a quarentena demonstrou a falta de acesso de algumas pessoas a bens e serviços essenciais”. Também expôs a ausência de proteção social. E como esses dois problemas pioraram com os efeitos das mudanças climáticas.

A resposta estatal foi o programa Honduras Solidária. O governo prometeu uma provisão de alimentos a 3,2 milhões de pessoas, mas desde o início, em março, pipocam denúncias sobre irregularidades e falta de transparência. A bolsa é insuficiente, com poucos alimentos, mas chega recheada de folhetos bíblicos.

“Há gente que reduziu a frequência da alimentação. Estão comendo só uma vez ao dia. Só se mantêm graças à recuperação da comida tradicional. Por exemplo, tomam pinol (bebida à base de milho) porque não há nada para jantar”, conta Betty Vásquez, coordenadora do MAS.

Betty é baixa, tem olhos grandes e carinhosos que surgem detrás dos óculos. É do povo Lenca, que está espalhado por boa parte do país. Há mais de vinte anos ela defende o direito ao território e aos bens naturais, em contraposição ao racismo que busca invisibilizar os indígenas.

Nessas regiões, diz Betty, não se pode dizer que exista fome, porque as pessoas conseguem alimentos básicos, mas há escassez, agora agravada pela Covid-19.

Betty alerta que a cesta básica entregue pelo Estado, além de insuficiente, inclui produtos nocivos. “É uma dieta que não nutre e não reduz o nível de vulnerabilidade na saúde.” Somando a comida tradicional e a ajuda estatal, as famílias do campo conseguem não morrer de fome, mas viver com ela.

Sobreviver

Donaldo tem uma família numerosa. Vive com a esposa e três filhos. Os avós vivem por perto. Na mesma rua estão os sogros e outros parentes. Ele já foi mecânico de automóveis, trabalhou de atendente em uma loja de roupa e foi técnico de futebol.

Agora, se virando na crise, Donaldo tem uma pequena loja de frutas, legumes e pão, e vai pelas ruas oferecendo os produtos. Como não tem autorização, se vira para escapar das barreiras policiais. Ele e sua família labutam de oito da manhã às sete da noite, quando tem início o toque de recolher. Não há outro negócio desse tipo na vizinhança, então, ele consegue ganhar até mais do que antes da pandemia.

“As pessoas foram vendo que somos os únicos que vendem. Além disso, meus clientes como taxista começaram a pedir que os levasse os legumes.” Ainda que isso tenha sido um risco, já que no mercado público no qual compram os alimentos foram identificados casos de Covid-19.

Uma pesquisa do Programa Mundial de Alimentos da ONU, realizada em abril em 444 mercados tradicionais de Honduras, conta que “houve aumento de preços em todos os produtos por um aumento por parte dos fornecedores, dificuldade de compras e escassez”.

Os mercados em Honduras estão repletos de cores, cheiros e barulhos. São os lugares nos quais as pessoas mais pobres podem ter acesso a uma boa alimentação, e no qual famílias pobres conseguiram ascender economicamente comercializando roupas, por exemplo.

Desde o começo do toque de recolher, houve incêndio em dois mercados importantes do país. Até o momento, o governo não ofereceu qualquer ajuda às famílias afetadas pelo fechamento, e muitas acabaram reabrindo na rua, em desafio ao toque de recolher.

Em meio à reabertura econômica escalonada, Donaldo tentava seguir com seu negócio quando o sogro morreu com suspeita de Covid-19. Toda a família teve de permanecer em quarentena para, ao final de 15 dias, descobrir que o exame do sogro havia dado negativo.

“Ninguém veio checar se estávamos de fato em quarentena”, afirma. “Tínhamos medo pelas crianças, buscamos ajuda, inclusive na Cruz Vermelha, onde disseram que deveríamos esperar por uma chamada para agendar exames, mas nunca ligaram.”

Esses pacotes são suficiente para dois dias. Somos oito na minha família e a verdade é que o governo mentiu"

Em 19 de junho, o governo emitiu uma ordem para fechar seis mercados da capital diante do aumento exponencial dos casos de infecção por coronavírus. Donaldo testemunhou a repressão policial aos locatários que se recusavam a baixar as portas.

Agora, ele e a família tentam se proteger do vírus como podem: compraram óculos para cobrir os olhos e tentam encontrar uma máscara segura, que é muito cara. Com recursos insuficientes, recebem as cestas básicas do governo. “Esses pacotes são suficiente para dois dias. Somos oito na minha família e a verdade é que o governo mentiu, porque haviam dito que, como os taxistas não podiam seguir trabalhando, receberiam os alimentos, mas o que nos chega é essa bolsinha que traz manteiga e sabão.”

Na maioria dos casos, a cesta básica contém arroz branco, feijão, açúcar, sal, café, macarrão, molho de tomate, farinha de milho, farinha de trigo, margarina, duas latas de sardinha, álcool gel. E um folheto de versículos bíblicos. Um dos problemas é que o tamanho e o conteúdo não são padronizados.

“Aspectos logísticos fizeram modificar a decisão do Estado porque a bolsa era muito pesada e impossibilitava que todos, de maneira simultânea, pudessem receber”, alega o engenheiro Omar Rivera, do Foro Nacional de Convergencia (FONAC), encarregado da distribuição. “A última pessoa receberia só depois de quatro meses. Então, o que se fez foi determinar bolsas menores, que duram entre sete e 15 dias, para chegar a mais gente.”

A inclusão de material religioso pode surpreender, mas, em Honduras, não é novidade. Desde o golpe de Estado de 2009, e com a chegada de Juan Orlando Hernández ao poder, acelerou-se o processo de osmose entre o Estado e a igreja. São grupos neopentecostais que se envolveram ativamente em órgãos de governo, programas militares dirigidos a menores e decisões geopolíticas, como a abertura de um escritório comercial de Honduras em Jerusalém. Os folhetos foram doados pela Confraternidad Evangélica de Honduras.

A Secretaria de Finanças diz ter investido US$ 36 milhões nas cestas básicas. Um relatório indica que 27 empresas foram contratadas como fornecedoras, entre elas, a Dinant, maior processadora de azeite de palma do país.

O documento Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e do Caribe, de 2018, elaborado pela FAO, pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Unicef e pelo Programa Mundial de Alimentos, registra 1,4 milhão de hondurenhos subalimentados. 42% das crianças sofrem desnutrição crônica. E 56% dos adultos apresenta obesidade ou sobrepeso.

Um relatório do Conselho Agropecuário Centro-americano registra em Honduras 100 mil hectares de produção de frutas, como abacaxi, melancia, melão, banana. No entanto, uma investigação da Secretaria de Integração Econômica Centro-americana coloca Honduras na terceira posição de uma lista regional de países exportadores de frutas, enviando ao exterior 85,2% da banana.

Futuro de fome

Metade dos hondurenhos que tinham trabalho antes da pandemia foram demitidos, segundo o Programa Mundial de Alimentos. Com o confinamento, mais de 250 mil pessoas passaram a uma situação crítica no acesso a alimentos.

Do povo Lenca, no mundo camponês, brota uma esperança. “Muitos dos produtos que as pessoas de nossa organização estão comendo são das sementes que intercambiaram”, diz Betty Vásquez. “Estamos fazendo um banco de sementes no qual cada comunidade está produzindo pequenos lotes de milho e buscando um incentivo para ajudar os produtores. Mas é uma iniciativa pequena e isolada.”

Em meio à pandemia, o governo não só não ajuda, como atrapalha. Foi publicado um decreto que concede terras nacionais ao custo de quatro dólares por lote para a produção agrícola. Uma medida que favorecerá ao agronegócio e aos latifundiários.

Na crise, as pessoas sobrevivem. Não graças, mas apesar do Estado, com sua longa tradição de governos que oferecem repressão em uma mão e assistencialismo com a outra. A população encontra formas de trabalhar e de comer, ou migra a outros países quando todas as tentativas falham. Donaldo tenta novos trabalhos. Camponeses como Betty semeiam e preservam a agricultura. Sobrevivem.