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Por Água Abaixo

por Soledad Barruti
Publicado em 09 de junho 2021
Dizem que ela é vital, abundante, um direito. Mas ao mesmo tempo pode ser exaurida, vendida, destruída. Dizem que sem água você não pode fazer nada, mas bilhões de pessoas não têm o acesso a esse recurso garantido. Ela é doce no gelo, lagos e rios, que podem ser cercados e possuídos ou coletivizados e receber direitos. A água na América Latina é uma beleza e uma tragédia, é uma realidade e é uma metáfora. É quem somos, o que choramos, a nossa identidade: é aquilo que precisamos voltar a olhar.

Em fevereiro de 2015, fui para São Paulo pela segunda vez. Não era a cidade seca que havia conhecido, era pior: o ar parecia carregado de areia. Beber água não aplacar a aspereza na garganta, menos ainda nos olhos. Poucas horas depois de aterrizar comecei a sentir uma dor de cabeça que me acompanharia a semana inteira.

No lobby do hotel, um turista que vinha da Cidade do México comentou que sentia a mesma coisa e que mesmo o smog fatal do México não se parecia a este ar áspero, como se estivesse cheio de areia. Estávamos numa das capitais mais populosas do mundo em meio a uma crise hídrica feroz.

A informação estava em toda a mídia local: havia casas sem água por 12 horas seguidas todos os dias, havia florescido um suculento negócio paralelo de garrafões de água, os restaurantes haviam interrompido o serviço de café e, como não podiam nem lavar os pratos, haviam começado a usar utensílios descartáveis de plástico. “Se não chover será necessário abandonar a cidade”, disse na televisão uma das tantas pessoas afetadas pelos cortes no fornecimento. Sem água não dá para viver.

Qual a causa dessa catástrofe? São Paulo asfixiou durante a sua história os três rios sobre os quais se assenta a cidade. Têm uma infraestrutura ruim, e a falta de chuvas é cada vez pior. Em dois anos se esgotaram os reservatórios da Cantareira, Alto Tietê e Guarapiranga, que abastecem essa e outras 62 cidades próximas.

Mas não se trata só de uma gestão ruim. A falta d’água em São Paulo podia estar relacionada também com a destruição da Amazônia e a disrupção que o desmatamento e os incêndios provocam no volume dos seus rios voadores. É essa a forma como são chamadas as massas de água formadas pela umidade e poeira, com nutrientes que vêm direto do deserto do Sahara e se encontram com a transpiração das árvores na floresta. Esses rios, dos quais dependem as chuvas que eles transportam para todo o Brasil e partes do Paraguai e Argentina, estavam desnutridos.

O futuro tinha chegado ao Brasil e, entretanto, era possível estar em meio ao colapso quase sem perceber, porque a piscina do hotel estava cheia e dava para nadar. O banheiro estava funcionando como sempre. E ainda mais água descansava em garrafinhas de cortesia sobre a cama. Um umidificador tornava a noite mais tolerável.
Fim.

Voltei para a Argentina. Eventualmente a água voltou a São Paulo. A asfixia desses dias ficaria para quem quisesse se lembrar dela como um causo: dois meses desconfortáveis.

É claro que não dá para viver sem água, do mesmo jeito que ocorre com o resto dos alimentos, é possível administrar a sua escassez e lidar com a sua falta, ao menos por enquanto.

E nada muda.

A fatalidade não cria um acontecimento e talvez essa seja a principal tragédia.

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Há uma quantidade similar de pessoas com sede e com fome no mundo: 844 milhões não têm água para beber, segundo os últimos relatórios da Unesco. Além disso, 2,1  bilhões de pessoas não têm acesso assegurado à água potável. E isso significa ter apenas água o suficiente para sobreviver. O número de pessoas com carência de água duplica se considerarmos a possibilidade de tomar banho ou usar uma privada.

A carência não parece um incentivo para humanizar a questão. Ao contrário. Como exemplo, vamos destacar as palavras de Peter Brabeck-Letmathe, CEO da Nestlé no ano de 2006: “É importante pensar se deveríamos privatizar o abastecimento normal da água para a população. E há duas opiniões diferentes a esse respeito. A única que eu acho extrema está representada pelas ONGs, que insistem em declarar a água como um direito público. Isso significa que o ser humano deve ter direito à água. Essa é uma solução extrema. A água é um alimento como qualquer outro e, como qualquer outro alimento, deve ter um valor de mercado. Pessoalmente, acho que é melhor dar um valor para um alimento para que todos saibam que têm um preço, e então tomar medidas específicas para aquela parte da população que não tem acesso”.

Em 2020, a água chegou em Wall Street e passou a cotar alto entre os especuladores mais importantes do mundo.

E houve quem se horrorizou com o que disse Brabeck-Letmathe e com o valor na bolsa, mas a verdade é que a água – encanada, cercada e engarrafada–, é vendida e comprada há muito tempo.

A água tem dono.

São pessoas ricas, Estados, empresas que pensam e fazem coisas atrozes.

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Temos com a água uma relação romântica, mais do que com a terra. Foi nosso habitat quando éramos invisíveis e anfíbios: um envoltório generoso e amniótico. É o elemento que forma 70% do nosso corpo, e o líquido que choramos com a alegria, a tristeza, a beleza e a raiva.

A água é o primeiro amor, o que envolve nossa subjetividade como uma aura, e talvez por isso acreditamos que sempre vá estar aí e que aguenta tudo: toneladas de lixo e materiais tóxicos, microplásticos, pesqueiros insaciáveis, perfurações de petróleo, sangue de matadouros, milhares de cadáveres que são jogados nos territórios de violência.

Há quem compre rios – e aqueles que permitem isso. Quem afogue rios sob cidades imensas e quem ainda sonhe em se banhar neles. Já parece normal para nós não beber água da torneira. Permitimos que haja pobres sem água e ricos com jacuzzi. Nos deixamos guiar por gôndolas com mil marcas de água engarrafada que oferecem como invenção própria o que é próprio de nós, constitutivo e vital.

Damos as costas à água na América Latina como fazemos com tanto da nossa própria origem e identidade.

E também há uma parte da sociedade que faz todo o contrário. Que olha de frente a água, a defende, abraça o rio e consegue dar direitos a ele.

Nesta região do mundo há rios que secam e também rios que são gente, sujeito de direitos.

Neste especial do Bocado, pegamos um pouco de tudo isso. Goles longos nas águas profundas da Colômbia, Argentina, Guatemala, Paraguai, México e Chile com o propósito de criar um acontecimento. Um acontecimento que choque e quebre a normalização desta realidade atroz que, se não mudarmos, vai continuar nos mantendo assim: à sua mercê, secos e sem direitos.