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Água que
você não vai beber

Kennia Velázquez México
Publicado em 17 de junho de 2021

A água não pode ser bebida. O que escorre pelas torneiras não é puro nem limpo, pode envenená-lo até a morte. Para matar sua sede, você tem que comprar. Os habitantes da Cidade do México, a mais populosa da América Latina, acreditam em tudo isso há muito tempo. A situação é perfeita para o negócio de venda de bebidas açucaradas e de água engarrafada, mas também para a resistência de um país que está aprendendo a lutar pela sua segurança alimentar.

“Quando for ao México, não beba água da torneira, você vai ficar doente”. Essa é a recomendação que os visitantes estrangeiros costumam ouvir. Essa ideia também tem permeado os mexicanos, ninguém no seu juízo normal beberia água da torneira, quem quer se arriscar a pegar uma doença grave?

Na minha família não se consomem bebidas açucaradas. Eu não bebia com frequência e parei totalmente quando comecei a cobrir assuntos de saúde. “Não consumir produtos ultraprocessados é uma forma de resistência”, me disse um entrevistado, e eu era uma rebelde orgulhosa de não comprar refrescos. Até que percebi que dava na mesma, a cada semana eu compro 60 litros de água engarrafada, pelos quais pago 6 dólares e 50 centavos. Não importa a marca, esse dinheiro vai para alguma das grandes empresas que, se não vendem bebidas açucaradas, também vendem água.

Decidida a não pagar dezenas de vezes mais pela água que consumo, comecei a indagar sobre os filtros disponíveis no mercado. Perplexa pela variedade de preços, capacidades e marcas, pedi conselho para um amigo advogado e ativista da água que me disse que não era necessário usar um filtro de água na região em que moro. Me contou que ele e a filha tomam água da torneira há anos e nunca tiveram nenhum problema. Só me recomendou manter sempre limpos a caixa d’água e o encanamento e isso seria suficiente. Realmente fiquei surpresa. 

Aqui no México, beber água engarrafada é a coisa mais normal do mundo, não conhecemos outra realidade. Leo Heller, ex-relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos à água e saneamento, alertou em 2017 que o México era o país com o maior consumo per capita de água engarrafada: 480 litros por ano.

O problema não é apenas o alto preço, mas também o impacto no entorno. Por falta de infraestrutura, não chega água para 60 mil habitantes da cidade de  Texcoco. Para se abastecer, eles precisam de caminhões pipa ou precisam comprar garrafões. A grande ironia é que na região em que moram estão instaladas mais de 3 mil empresas engarrafadoras de água que extraem em torno de 4 bilhões de litros de água por ano.

A venda de água engarrafada começou em 1990 com a Nestlé e a Danone. Dez anos depois, chegaram a Pepsi e a Coca-Cola. Com as maiores corporações internacionais de alimentação comandando a estratégia, as pessoas pagam pelo menos 20 vezes o valor da água ao comprá-la na garrafa: algumas marcas chegam a cobrar mais de um dólar por meio litro enquanto que o preço real é de 50 centavos por metro cúbico (mil litros). A água que você bebe representa o seu status: não é a mesma coisa beber água da torneira do que desfilar com uma elegante garrafa de marca francesa.

O Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI) informou que, em 2020, as 16 mil instalações purificadoras existentes no México tiveram vendas de mais de 100 milhões de dólares, um aumento de 6% com relação ao ano anterior. A venda de garrafas de vidro ou plástico, de mananciais europeus ou lugares remotos parece ser um grande negócio.

A falta de confiança na água da torneira não é gratuita. Uma pesquisa realizada em 2012 encontrou “estreptococos fecais, coliformes fecais e totais” nas águas subterrâneas de 16 municípios do estado de Hidalgo e nove do estado do México – estado que abriga a capital federal. Além de ter encontrado resíduos de sabão, detergentes, concentrações de sódio, arsénico, nitratos e sulfatos acima do permitido.

Em todo o México, 80% das doenças estão associadas à água, assim como 50% dos casos de mortalidade infantil. Além disso, umas 400 mil pessoas são afetadas por água contaminada e com presença de arsênico, denunciou Úrsula Oswald Spring, académica da UNAM, Universidade Autônoma Metropolitana, a universidade mais importante do país.

A situação não é a mesma em todo o México. Segundo o mapa da qualidade da água, elaborado pela organização não governamental Caminhos da Água, em grande parte das regiões do país, o líquido cumpre com todas as normas e é considerado ideal para o consumo humano.

Tamanho é o medo – e o efeito da publicidade– que 90% da população, sem importar o seu nível socioeconómico, compra água engarrafada regularmente. “Inclusive os funcionários da Comissão Nacional da Água bebem água engarrafada, o que se trata de um fenômeno único no mundo, que não é normal”, diz Delia Montero Contreras, pesquisadora da UNAM.

Povos indígenas de Tlautla, Coronango, Cuanalá, Colonia José Ángeles, Almoloya, Zacatepec, Nextetelco, Ometoxtla e Cuapan, protestam diante das instalações de água da Bonafont. Foto: Tudo pela água

Sem medida

“Queremos que vá embora de nossas vilas, que deixe de roubar a água” gritam moradores de Juan Bonilla, estado de Puebla, que decidiram enfrentar a empresa Bonafont porque a extração intensiva tem secado os poços e deixado cinco mil famílias sem água. 

A empresa, filial da multinacional Danone, tem permissão para extrair 105 milhões de litros por ano, e isso, somente em uma das suas três concessões, mas não se sabe exatamente se esse limite é respeitado. Este é um dos grandes problemas do México: os mesmos agentes que obtêm o “título de água” são os responsáveis por informar o seu consumo, e em poucos casos o agente público verifica se os dados são reais. Há apenas um ano foi regulamentada a medição de águas nacionais mas “a questão é que somente 3% das concessões tem medidor, 92% nunca tiveram a operação verificada”, conta Manuel Llano Vázquez Prada, diretor da organização não governamental CartoCritica.

“Não consumir produtos ultraprocessados é uma forma de resistência”, me disse um entrevistado, e eu era uma rebelde orgulhosa de não comprar refrescos.

A Conágua é o organismo responsável pela proteção e conservação das águas superficiais e subterrâneas, por garantir sua disponibilidade, outorgar concessões e verificar a extração. 

Dependendo do uso dado à terra, a Lei Agrária estabelece que uma pessoa somente pode possuir no máximo entre 100 e 800 hectares, mas não acontece o mesmo com a água: para consumidores privados, não existe um limite máximo, nem de títulos nem de volume a ser extraído. As concessões podem ser solicitadas com uma vigência de entre cinco e trinta anos, com a possibilidade de renovação e, inclusive, podem ser transmitidas a terceiros.

Além disso, a opacidade é total: “não sabemos quanta água é usada porque só sabemos o volume concessionado. Não sabemos quem usa a água porque há um mercado cinza e porque as concessões são transferidas de um concessionário para outro. Não sabemos para quê ela é usada e não sabemos quanto é pago porque é um segredo fiscal”, explica Llano.

A Auditoria Superior da Federação (ASF), o máximo órgão fiscalizador do país, reportou que a regulamentação da medição de águas nacionais de 2019, feita pela Conágua, não permite determinar uma melhora na administração da água, porque não há um diagnóstico nem programação para regular. E se desconhece se os usuários sancionados pelo mau uso dos títulos cumpriram com as medidas de reparação. A Conágua, diz a ASF, também não conseguiu aumentar a descontaminação da água para reduzir o risco de doenças, garantir a subsistência de ecossistemas e evitar a aparição de conflitos entre comunidades, o que já tem acontecido em, ao menos, dez bacias.

Especialistas têm denunciado que um dos problemas mais graves é que não se sabe quanta água está disponível no país. A auditoria considera que a informação fornecida pela Conágua é deficiente e não confiável, porque não foram apresentados balanços do recurso hídrico superficial e subterrâneo que deveria ser atualizado no Sistema Nacional de Informação sobre Quantidade de Água.

Na opinião de Llano Vázquez Prada, o que falta é uma “auditoria da água e que a água subterrânea seja regulamentada. Deve haver controle sobre os titulares de direitos da água, sobre o consumo, extração e contaminação”.

Além disso, deve ser mudada a forma como assunto é visto porque “a água é abordada desde uma perspectiva hidráulica, considerada uma questão de infraestrutura – aquedutos, estações de tratamento, barragens– e não como um tema transversal que inclui a economia, política fiscal, proteção de ecossistemas” diz o pesquisador em conservação da biodiversidade.

“É urgente uma redistribuição de atribuições porque temos uma super comissão da água que abarca tudo: determina a disponibilidade, outorga concessões e cotas, exerce os atos de inspeção, vigilância e sanciona… isso não é adequado”.

Água e mais-valia

“Você quer viver em uma região que não sofra de escassez de água na Cidade do México? Convidamos você a conhecer os municípios que não enfrentam esse problema para que você invista em propriedades de maneira produtiva” diz uma mensagem em buscador online para compra e venda de imóveis. É que, segundo algumas projeções, a capital do país poderia ficar sem água em 2030, então, o valor de uma casa ou apartamento não está vinculado somente com a metragem ou localização. Aqui, as propriedades também são cotadas “com” e “sem” água.

Ainda que o México tenha um alto estresse hídrico, o país é, junto com o Chile, um dos que menos investem em água na América Latina: só 0,5% do PIB. Isso se traduz em que nem todos têm acesso à água. Em nove estados mexicanos diminuiu em até 30% o número de moradias com água encanada em 10 anos. E, mesmo quando dispõem de infraestrutura adequada, isso não significa que tenham água sempre: 20% das residências não têm água todos os dias.

A pandemia de COVID-19 obrigou as autoridades a enviar caminhões-pipa para abastecer algumas zonas que não têm o serviço de água de forma contínua. Mas isso é insuficiente, e os moradores precisam procurar água por conta própria. A água é tão cobiçada que há anos tem ocorrido sequestros de caminhões-pipa e disputas em algumas regiões da Cidade do México.

As cidades densamente povoadas buscam onde podem se abastecer e vão secando tudo ao seu redor. Sobram exemplos: 40% da água consumida na capital chega de regiões distantes. O  estado de Guajanato se abastece do vizinho San Luis Potosí. E, em Jalisco, as autoridades planejam megaprojetos que garantiriam o abastecimento às custas de devastação, mas encontram resistência entre moradores que já se transformaram em um símbolo de luta comunitária.

O México nem sempre foi um país seco: ele foi secado ao longo dos anos. A falta de água se deve ao planejamento deficiente e também a uma extração mal distribuída: 104 de 653 aquíferos são explorados em excesso, onde se encontra 33% da população do México. Em 1975, a água era extraída de 32 aquíferos e, em 2016, de 105.

“A crescente participação de bancos como usuários de grandes concessões de água não deixa de ser um tema de preocupação que responde possivelmente à criação de um mercado internacional da água"

Esse tema reflete a mesma desigualdade que afeta o país: a má distribuição de tudo, inclusive da água. Porque o México, um país onde 1% da população concentra 43% da riqueza, também 1,1% do total de usuários explora mais de um quinto da água, segundo revelou o relatório Milionários da Água. São 3.304 grandes usuários privados com um volume de água de 13.208 hectômetros cúbicos anuais. Entre esses usuários estão representantes da mineração, engarrafamento, energia elétrica, cervejarias, siderúrgicas, agroindústrias, automóveis e outros – são 966 grandes empresas.

A pesquisa dos acadêmicos Wilfrido Gómez Arias e Andrea Moctezuma alerta que nesse grupo de grandes exploradores se encontram os bancos BBVA e o Banco Azteca: “a crescente participação de bancos como usuários de grandes concessões de água não deixa de ser um tema de preocupação que responde possivelmente à criação de um mercado internacional da água”. A inquietação aumenta em tempos em que a água começou a ser cotada em Wall Street pela primeira vez na história da humanidade, com a recente criação dos mercados futuros da água que provocará especulação similar ao petróleo.

O panorama se complica ainda mais: há uma rede “alternativa” de bombas clandestinas em praticamente todo o país, ligadas de forma ilegal aos sistemas de distribuição municipais. Só na Cidade do México se estima que há cerca de 400 mil conexões. Já os poços ilegais no resto do país são impossíveis de se estimar. Nos últimos anos foi revelado o escândalo huachicoleo, de roubo a refinarias e dutos de petróleo. Entretanto, ainda não sabemos quanta água é desviada dos aquedutos.

Uma nova lei geral de águas

Em 2020 foi reformada a Constituição do México, que tornou o acesso à água um direito humano, e foi estabelecido um prazo de 360 dias para emitir uma nova lei de águas nacionais. Mais de 400 organizações representantes de povos originários, da sociedade civil e acadêmicos começaram a trabalhar em uma iniciativa de lei que garantisse a água de qualidade para todos, que protegesse os ciclos naturais e ecossistemas. Entretanto, quase uma década já se passou, e a lei ainda não existe.

Comunidades e municípios nos estados de Quintana Roo e Veracruz entraram com processos de amparo para que a autoridade judicial pressione o Congresso e, assim, seja criada a Lei Geral de Águas. O procedimento foi admitido mas ainda não teve resultados. O argumento do novo atraso: a pandemia.

Promulgar uma nova lei de águas é urgente porque, na opinião de Anaid Velasco, coordenadora de pesquisa do Centro Mexicano de Direito Ambiental, o enfoque da lei atual ficou obsoleto diante da realidade: “as penalidades não são equivalentes ao dano ocasionado, como contaminação. Para o usuário da água é mais barato contaminar e pagar a multa do que parar de contaminar”.

E enquanto as autoridades demoram, a sociedade trabalha. O coletivo Água Para Todos apresentou uma iniciativa cidadã que propõe que o manejo de ciclos da água nas bacias via sistemas locais seja tornado sem fins de lucro, reconhecer os direitos dos povos indígenas e os direitos à água para uso pessoal e para a soberania alimentar, que existam políticas de oposição à contaminação e exploração excessiva e que não sejam consideradas atividades prioritárias a mineração e o fracking, bem como assegurar recursos públicos suficientes e que seja erradicada a corrupção e a impunidade.

Especialista no assunto e familiarizada com ação legal que não teve sucesso, Anaid Velasco alerta que o maior freio está no “lobby dos diferentes interesses”. E enquanto os poderosos negociam o saque, “36 milhões de mexicanos não contam com água potável, o direito à saúde é violado a cada minuto”. A Unicef revelou que 12,75 milhões de crianças mexicanas vivem em áreas de alta vulnerabilidade hídrica: sem água no presente e menos ainda no futuro.

Manuel Llano explica que “há muita pressão por parte da indústria para que não seja mudada a lei ou, que no caso de ser mudada, sejam mantidos os privilégios de concentração de água”.

Guardiãs da Água

Na costeira cidade de Progreso, no estado de Yucatán, não há água doce. Para ter alguma água para beber, a cidade precisa transportá-la da capital até o litoral, porque a água disponível é salobra.

Não falta água, a densidade da vegetação local prova isso. As centenas de cenotes (áreas subterrâneas alagadas características dessa região), que os maias usavam para suas cerimônias religiosas, ainda possuem água em abundância e são agora um dos atrativos turísticos da região. O problema é que essa água está contaminada, relata Alfonso Munguia Gil, doutor em Economia Política pela Sorbonne. Segundo ele, isso se deve às “concessões e à falta de responsabilidade no manejo da água. Conágua tem estado a serviço das grandes empresas, o papel da instituição tem que mudar no sentido da justiça na gestão da água”. Para onde vai a água de Yucatán, que não chega às casas do povo? Vai para granjas de criação de porcos e para a indústria turística. 

Na sua opinião, “o custo de não ter água disponível implica contar com infraestrutura cara que não seria necessária se houvesse um equilíbrio no uso do líquido. Implica ter doenças, e os custos ambientais e econômicos são muito altos.  Estamos gerando a mudança climática, vamos danificando a fauna e a flora, e isso não está sendo levado em conta”.

Munguía Gil, pesquisador do Instituto Tecnológico de Mérida, acredita que a única alternativa para incidir na tomada de decisões é “nos tornarmos cidadãos mais participativos e vigilantes sobre o que acontece no nosso entorno. A cidadania deve ter mais peso nas decisões sobre o manejo da água”.

“Há muita pressão por parte da indústria para que não seja mudada a lei ou, que no caso de ser mudada, sejam mantidos os privilégios de concentração de água”

No México há pequenas e grandes guerras pela água. De norte a sul, há conflitos e resistências comunitárias para garantir o acesso ao recurso: em Puebla e em Baja California, as comunidades enfrentam as empresas de energia e cervejarias. Em Oaxaca, grupos armados arrebataram uma fonte de uma vila, provocando a morte de uma pessoa e vários feridos enquanto impediam que os tanques de água e as tubulações fossem destruídos.

Mas também há batalhas internacionais: um conflito com os Estados Unidos pela água que o México entrega, em detrimento de agricultores mexicanos, que estão à beira do desespero. Uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento, ainda mais durante a temporada de estiagem.

No sul do país, onde a água é abundante, não há conflito, mas predomina a opção por evitar o trabalho coordenado entre os países vizinhos. Ainda que o México compartilhe seis bacias hidrográficas, que servem como fronteira, com a Guatemala e Belize. Apesar disso, não há acordos trilaterais contemplando essas bacias, cada país cuida do seu próprio território.

Os conflitos vão continuar acontecendo no México, onde 36 milhões de pessoas não têm água, e um punhado de empresas (1,1% dos usuários) explora um quarto de todos os recursos hídricos. Um país onde a lei demora infinitamente para chegar, e onde comprar imóveis com acesso à água é, sem dúvida, um bom negócio.

Foto: Emilio Jiménez