Skip to content

América do Sul: terra arrasada, máquinas paradas

por Cristiano Navarro especial para BOCADO
Fotografía: AdobeStock
Publicado el 20 enero 2022

Nos últimos 40 anos, a América do Sul tem reorientado sua economia no sentido do desaparecimento de sua indústria em detrimento do aumento da dependência da exportação de produtos primários, especialmente, para a China. Essa transformação radical da base de produção de riquezas tem afetado profundamente nossas vidas

Na madrugada do dia 11 de janeiro deste ano, por volta das 4 horas da madrugada, Lucas Iamamura recebeu, quase simultaneamente, dezenas de mensagens e ligações em seu celular. Em todas elas, aflitos, os colegas de fábrica do engenheiro informavam sobre o comunicado do então presidente da Ford na América do Sul Lyle Watters, que, por e-mail, anunciava o encerramento das atividades da empresa de fabricação de veículos e o fechamento de todas as suas montadoras no Brasil.

“Fui completamente surpreendido com a notícia. Até porque, apesar de terem reduzido os orçamentos, eu vinha, desde 2019, trabalhando em dois projetos de novos veículos que estavam para serem lançados. Havíamos feito um acordo no sindicato, onde foi garantido o funcionamento até, pelo menos, 2023”, conta Iamamura. 

O engenheiro, que precisou vender o próprio carro, vai equilibrando suas contas com a empresa de delivery que abriu. “Apesar da minha escolaridade, sinto que a perspectiva é ruim. Mas sei que bem pior é para os quase cinco mil operadores que vivem na região de Camaçari.” 

Desde sua chegada no país, em 1919, quando produziu o Modelo T – primeiro carro montado no país –, a marca de Henry Ford jamais havia deixado de fabricar seus produtos em solo brasileiro. Nessa relação centenária, entre os anos de 2003 e 2014, a filial nacional da Ford chegou a dar mais lucro do que a matriz nos Estados Unidos. Mas, agora, a produção antes brasileira será concentrada na Argentina e no Uruguai. 

Mesmo com a recente tendência de queda nos lucros acentuada pela pandemia, os funcionários da empresa foram pegos de surpresa com a decisão tomada sem nenhum aviso prévio. Em seu último ano, a Ford mantinha o diálogo com os sindicatos de todas as unidades  – Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE) – para readequar sua produção e manter os empregos, sem nunca falar em fechamento. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese), o fim das atividades da Ford provocou no país a diminuição de 118.864 postos de trabalho (diretos e indiretos), uma perda de massa salarial na ordem de R$ 2,5 bilhões ao ano e queda na arrecadação de R$ 3 bilhões ao ano em tributos. 

Quase um ano depois da notícia que caiu como uma bomba para a indústria automotiva brasileira, milhares de famílias do município de Camaçari seguem desnorteadas. “Fomos pegos de surpresa. Vivemos um processo de desilusão muito forte entre os trabalhadores e trabalhadoras”, conta Aurino Pedreira, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari. 

“Imagine: milhares de profissionais que foram treinados para operar em uma atividade específica de uma linha de produção e que, de uma hora pra outra, perdem o emprego, ficando sem nenhuma perspectiva de se recolocar dentro daquela profissão que um dia abraçaram. Ninguém sabe ao certo o que fazer.” Por mais de dois meses foram organizados protestos na porta da fábrica, manifestações políticas de apoio e cultos ecumênicos em defesa dos empregos, tudo em vão.

Em números, o sindicato calcula que essa frustração pelo desemprego em Camaçari se traduza na demissão direta de 4.743 empregados e de outros 65 mil postos de trabalho indiretos. 

Um levantamento da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) calcula que o fechamento da fábrica deve ter um impacto da ordem de R$ 5 bilhões para a economia baiana, valor equivalente à diminuição de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) deste ano no estado.

O encerramento das atividades da primeira indústria automotiva instalada em um estado do Nordeste do Brasil marca o fim de uma linha produtiva iniciada a partir de uma polêmica guerra fiscal entre a Bahia, então governada pelo Partido da Frente Liberal (PFL), e o Rio Grande do Sul, na época governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), no final dos anos 1990. 

O imbróglio foi vencido pelos baianos, que, para garantir a implantação da Ford em seu território, ofertaram à empresa isenção de impostos, infraestrutura e um terreno no município de Camaçari. Como parte da disputa política, a Ford ainda conseguiu, via Congresso Nacional, o apoio de um regime especial de tributação que previa reduções de até 100% no Imposto de Importação, além de isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na aquisição de bens de capital e do Imposto de Renda sobre o lucro. 

“Essa planta aqui na Bahia, foram tantos benefícios concedidos que eu a chamaria de uma semiestatal, só que com os lucros indo lá para os Estados Unidos”, ironiza Pedreira. Em 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) homologou a indenização de R$ 266 milhões oferecida pela Ford para suprir os prejuízos causados ao estado do Rio Grande do Sul.

Foto: Adobe Stock

Economia dependente

Os anos de funcionamento da Ford em Camaçari coincidem com um período de profundas mudanças na economia não só na Bahia e no Brasil, mas em toda a porção sul do nosso continente. Nos últimos 30 anos, a América do Sul tem sofrido um gritante processo de desindustrialização, com um correspondente aumento da dependência econômica do mercado de commodities

A transformação radical da base de produção de riquezas do continente afetou inúmeros aspectos da vida das pessoas, em especial a política, o mundo do trabalho e seus hábitos de consumo. 

Em uma definição econômica clássica, o termo “desindustrialização” significa a redução persistente da participação do emprego industrial no emprego total de um país ou região. Na prática, pode representar a deterioração nos termos de trocas entre países, o desaquecimento da economia e a redução de empregos de qualidade. 

Ainda que jamais tenhamos superado a condição de países periféricos do capitalismo, com a permanência de nossas principais atividades econômicas voltadas para o setor primário, a América do Sul viveu ciclos de industrialização modestos e tardios durante o século 20, que a tiraram da total irrelevância no mercado mundial. 

Brasil, Argentina, Venezuela, Chile, Colômbia e Peru, por meio de investimentos estrangeiros, consolidaram sua indústria a partir da década de 1930. Por suas características históricas, geopolíticas e de grande potencialidade em recursos naturais, Brasil e Argentina se firmaram como as duas maiores economias sul-americanas, alcançando uma maior diversidade e tecnologia na produção industrial.

Durante a década de 1970, administrados por ditadores e governantes envolvidos em escândalos de corrupção, apoiados diretamente por Washington, os países sul-americanos tomaram grandes volumes de empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, visando a dar sequência em seus projetos de desenvolvimento. 

Na década seguinte, como resultado de conflitos causados pela crise do petróleo, a Revolução Iraniana e a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos, como país credor, decidem executar as dívidas dos devedores. Assim, os anos de 1980 ficaram conhecidos como a  “Década Perdida” para a América Latina. Nesse período, crises em cadeia tornaram essas dívidas externas impagáveis, causando grandes déficits fiscais e volatilidade inflacionária e cambial.

Como resposta às crises, uma série de medidas econômicas elaboradas em conjunto pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos foram “oferecidas” aos países da América Latina. Batizadas de “Consenso de Washington”, as medidas liberalizantes tiveram como base um conjunto de propostas que visavam a tornar os mercados locais mais atrativos para o capital estrangeiro com a diminuição da participação do Estado na economia, em privatizações, na desregulação do mercado e na diminuição dos instrumentos de proteção social e dos direitos trabalhistas.

Além disso, nos acordos firmados para o pagamento da dívida, o Brasil, por exemplo, que tem a maior economia da região e, à época, chegou a ser o oitavo país mais industrializado do mundo, comprometeu-se a reduzir o seu nível de produção para o mercado interno e estimular as exportações. 

Conforme o economista brasileiro e professor da Universidade de Campinas Marcio Pochmann, foi aí que mudou o eixo da política e da economia no país. “As exportações passam a ser fundamentais para o Brasil. Os industriais que produziam apenas para o mercado interno, não para o mercado externo, ficam numa posição secundária em relação aos proprietários rurais, que passam, na verdade, a ser estratégicos nessa perspectiva de pagamento da dívida externa”, explica. 

Essa força política e econômica já era observada em 1988, quando, na primeira eleição para presidente pós-ditadura, a União Democrática Ruralista lançou o atual governador de Goiás (o terceiro maior produtor agrícola dentre os estados brasileiros), o latifundiário Ronaldo Caiado, como seu próprio candidato à Presidência da República.

Para Pochmann, a desindustrialização desmontou a burguesia industrial, mudando profundamente suas características.  “O antigo empresário industrial, diante das condições muito difíceis de produzir, vendeu a sua empresa e, com o capital, se tornou um sócio das altas taxas de juros. Já o empresário que não vendeu o seu negócio substitui a produção nacional por importado e se transformou em um comerciante que compra lá fora, monta aqui dentro e põe a etiqueta do seu produto.” 

Na abertura para o mercado global com tecnologia desatualizada em seu parque produtivo, as mudanças pegaram a indústria latino-americana no contrapé. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no Brasil a indústria manufatureira representava 33,6% do PIB em 1980. Desde então, sua participação passou a cair e, no ano de 1990, reduziu para 28,4%. Em 2000, a indústria passou a representar somente 19,8% da produção nacional. Nos primeiros três meses de 2021, chegou a 10,3%.

“Os impactos das políticas neoliberais, sobretudo dos últimos vinte anos do século passado, foram violentos para a população do nosso continente, porque significaram uma perda crescente dos salários, o aumento dos níveis de pobreza, a perda de um conjunto de instrumentos de proteção social e direitos trabalhistas que, na verdade, foram resultado de muitas décadas de lutas”, critica a economista peruana Monica Bruckman, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.



Foto: Adobe Stock

Commodities agrícolas

Assim como no Brasil, na Argentina o setor de produção de commodities para exportação ganhou força política, emergindo na década de 1990 como salvação a partir do fracasso das políticas econômicas para a indústria local. Nessa década, foram  introduzidas as primeiras sementes transgênicas no continente sul-americano. 

“As mudanças liberalizantes privilegiaram a inserção subordinada no mercado mundial e a Argentina iniciou uma transformação produtiva das lavouras, em que, no caso da soja, que não existia na década de 1960, tornou-se o principal complexo exportador do país, sobretudo na década de 90 com a instalação de organismos geneticamente modificados”, contextualiza o economista argentino Julio Gambino. 

Nos anos 2000, tanto no Brasil quanto na Argentina, o agronegócio se consolidou e passou a se configurar com a forte entrada de capital estrangeiro e grupos financeiros que produzem suas safras orientados pelo lucro e atendendo às demandas de mercado. Nora Tamagno, engenheira agrícola e professora aposentada da Faculdade de Ciências Agrárias e Florestais da Universidade de La Plata, faz um paralelo entre a ciranda financeira e o funcionamento do mercado de commodities agrícolas. “Apesar de ainda serem apresentados como salvadores da humanidade, a lógica da agroindústria é exportar cada vez mais, para gerar cada vez mais divisas para aplacar a fome que o mesmo modelo de produção produz.”

Gambino, por sua vez, explica que, entre outros aspectos, o modelo agrícola mundial produz “anualmente para 12 bilhões de pessoas e, sendo cerca de 7,5 bilhões de habitantes no planeta, existem cerca de 900 milhões de pessoas com problemas nutricionais e alimentares. É que boa parte da produção agrícola é destinada à produção de energia e, portanto, há pouca preocupação com a fome ou a pobreza. O privilégio é o lucro e a acumulação de capital”.

No ano de 2020, em meio ao contexto da pandemia do novo coronavírus, ao mesmo tempo  que as exportações do agronegócio brasileiro apresentaram desempenho recorde, um levantamento feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN) apontou que 19 milhões de brasileiros passaram fome e a insegurança alimentar atingiu mais da metade dos domicílios no país, chegando aos piores índices desde 2004.

Para além do lucro, o livre mercado das commodities também impõe a muitos trabalhadores do agronegócio uma precarização maior do que a vivida em centros urbanos. A economista brasileira e professora da Universidade Federal do Tocantins Fabiana Scoleso salienta que, em 2020, o agronegócio brasileiro bateu recordes de produção em plena pandemia. “E um dos fatores determinantes foi transformar os trabalhos que compõem o elo da cadeia de valor do agronegócio em trabalho essencial. Então, muitos trabalhadores que se deslocam por centenas de quilômetros para trabalhar em um frigorífico ou algum tipo de colheita seguiram trabalhando sob as mesmas condições insalubres de sempre”, alerta. No início da pandemia, uma investigação feita por O Joio e O Trigo mostrou que as cidades com frigoríficos apresentavam índices significativamente maiores de contaminação por covid-19. O mesmo foi relatado nos Estados Unidos, onde imigrantes latinos constituem uma parte expressiva da mão de obra. 

Em levantamento de dados feito por Valter Palmieri,  economista brasileiro e professor da Strong Business Scholl (anteriormente Escola Superior de Administração e Gestão – Esags), na plataforma The Observatory of Economic Complexity – OEC (Observatório da Complexidade Econômica), notamos que, nas últimas duas décadas, três dos dez países maiores exportadores de alimentos estão na América do Sul.

 

Desintegração regional

Do outro lado desse mercado, embora os Estados Unidos tenham sido um dos principais responsáveis pela consolidação do neoliberalismo na América Latina, a década de 2000 marca a ascensão da China como principal destino das commodities e, portanto, determinante para a forma de participação do nosso continente no mercado global. 

“É uma tendência observada em toda a região, principalmente a partir do século XXI. A economia da China é complementar à Argentina e à região da América Latina e do Caribe. A China tem um déficit de matérias-primas e, por isso, cresce o comércio com a região, mas também seus investimentos e seu papel financiador. O problema é que a região não tem uma política comum de negociação e articulação produtiva com o gigante asiático”, avalia o economista Gambino.

Há um provérbio chinês que diz que o segredo da longevidade é rir o triplo, andar o dobro e comer pela metade. Ainda que não tenha a voracidade de outros países e que, por exemplo, esteja em 29° lugar no ranking de consumidores per capita de carne bovina no mundo, conforme a OCDE-FAO Agricultural, décadas de constante crescimento econômico na China têm reconfigurado o prato da sua população de 1,4 bilhão de pessoas, o que impacta no mundo todo. 

“A China entra aqui de diversas maneiras e entra numa perspectiva de fusão de capitais e de financeirização dos recursos naturais. Porque quem detém a maior quantidade das terras produtivas no Brasil são grupos financeiros internacionalizados, que é um capital difícil de identificar. E a China tem muito interesse principalmente no que a América do Sul oferece: carne bovina, carne de porco, aves, camarão e salmão”, constata  o economista e professor Palmieri. 

Além da proteína animal, ele chama a atenção para o aumento do consumo de frutas pela China. “Esse crescimento deve ser visto com preocupação, pois esses negócios com a China já têm pressionado muito o preço dos alimentos. E a alta dos preços dos alimentos, que já ocorre, por exemplo, com a proteína animal, poderia ocorrer também com as frutas, tornando-as produtos de luxo. E isso tudo acontece porque os incentivos do governo brasileiro na agricultura são todos voltados para a produção para o mercado externo.”

Em meados de 2020, o governo chinês apresentou ao governo argentino uma proposta para instalar, até o fim deste ano, 25 fábricas de produção de carne suína no norte do país. As fábricas dobrariam a produção de carne suína para exportação em seis anos. O projeto apresentado pelos chineses possui um investimento de cerca de US$ 3,8 bilhões e promete gerar aos argentinos 50 mil empregos diretos e indiretos. A proposta tem forte apoio do agronegócio, pois a criação dos porcos se soma às safras de milho na Argentina. 

Depois de receber fortes críticas de ambientalistas e defensores dos animais, o presidente Alberto Fernández recuou em aceitar o empreendimento. No entanto, o governo de Xi Jiping não desistiu dos seus porcos e negocia, agora, diretamente com a província do Chaco. “Estamos vivendo um momento difícil na Argentina, em que debatemos sobre os porcos para a China, mas para a mesa das camadas mais populares, a proteína animal, quando chega, é o frango industrializado que cresce com antibiótico. Sim, devemos negociar com os chineses, mas em que condições?”, reclama a engenheira agrícola Nora.

No norte da Argentina, a proposta de três megagranjas de porcos é recebida com entusiasmo pelo governo do Chaco (província onde se encontra o pior IDH do país), apesar das ameaças que recaem sobre as reservas ambientais e as terras indígenas. Enquanto as negociações com os chineses caminham a passos largos, a população local reclama da falta de informações sobre o projeto. 



A falta de transparência e de uma consulta prévia às comunidades indígenas, como recomenda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por parte do governo chaquenho traz apreensão para a liderança do povo Toba Qom, Felix Medina: “Não queremos a contaminação do nosso sistema e do nosso território. Aqui os recursos hídricos são escassos e a contaminação do nosso solo nos levaria a um colapso”. Na região onde estão os Toba Qom, a proposta chinesa prevê o arrendamento de propriedades rurais locais para produção da alimentação para os suínos. 

Observando a realidade da província, a antropóloga social do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária Luz Vallejo, que trabalha há dez anos no Chaco, destaca: “Estamos em uma região semiárida e hoje a população já sofre com a falta de acesso à água. Então, do nosso ponto de vista, a escassez dos recursos hídricos e a poluição do agronegócio e seus agrotóxicos trazem riscos para a população local.”

Avaliando projetos como esse, Monica Bruckman entende que haja novas possibilidades de posicionamento do nosso continente no mercado global: “A América Latina está reeditando sua economia primário-exportadora e uma relação de dependência com a China em que teríamos plenas condições, enquanto bloco, de negociarmos melhores termos. Especialmente do ponto de vista de recursos naturais, fundamentais tanto para o projeto de desenvolvimento chinês, quanto para o projeto europeu de descarbonização da economia mundial.”

Origens e destinos

Em um levantamento feito pelo Bocado a partir de dados coletados pela plataforma do The Observatory of Economic Complexity (Observatório da Complexidade Econômica), observamos o comportamento das cinco maiores economias sul-americanas desde as perspectivas de seus principais produtos até os principais destinos de exportação.

Colômbia

Tendo como principal produto de exportação os combustíveis, nos últimos 20 anos a Colômbia ampliou suas parcerias comerciais, mas manteve os Estados Unidos como primordial destino de seus produtos. 

Apesar de os Estados Unidos permanecerem como principal destino exportador, os colombianos ampliaram suas vendas para a China. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser responsáveis por 49,2% para representar 30,7% em 2019. Já a China aumentou a parcela de 0,24% para 9,5%. 

Nesse período, os combustíveis foram o principal produto comercial, somados a uma expressiva produção agrícola, sobretudo de café, frutas e flores. 

Chama a atenção a diminuição da participação sul-americana na balança comercial do país. As exportações da Colômbia para seus vizinhos chegaram a 25% em 2001 e, em 2019, diminuíram para 15%.  A maior retração ocorreu na relação com a Venezuela, que em 2001 era o segundo destino das exportações colombianas, respondendo por 13,5%, mas que em 2019 viu este número cair para 0,48%. Ao longo desse mesmo período, a Colômbia manteve um baixo padrão de exportação de produtos industriais.



Venezuela

Tendo como primordial atividade exportadora a exploração do petróleo, nos últimos 20 anos a Venezuela passou por uma transformação de seus principais parceiros comerciais. Orientada por uma aproximação política com os Brics, a mudança de rota das exportações do combustível expandiu boa parte dos negócios venezuelanos para a Índia e para a China.

Apesar de os Estados Unidos permanecerem como principal destino exportador até 2018, correspondendo a 38,6% do total de exportações, os parceiros asiáticos mudaram de posição e, em 2019, passaram a liderar o ranking. A China passou de 0,56% em 2000 para 28,4% em 2019. Por sua vez, a Índia cresceu de 1,79% das exportações para 33,8%. E os Estados Unidos, que em 2000 chegaram a responder por 55,2% do mercado de exportação venezuelano, viram diminuir sua participação para 12,4% em 2019. 

Nesse período, o petróleo seguiu como o principal produto comercial. No entanto, chama a atenção a diminuição da participação da indústria de refino. Em 2000, o petróleo cru representava 57,9% e o petróleo refinado, 23,1% das exportações. Já em 2019, o petróleo cru passou a corresponder a 83,1% e o petróleo refinado representava apenas 5,1%.



Chile

Tendo como principal atividade exportadora o extrativismo mineral, nos últimos 20 anos o Chile acompanhou a tendência continental, aumentando consideravelmente seu mercado de commodities com a China. Como resultado dessa ampliação na relação comercial, os chineses cresceram sua participação nas exportações de 4,94% em 2000 para 31,8% em 2019. Já os Estados Unidos, que em 2002 chegaram a corresponder a 19,9% do mercado das exportações chilenas, tiveram sua participação reduzida de 16,3% em 2000 para 13,7% em 2019. 

Nesse período, o principal produto exportado pelo Chile seguiu, historicamente, sendo o cobre. O país manteve uma expressiva exportação de alimentos especialmente na produção de frutas e proteína animal e baixa exportação de produtos manufaturados, representando sempre menos de 5%.



Argentina

Com uma diversidade nos produtos, a Argentina abre o século exportando commodities de origem mineral, alimentos e produtos de origem vegetal. De lá pra cá, mudaram seus parceiros e as configurações de seu mercado exportador. A China cresceu expressivamente e tende a se consolidar como o principal destino das exportações do país. Por sua vez, o Brasil, devido ao enfraquecimento das relações políticas e econômicas via Mercosul e Unasul, teve sua participação nas exportações argentinas diminuídas. 

Assim, o Brasil, que em 2000 representou 26% do destino das exportações da Argentina, em 2019 correspondeu a apenas 16,2%. Os Estados Unidos também diminuíram suas fatias: de 10,9% para 6,9%. Já com os chineses, os argentinos ampliaram suas exportações: em 2000 representaram 3,18% e em 2019 passaram a corresponder a 10,8% dos produtos exportados pelo país.

No transcorrer desse período, a venda de commodities de origem mineral diminui. Em contrapartida, a produção e a exportação de produtos de origem vegetal cresceram, firmando a soja e o milho como responsáveis por mais de um quarto do total de vendas para o exterior.



Brasil

Passando por um processo de forte desindustrialização, o país tem como principais características das duas primeiras décadas do século 21 o encolhimento da participação de produtos manufaturados nas exportações e a reorientação de seu principal parceiro comercial. 

Com relação aos parceiros comerciais, no final da década de 2000 até meados de 2010, as exportações brasileiras para seus vizinhos da América do Sul chegaram a ser maiores do que as vendas para a América do Norte. 

Em 2000, os Estados Unidos compravam o correspondente a 24,1% das exportações do Brasil. Em 2019, esse número diminuiu para 13,2%. A China cresceu sua participação nas exportações brasileiras, de 1,99%, em 2000 para 27,6% em 2019. 

Com a diminuição da participação da indústria nacional nas exportações, o Brasil tem hoje o extrativismo mineral e a produção agrícola industrial como seus pontos mais fortes em exportação.



Amor e desilusão econômica

Em 43 anos de implementação de seu polo industrial, a cidade de Camaçari mudou completamente. As ofertas de trabalho na indústria e, por consequência, no comércio, fizeram a migração para a cidade explodir. Com a chegada das primeiras indústrias petroquímicas, no final da década de 1970 a pacata cidade rural, localizada a 52 quilômetros da capital Salvador, viu sua população crescer de 33 mil habitantes, em 1970, em quase dez vezes, para as atuais 304 mil pessoas. 

Dentro desse intenso fluxo migratório, em junho de 2004, Ivanilde Santana Nascimento, de 23 anos, chegou a Camaçari contratada para trabalhar na Ford. Vinda do município baiano de Mata do São João, ela deixou para trás o balcão de um pequeno comércio onde era atendente para trabalhar como operária no chão da fábrica.

Em 2002, Tarcisio Henrique de Castro Santana deixou a vida de trabalhador rural no povoado de Antas, no sertão baiano, zona rural do município de Paulo Afonso, para tentar a sorte no polo industrial. Depois de cinco anos em diversos tipos de serviço, Tarcísio conseguiu, enfim, uma colocação na tão almejada indústria automotiva. 

No ano de 2007, além de iniciar em seu novo trabalho, entre um turno e outro Tarcísio conheceu Ivanilde. Ela: operadora do setor de para-lamas. Ele: soldador do setor de portas. Não demoraram muito e logo começaram um relacionamento. Namoraram por três anos. Casaram-se. Construíram a casa própria e tiveram dois filhos dentro de um padrão de estabilidade com benefícios, carteira assinada e direitos trabalhistas. 

Também nesse período, com apoio da empresa, o casal conseguiu reforçar seus estudos. Ivanilde formou-se em pedagogia e em técnica em segurança do trabalho; já Tarcísio aprimorou seus conhecimentos em solda e metalurgia. “Estudei e formei minha família a partir da Ford. Foi um tempo muito bom pra gente”, lembra Ivanilde.

Hoje o casal convive com uma série de incertezas. “Eu assinei meu plano de demissão involuntária no dia 17 de julho, na sede do sindicato. Nesse dia eu chorei horrores. Nunca imaginei o fechamento da fábrica. O que eu imaginava era sairmos da Ford velhinhos e aposentados.”

O fim da produção de automóveis desata outros milhares de nós econômicos que se conectam e se sustentam entre consumidores, comerciantes e prestadores de serviço da região. “Eu vejo que o comércio caiu muito, que muitas pessoas colocaram carro e casa para vender. Vejo mais pessoas pedindo ajuda na rua. Então, não sou só eu e meu esposo que estamos desempregados. Tivemos que dispensar a babá que me ajudava com meus filhos e a diarista que vinha uma vez por semana”, lamenta Ivanilde. 

Apesar das dificuldades que têm enfrentado, Tarcísio e Ivanilde não pensam em deixar Camaçari.

A Ford teve seu auge em Camaçari em 2006, quando chegou a representar 10,4% das exportações baianas. Nos últimos anos, esse número despencou: em 2018, o setor representou 6,2% de todas as exportações, no ano seguinte, 2019, caiu para 4,5% e, no ano passado, sua participação foi de apenas 2,1%.

Segundo dados da Receita Federal, desde 1999 a Ford recebeu R$ 20 bilhões em incentivos fiscais federais. Por parte do governo da Bahia, nos últimos três anos (momento de maior dificuldade da empresa) recebeu um bilhão de reais em incentivos fiscais estaduais.

Com a ampliação das exportações de petróleo cru por parte do Brasil e a diminuição dos incentivos fiscais para a indústria petroquímica, os demais trabalhadores do polo industrial de Camaçari também temem pela perda de seus empregos.

“Se é bem verdade que, durante um século, a Ford expandiu seus lucros a partir das benesses que recebeu do Estado, também é verdade que há muito tempo não há uma política industrial de médio e longo prazo. O que existe hoje são projetos que funcionam como bolhas. Falta diálogo com o setor industrial. Falta estabilidade política. Um país sem estabilidade política não tem estabilidade econômica”, avalia Aurino Pedreira, sobre as dificuldades da sustentabilidade de projetos industriais que gerem emprego.

Com o fim da Ford, a empresa automobilística fechou um acordo de indenização de R$ 2,15 bilhões com o estado da Bahia por perdas em sua arrecadação.