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Chega de pão, chega de circo

por Brenda Navarro
Fotografía: Nacho Yuchark
Publicado em 17 dezembro 2021

Com um urso fofo como bandeira e entre pães ultraprocessados carregados de açúcar e aditivos que são comidos em todos os cafés da manhã e lanches, Bimbo avança pelas mesas da região carregando uma mensagem inesperada para quem não conhece a história e a identidade da empresa: esculpindo um futuro neoliberal e sem direitos para os trabalhadores.

Não se diz pão de caixa ou forma, mas pão Bimbo, diz um artigo em um jornal na Catalunha para contar a história de uma família catalã que prosperou em solo mexicano. Ele está certo, não importa se você está na Espanha, México ou Brasil: o pão Bimbo é a referência por antonomásia para fazer sanduíches e que geralmente identificamos como parte da história da nossa dieta. Todos temos uma história para contar.

Estou longe de casa (México), 9057 quilômetros, mas quando ando pelo meu bairro em Madrid, costumo ver o carro de entrega da Bimbo com frequência. Não sei se é porque bem em frente ao prédio onde moro há alguns meses abriu um dos muitos supermercados fantasmas que alcançaram o auge junto com a pandemia. Esses lugares, os supermercados fantasmas, geralmente funcionam as 24 horas, mas é pela manhã, muito cedo, quando o Urso Bimbo faz sua aparição: circulam bandejas de sacos de pão que submergem no grande armazém desses supermercados que não estão abertos ao público, mas servem a um mercado online que exige um imediatismo que empresas como Glovo ou Amazon estão dispostas a satisfazer (e outras cadeias espanholas já os imitam como El Corte Inglés, Mercadona, Dia, etc.). Não há caixas, apenas pessoas encarregadas de preparar as encomendas para a cada vez mais longa fila de motoristas de entrega que, pelo menos na Espanha, são migrantes que não conseguem obter a regularização de seus documentos devido a uma dura Lei dos Estrangeiros que criminaliza especialmente as pessoas mais pobres com menos recursos.

Houve um tempo, na segunda década do século XX, em que os migrantes que chegavam de barco da Espanha para a América Latina não eram vistos como invasores, mas como pessoas que buscavam um futuro melhor. É o caso de Lorenzo Servitje, cujo pai, Juan Servitje, migrou para o México com sua família e em 1928 abriu sua própria confeitaria com o nome de El Molino. Em seguida, patenteou o “Higiénica Múltiple Póo“, uma máquina que fazia bolillos e que Lorenzo Servitje ia promover para consolidá-la como uma das confeitarias favoritas no centro da Cidade do México, não só pelo seu pão, mas porque expandiu o negócio para a elaboração de chocolates que distribuía nos cinemas até se tornar as marcas populares Barcel e Ricolino.

Todas essas marcas são familiares pra mim porque inevitavelmente me levam a pensar na minha infância que, mesmo com memórias vagas, ainda é o pilar da conformação de quem eu sou agora. As vezes que sonho com a ideia de morar em uma casa, o ambiente geralmente é a casa dos meus pais, onde nasci e passei os primeiros cinco anos da minha vida, onde muitas vezes acompanhei minha mãe para comprar algo para jantar às sextas-feiras no final da quinzena – No México o salário é pago a cada quinze dias -, contando moedas para comprar pão feito no dia e manteiga. Lembro-me que enquanto minha mãe fazia o ritual de escolher o pão mais quente e pedir uma pequena barra de manteiga ‘da boa, não apenas gordura’, eu olhava para a seção Bimbo-Marinela-Ricolino com o desejo de que um dia, finalmente, ela me dissesse que poderia me comprar algo. Não aconteceu enquanto morávamos naquela casa.

Nunca faltou nada, mas quando me tornei adulta, fiquei mais consciente de que cresci sendo uma criança pobre e que as moedas que minha mãe raspava e sua recusa em comprar pão ou doces bimbo de suas filiais, eram uma mistura de seu orçamento apertado com uma posição contra alimentos processados. “Sou pobre, mas não idiota”, seu lema. Isso, no entanto, mudou não porque ela percebeu os benefícios do pão Bimbo como alimento, mas como uma solução fácil para o pouco tempo que tinha quando começou a trabalhar em tempo integral. Foi assim que eu fui da escola primária sem poder comer produtos Bimbo a consumi-los no café da manhã todos os dias: todos os dias um sanduíche de presunto, cheguei até a jogá-los no chão do pátio da escola por não aguentar mais. “Você vai comprar pão Bimbo”, minha mãe dizia para minha irmã mais velha, “mas não do branco, que eu ouvi que nem os ratos comem, mas sim o integral. Que alimenta alguma coisa.

Ter pão Bimbo em nossa despensa, além de refletir a dupla jornada de trabalho que minha mãe dividia com minha irmã, também significava que já não era mais um luxo para nós, mas algo que no fundo desprezávamos pelo que simbolizava: a nossa mãe não estava em casa e também, o pão, pastoso e sem sabor, não podia competir com o cheiro das enchiladas, pambazos e tacos vendidos por senhoras dentro da escola pública de ensino médio que eu frequentava.

Uma espécie de ilusão de bonança compartilhada era a que vivíamos: Enquanto a renda em casa aumentava (embora fossem gastas da mesma forma), a indústria Bimbo foi instalada em nossa despensa e nacionalmente estava se configurando como uma das empresas mais ricas do país ao ser beneficiada naqueles anos pelo governo de Carlos Salinas de Gortari.

Alguns anos atrás, quando eu já morava em Madrid há um tempo, confesso que estava animada quando fui ao supermercado ao lado de casa e vi que eles distribuíram Pinguins Marinela, de Bimbo. Para mim, o Urso Bimbo e a cor azul metálica que guarda não dois, mas três “cupcakes” com sabor de chocolate são igualmente acessíveis, imediatos e invocam minha pré-adolescência. De vez em quando eu compro, especialmente em dias difíceis. Porque vícios são assim: eles não respeitam posições políticas ou consciências, são. E alimentos ultraprocessados são consumidos por serem.

Não importa se sabemos que eles são uma droga, eles têm alto teor de açúcar (36 gramas, 144% do total recomendado por um dia no caso dos Pinguins Marinela) e zero nutrientes; também não importa que sejam compostos por uma longa lista de ingredientes (38 nesses rolinhos de chocolate) entre aditivos e elementos sintéticos. Nós os consumimos porque eles matam rápido a fome, você se sente saciado e eles também lhe dão uma dose de açúcar que acaba com qualquer fadiga física ou emocional.

É um negócio redondo, por isso sua expansão monopolista tem sido possível, especialmente na América Latina, porque embora Bimbo tenha uma presença cultural e econômica na Espanha, as coisas, pelo menos no início, não foram fáceis para ele. Jaime Jorba, um dos sócios fundadores do México, em 1978, ao tentar reproduzir o mesmo modelo de negócio na Espanha, encontrou um panorama diferente: “Foi um erro acreditar que os trabalhadores espanhóis se comportariam da mesma forma que no México, os sindicatos exigiram muito e logo depois se tornaram o jugo que acabaria com a Bimbo Espanha”, Jorba reconheceu no livro escrito sobre a história da empresa.

A capacidade com que um monopólio dos alimentos ultraprocessados podem se estabelecer na América Latina tem a ver com as regulamentações frouxas e permissivas de cada país. No México, por exemplo, é de domínio público que a família Servitje – fundadora e hoje na direção geral da Bimbo – tem forte influência no âmbito político e que sua postura religiosa conservadora, próxima de Opus Dei e apoio financeiro dos Legionários de Cristo, se estende devido à chamada filantropia que exerce. Por meio de suas empresas, afirmam apoiar o desenvolvimento rural dando créditos a pequenas lojas – e também diz conscientizar sobre meio ambiente e alimentação.

A bimbo se consolida, assim, em diferentes setores da sociedade mexicana, seja por alianças estratégicas, seja pelas dádivas que oferece àqueles que não têm suas necessidades atendidas. É uma empresa poderosa com presença em 33 países em 4 continentes e que, segundo seu próprio site, tem vendas anuais de 15,4 bilhões de dólares. Mas seu crescimento econômico, como esperado, também está ligado às condições de trabalho de seus funcionários.

Entendo quando Jorba explicava que os sindicatos conseguiram ter uma pressão social significativa ao tentar se estabelecer pela primeira vez na Espanha. Eu entendo porque minha mãe começou a trabalhar em tempo integral na minha adolescência, ela fez isso para a confeitaria El Molino, a peça base do império atual de pasteizinhos açucarados. Minha mãe, que nunca foi sindicalizada, tinha jornadas de trabalho duro que costumavam ser das sete da manhã às quatro da tarde quando tinha sorte, e quando ela não tinha, ela trabalhava um dia das nove da noite até as oito da manhã. Naquela época morávamos na chamada área metropolitana da Cidade do México, então tinha que consumir três horas do seu tempo para chegar à Rua 16 de Setembro, sede da confeitaria. Onze horas de trabalho e três horas de viagem. Total: 14 horas fora por dia, para trabalhar.

Sin embargo, el principal obstáculo para que mi madre pudiera mantener su trabajo se debía a la naturaleza de su contrato. Solo existía la posibilidad de trabajar por temporadas específicas, recuerdo con especial énfasis la época del Pan de Muerto y la Rosca de Reyes. Luego, si acaso, unas cuantas semanas más, no se podía ingresar de planta -con empleo estable y no contrato temporal- aunque cumplieras con los resultados esperados. En México, la desregularización del mercado de trabajo, aunada a una corrupción dentro de los líderes sindicales que son aliados de los empresarios antes que de los trabajadores, ha mantenido a millones de personas  en condiciones precarias durante décadas. Minha mãe não precisava reclamar para que entendêssemos que ela estava cansada, mas como a maioria dos trabalhadores no México, ela se sentia tranquila por ser afiliada ao seguro de saúde do IMSS (do Estado) e receber 13°, mesmo que o salário não fosse alto. O que era bom durou pouco, os contratos eram apenas para temporadas e às vezes eles não lhe pagavam horas extras como o supervisor havia prometido. Havia reclamações, sim, mas a cultura de vestir a camisa, ser leal à empresa, e disciplina religiosa estrita permeava a base dos trabalhadores com quem minha mãe convivia. No entanto, o principal obstáculo para minha mãe poder manter seu emprego foi devido à natureza de seu contrato. Havia apenas a possibilidade de trabalhar por temporadas específicas, lembro com especial ênfase a época do Pão de Mortos e da Rosca de Reis. Depois, talvez, mais algumas semanas. Não era possível ser formalizado na fábrica – com emprego estável e não um contrato temporário – mesmo que você cumprisse os resultados esperados. No México, a desregulamentação do mercado de trabalho, aliada à corrupção entre os líderes sindicais que são aliados dos empregadores e não dos trabalhadores, manteve milhões de pessoas em condições precárias por décadas.

Por esse tipo de situação é difícil entender como o Urso Bimbo, parte de uma empresa que arrecada uma fortuna de 2.600 milhões de dólares, que de repente em 2021 aparece nas redes sociais como símbolo de liberdade ante o Estado. Que tipo de liberdade social pode uma empresa exigir quando busca todas as manobras e brechas legais para burlar leis que buscam resolver os problemas alimentares vivenciados por pelo menos 60% da população mexicana?

Bimbo foi uma das empresas, juntamente com a Coca Cola-FEMSA, que buscou bloquear a lei da rotulagem frontal em alimentos para informar atualmente os consumidores sobre a concentração excessiva de açúcar, gorduras e sódio que seus produtos possuem. Mas também foi além: recusou-se a retirar seu icônico urso da embalagem de seus produtos. A nova lei mexicana proíbe o uso de personagens na comida, mas Bimbo decidiu colocá-lo em sanduicheiras ou mesmo em guardanapos ou no próprio pão (Hotkis Bimbo). O rosto do urso Bimbo, nestas circunstâncias, se assemelha mais a um deboche ao Estado e para os consumidores, do que um gesto amistoso.

Essa postura, que muitos usuários das redes sociais acharam divertido e outros como uma bandeira para demonstrar seu descontentamento com a atual administração, não é nada além da amostra do poder que o já transnacional Bimbo exerce no México e o nível de apoio que tem de um setor conservador de políticos de direita para continuar agindo como quiserem. E o que a empresa faz é jogar com uma dupla moral: por um lado, contribui diretamente para a má alimentação dos mexicanos, por outro, faz campanhas altruístas na pandemia ao doar produtos para o pessoal médico. O que o marketing tem estudado bem e nos permeia, quer saibamos ou não o nome de “socialwashing“.

Não se diz Pan Bimbo: se diz PAN (o partido político católico e conservador que é seu aliado), se diz igreja, se diz desnutrição e obesidade infantil. Não queremos nos lembrar disso. Não queremos sempre levá-los junto conosco, ou nas costas de trabalhadores precarizados aqui em Madri, Colômbia, Brasil ou Cidade do México. Queremos que eles paguem impostos, cumpram as leis, parem de fazer lobby. É isso que precisa ser colocado sobre a mesa quando se fala de pão Bimbo: ele desnutre famílias enquanto enriquece a oitava família mais rica do México. Chega de pão, chega de circo.