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De carne somos

por Soledad Barruti
Publicado em 18 fevereiro 2021

Churrasco, taco, empanada, bife, hambúrguer, tamal e pastel: comemos três vezes mais carne do que há 50 anos, a um custo altíssimo para nossos corpos e para o mundo todo, que sangra e desaparece entre criadouros, matadouros e falsas soluções. Nesse especial de Bocado, cinco investigações que talvez te façam pensar duas vezes antes de repetir o bife

Nossa civilização está presa em um labirinto e a carne é seu minotauro. Como no mito, a armadilha e o monstro encantador foram projetados por um desejo irrefreável. Um apetite particular que se tornou hábito de alguns e depois desejo da maioria e no caminho teceu uma indústria tão turva como poderosa que nos arrasta pela coleira.

O que nos seduz, já sabemos: a carne faz trepidar cérebros e corações que lembram dela, escassa e inacessível naquele passado onde a natureza nos mostrava uma e outra vez, entre criaturas ferozes, velozes e ágeis, que nós somos corpos frágeis, mais devoráveis do que devoradores.

Que hoje haja açougues em cada confim do mundo exibindo vacas mortas em forma de meia rês, que nossas grelhas estejam repletas de churrascos frescos, que os hambúrgueres sejam sinônimo de uma economia próspera – de luxo e popular – é, para essa memória ancestral, bastante tranquilizador. Hoje sobra o que tanto faltou.

O problema é, claro, o que tivemos que fazer para que isso fosse possível. Fazer da carne um prazer instantâneo é o que constitui o labirinto que conduz a um único final: a extinção de tudo o que está vivo até chegar à nossa própria, deglutidos pela nossa própria criação. 

Hoje comemos três vezes mais carne bovina do que há 50 anos. À custa de animais, pessoas e um planeta que já não aguenta mais.

Os campos transgênicos de milho e soja com os quais alimentamos animais aprisionados em currais de engorda para o seu crescimento rápido estão devorando bosques e selvas, enquanto arrastam envenenamentos maciços – de moradores, de animais, de polinizadores, de micro-organismos – cada vez mais irreversíveis. Um terço da terra semeada dessa forma: com o alimento desses animais em um esquema que só parece sustentável porque quem fiscaliza é a mesma instituição que o implementa. Cada 100 calorias de comida que damos para uma vaca rendem 17 calorias de carne. São necessários 15 mil litros de água para obter um quilo de bife, o que consome já 23 por cento das reservas de água doce de que dispomos. Enquanto os gases do efeito estufa se multiplicam com o gado em um ritmo atroz: se as vacas fossem um país, seriam o terceiro maior emissor do mundo. Isso acontece da mesma forma se as vacas estão num curral comendo grão ou soltas no campo. O único jeito de conseguir mais terra é queimando a biodiversidade, fazendo desaparecer os outros ecossistemas. A Amazônia queima por causa disso. O Chaco queima por causa disso. O Pantanal e a bacia do rio Paraná queimam por causa disso. Desde que chegaram as vacas com as caveiras, a América Latina é uma terra de sacrifício.

Estamos repletos de matadouros, alguns formais como as cadeias de montagem que inspiraram Henry Ford a serializar o trabalho de seus operários e os nazistas a idealizar seus campos de extermínio. Lugares que não permitem a entrada de ninguém que não seja pago para suportar esses gritos, essa dor, esse tormento. Trabalhadores que padecem nos seus corpos envelhecidos precocemente, aleijados subitamente, marcados para sempre, a pena de fazer o que ninguém quer, mas alguém tem que fazer. Da Argentina até os Estados Unidos, as unidades de processamento de animais – as que recebem os animais vivos e os devolvem em pedaços – são antros onde uma e outra vez é importante olhar, por mais difícil que seja.

E a carne? O que comemos quando comemos a carne? Em 2017, o mundo foi abalado quando uma investigação revelou que os principais frigoríficos do Brasil – JBS e BRF – adulteravam a carne de diferentes maneiras para simular frescor em cortes a um triz da putrefação. Aditivos, gases e substâncias que ninguém imaginava que estivesse comendo enquanto comia. O escândalo durou o mesmo de sempre: pouco. Mas as práticas, longe de acabar, são a norma em muitíssimos lugares. O México, por exemplo, não só maquia a carne mas, além disso, antes, droga seus animais desde pequenininhos e os mantém drogados, com anabolizantes e hormônios proibidos que são obtidos no mercado clandestino ou com autorizações precárias, sem nunca deixar completamente a ilegalidade.

Ah, mas o som das brasas, a fumacinha do churrasco, o sabor que nos leva a reuniões onde nada disso existe… Perder as emoções intensas que a carne oferece, e as divisas suculentas que ela gera, são coisas que esta humanidade parece muito longe de querer fazer. Na verdade, as forças criativas e produtivas dos poderes de turno estão orientadas exatamente no sentido contrário: de Bill Gates à Cargill, da ONU à organização animalista PETA, todos estão investindo no mesmo objetivo: carne sem animais ou carne sem carne. Um desafio que vai do oxímoro à ciência que não quer ser ficção, ainda que pareça ir pelo caminho de nos nutrir da mesma coisa com que a gôndola nos nutre hoje e tanto nos faz adoecer: ultraprocessados. 

Passes mágicos que parecem nos mover, mas nos deixam sempre no mesmo lugar: esta modernidade está cheia disso, falsas soluções, ou soluções para poucos, como a pecuária que pretende transformar o inferno em um paraíso bucólico com vacas pastando sobre a grama saudável em paisagens lindas com uma missão promissora: comer carne e regenerar. Entre ricos e milionários, os animais mais sortudos, os desses campos que florescem na Argentina e no Uruguai, acabam transformados em caros cortes selados a vácuo que dão sentido a comensais na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia. Porque, como escreveu Atahualpa Yupanqui, ‘as penas e as vaquinhas vão pelo mesmo caminho, as penas são nossas, as vaquinhas são dos outros’.

Este especial do Bocado abre cinco caminhos com o propósito de retomar a aposta perdida por um dos primeiros jornalistas em contar coisas sobre esta realidade sangrante: golpear o coração antes do estômago.

Vocês, leitores, dirão se, daqui a cem anos, conseguiremos nosso objetivo.