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Siga a vaca

por Fermín Koop Uruguay
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Publicado em 24 fevereiro 2021

A criação de gado poderia ser completamente diferente do que é? As manadas podem fertilizar os solos, cuidar do clima, ser sinônimo de alimento que não seja nem cruel nem violento? A pecuária regenerativa garante que sim. Que, apesar de escassa – porque não há pasto para tanto carnívoro –, e cara, e inevitavelmente, então, excludente, nela reside uma oportunidade para não abandonar o churrasco.

Pastagens muito abundantes de diferentes tonalidades de verde. Altas, baixas e diversas, com a irregularidade própria da natureza. Muitas vacas, mas não amontoadas. Juntas – e aparentemente confortáveis – no mesmo espaço, onde vão ficar várias semanas até ir para outro lugar. Galinhas em movimento constante, e livres, ciscando ao sol pelo campo inteiro, e não trancadas em um galpão. Abelhas, minhocas e muitos insetos por todas as partes. Árvores que amenizam o calor e plantações para alimentar o gado. Também uma horta que produz frutas e verduras sem agroquímicos.

Paradisíaco assim é este campo em Maldonado, a duas horas de Montevidéu, no Uruguai. Mas a beleza não é o que mais impressiona, senão o que acontece sob o solo e que não podemos apreciar a olho nu: uma terra cheia de minerais e de vida, algo raro em qualquer campo de produção convencional. Uma paisagem completamente diferente da dos milhares de hectares de soja transgênica e de feedlots de pecuária que ocupam grande parte da América Latina, com a terra forçada a trabalhar sem pausa com base em químicos e fertilizantes, apesar de já não ter vida.

Valle Sol é como um oásis no meio da agricultura industrial do Uruguai. O campo pertence a Magdalena Urioste e sua família. Uma paisagem de 600 hectares com muitas serras, vales férteis e riachos de água doce tão limpa que pode ser bebida. A metade do terreno possui pastagens muito produtivas, usadas para a criação de 250 vacas, e o resto se mantém em estado natural. Árvores e pradarias se combinam em uma paisagem impressionante.

Aqui se produzem carne, frutas, verduras e ovos orgânicos, entre outras coisas. Tudo tem altíssimo valor nutricional, por ser produzido em sincronia com a natureza, graças a esse solo cheio de minerais e minhocas. Apesar do seu alto custo, que pode chegar a ser o dobro do preço da carne vendida em supermercados, esses produtos têm uma alta demanda.

Magdalena os entrega a restaurantes e clientes individuais de Maldonado, a região mais turística do Uruguai, com praias brancas e balneários como Punta del Este, que a cada ano recebe milhares de turistas de alto poder aquisitivo, provenientes majoritariamente da Argentina e do Brasil.

Magdalena tem quase 60 anos. Fala sete idiomas. Nasceu no Uruguai, mas passou muito tempo fora do país, 30 anos só entre Estados Unidos e Tailândia, onde fundou duas escolas particulares de ensino fundamental. Em 2013 decidiu voltar ao Uruguai e voltar a entrar em contato com o campo. Seu tio tinha sido produtor agropecuário, e ela sempre se interessou pela natureza. Essa paixão, que transmite ao falar, é o que imprime todos os dias a Valle Sol.

Mergulhar no mundo agropecuário não foi um caminho simples para ela. Ao regressar, Magdalena teve uma primeira experiência que fracassou, com vacas. Um vizinho vendeu o terreno a um consórcio agropecuário da Nova Zelândia, que aumentou a produção em grande escala e contaminou toda a região. Então Magdalena decidiu ir embora e comprou um terreno em Maldonado, bem longe da agricultura extensiva com uso de agroquímicos. Os vizinhos a desanimaram. Diziam que o solo era duro demais para poder ser fértil, nada mais distante da realidade que vemos agora: um claro – e bem-sucedido – exemplo do que se conhece como “agricultura regenerativa”.

Para Magdalena, acostumada a ver uma agricultura intensiva e contaminante, foi um despertar. “Tive o clique da cultura regenerativa e comecei um novo caminho”, diz. “A mudança foi impressionante. Em geral, medimos a produtividade de um campo em termos de quilos de carne por hectare, mas na verdade deveríamos pensar em todos os benefícios gerados a cada hectare. Tivemos que sair desse olhar da extração e pensar no que a natureza necessita em termos gerais.”

Esse despertar a levou a se reunir com outras mulheres produtoras do Uruguai, que criaram as Pampeanas Regenerativas Orientales. Um grupo que se propõe a repensar as práticas da pecuária tanto em relação ao modo de trabalho quanto no que diz respeito ao estereótipo: dizem que não há por que ser uma atividade somente masculina.

Magdalena e todo o grupo das Pampeanas, como são conhecidas, sabem que as vacas podem ser tudo o que todos os relatórios científicos informam: contaminantes, fontes de gases que aquecem o clima, um animal que seria necessário parar de criar e comer (em todas as suas formas) para haver sobrevivência possível como espécie, inclusive para que este planeta como tal também a tenha. Mas estão dispostas a mostrar ao mundo que as vacas também podem ser completamente o contrário. Por isso Magdalena se afastou da produção industrial e decidiu construir esse campo de carne contestatária, que não destrói a terra, mas que curiosamente a regenera.

Pode soar como uma técnica inovadora, mas na verdade não é nada disso: a agricultura regenerativa é voltar às raízes, ao campo ao que nossos avós estavam acostumados. Sem agroquímicos, sem arado e quase sem maquinários. Bate de frente com o que se ensina nas faculdades de agronomia e com a forma como vêm sendo trabalhadas as zonas rurais nas últimas décadas. Por isso gera muitas suspeitas dos setores tradicionais, apaixonados pela tecnologia, enquanto em nível mundial é cada vez maior o interesse por essas práticas que pensam na produtividade sem perder de vista a “saúde” dos solos.

A mudança reside em poucas e simples premissas com um efeito enorme: uma quantidade reduzida de vacas nos campos, que possam se mover em manada entre lote e lote com uma frequência determinada para dar descanso ao solo; baixo uso de insumos externos, como fertilizantes e pesticidas; solos sempre cobertos, de grama ou cultivos com uma diversidade de plantas que liberam nutrientes e que o tornam muito produtivos; e alteração mínima do solo, ou seja, não usar máquinas para aragem e lavoura, porque causam erosão. Com esse modelo de solo saudável, cada pedaço de terra tem mais micro-organismos do que as pessoas que habitam o planeta.

O entusiasmo é enorme, é cada vez maior o número de produtores interessados nesse modelo, especialmente na América Latina. Mas conseguir fazer isso não é fácil. Sem dados oficiais, estima-se que não haja mais do que 400 deles em todo o continente. A maioria exporta seus cortes de carne, ou as vacas, diretamente, para Europa, Estados Unidos e China, com preços difíceis de serem pagos por um público massivo.

Ou seja, as carnes que estão sendo produzidas aqui, com esse modelo mais justo e ecológico, vão parar em geral nas mesas de outros países. 

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Mudar o modelo, mudar o paradigma

No Zimbábue, um desses países africanos dos quais sabemos muito pouco, mora um biólogo que mudou tudo. Allan Savory, hoje com 85 anos, nasceu em um campo de criação de gado com 16 mil hectares e sempre viveu em contato com as vacas. Trabalhou primeiro como biólogo pesquisador e depois como produtor, especialista em fauna, político e consultor internacional. Savory pesquisou de forma intensa a degradação e a desertificação dos ecossistemas de pastagem no mundo, e isso o levou a questionar que as vacas estivessem degradando os solos.

Ele se exilou nos Estados Unidos em 1979 depois de uma guerra civil. Ao chegar, visitou vários parques naturais para continuar com sua pesquisa e observou que a desertificação dos solos também era um grande problema por lá, apesar de quase não haver vacas nos lugares onde esteve. Percebeu que não era o gado que estava matando os solos, mas sim a forma como lidamos com eles.

Baseado no padrão dos herbívoros que se moviam em densas manadas para se proteger de predadores, Savory criou um processo chamado “gestão holística”, que está mudando o paradigma da pecuária. Tenta reverter processos de desertificação ao iniciar um círculo virtuoso: onde aumenta a cobertura vegetal, a biodiversidade, os ciclos minerais e de água melhoram, e ao mesmo tempo são necessários cada vez mais animais para acompanhar o aumento da forragem. Para Savory, produzir carne e cuidar do meio ambiente não necessitam ser atividades antagônicas.

Para divulgar seus ideais, o ex-trabalhador rural do Zimbábue criou o Instituto Savory, organização global que oferece treinamento a produtores em práticas regenerativas no mundo inteiro. Sua palestra online, nas famosas Ted Talks, realizada em 2014, já conta com sete milhões de visualizações. Nesse vídeo, ele diz: “Estamos enfrentando uma tempestade perfeita por conta do aumento da população, de terras que se convertem em desertos e pela mudança climática. A única opção que temos é fazer o que é impensado, usar gado agrupado e em movimento, para imitar a natureza. O gado deixa suas fezes e urina, e também a terra pronta para o seu desenvolvimento. É a única maneira de lidar com a mudança climática e com a desertificação.”

Ou seja, gado solto e bosta por todos os lados, eis a solução. Porque nessa questão não se trata apenas de criar ou não animais, mas também de conhecer o estado dos nossos solos. Aproximadamente um terço da camada superficial do solo do mundo já está degradado de forma grave, e as Nações Unidas calculam que chegaremos a uma degradação completa em 60 anos se as práticas atuais continuarem. Segundo um relatório da ONU de 2019, a natureza está se reduzindo em termos mundiais a um ritmo sem precedentes na história da humanidade, com uma aceleração do ritmo de extinção das espécies. É suficiente então manter os recursos que restam do solo ou deveríamos recuperá-los? É para responder essa pergunta que entra a agricultura regenerativa.

Em poucas palavras, trata-se de um sistema de princípios e práticas agrícolas que tem por objetivo reabilitar e melhorar todo o ecossistema do campo ao dar grande importância à saúde do solo a partir do foco na gestão da água, no uso de fertilizantes e em outros elementos. Um método de cultivo que tenta melhorar os recursos em vez de destruí-los ou esgotá-los. Nos locais em que esse método é aplicado, os produtores dizem que, além do mais, termina sendo um bom negócio. Que aumenta a rentabilidade por conta do decréscimo no custo de insumos e também por conta da produtividade, que se reflete por exemplo na população máxima de animais que podem ser mantidos pelo ecossistema, ou no aumento do peso das vacas.

Um documentário que estreou no final de setembro na Netflix, Kiss the Ground, tem como foco a agricultura regenerativa e seu potencial, já não só para restaurar a terra, mas também para agir frente à mudança climática. Ao percorrer países e mostrar exemplos bem-sucedidos, o filme reúne vozes de cientistas e agricultores que se dedicam a regenerar o solo que pisamos, cultivamos e onde vivemos. Está em exibição em todo o mundo e possui milhares de visualizações.

Gado solto e bosta por todo lado, eis a chave da questão

Um modelo alternativo

O Instituto Savory já é uma grande estrutura que difunde sua metodologia pelo mundo com a habilitação de hubs ou eixos em diversos países. Na América Latina, eles estão na Argentina (Ovis21), no Chile (Efecto Manada), no Brasil (Agropecuária Fleta) e na Colômbia (Las Carolinas). Não importa em que país estejam, os hubs registram demandas cada vez maiores e capacitam dezenas de produtores todos os meses. 

Na Argentina, o Ovis21 foi fundado em 2003 por Pablo Borelli e Ricardo Fenton. Começou o trabalho na Patagônia, no setor ovino, depois se estendeu ao gado e alcançou mais de 600 mil hectares com gestão holística nas províncias de Buenos Aires, Corrientes, Córdoba e Santa Fe. Possui uma escola para produtores em que em 2020, apesar da pandemia e por meio de ferramentas online, capacitaram 200 pessoas de diversos países da América Latina. Preveem um boom do modelo regenerativo.

“Antes os produtores ficavam de braços cruzados à espera de que nosso negócio fosse um fracasso. Agora nos escutam e fazem perguntas. É outro momento”, diz Juan Pedro Borelli, filho de Pablo e parte da equipe do Ovis21. De todos os modos, reconhece também as dificuldades, porque a maior parte dos campos da Argentina são alugados e quem os aluga tenta tirar proveito máximo do terreno no menor tempo possível, o que leva a não priorizar a natureza. Além do mais, os produtores jovens, que muitas vezes concordam com a gestão holística, são freados pelos seus pais, que há décadas criam gado da mesma maneira.

Fernando e Mariano García Llorente, irmãos, são produtores que se interessaram pelo Ovis21. Administram o campo de criação de gado Santa María del Recuerdo em Saladillo, na Província de Buenos Aires. Um campo que costumava ser propriedade da Companhia de Jesus (jesuítas) e que em 1970 foi vendido à família Llorente, razão pela qual é conhecido como “estância dos padres”.

Durante muitos anos, foi um lugar de produção pecuária convencional, até que em 2016 chegaram os irmãos García Llorente e tudo mudou. Apesar de seus pais não terem demonstrado interesse em incorporar essas práticas, eles decidiram seguir adiante com os planos que tinham. Leram os livros de Savory, sem parar. Com o Ovis21, receberam capacitação. Implantaram as técnicas regenerativas e hoje enumeram os êxitos: aumentaram a produtividade, diminuíram o uso de insumos e a empresa cresceu tanto que hoje exporta carne para a União Europeia.

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Visitar Santa María del Recuerdo é chegar a um terreno como o da Magdalena, no Uruguai. São 30 hectares com 500 vacas que pastam tranquilas à sombra de uma plantação de álamos de três metros de altura.

Fernando e Mariano opinam que cada vez mais os produtores estão preferindo esse caminho na Argentina, apesar de ser um fenômeno a longo prazo. Porque todos os dias recebem compradores europeus surpresos com as práticas regenerativas e com a qualidade da carne, mas não veem o mesmo interesse nos consumidores argentinos. Não veem no mercado local nem na predisposição a um novo modelo nem na possibilidade de que se pague mais do que o dobro do que hoje se paga pelas carnes nos supermercados. “Ao açougueiro, você pede carne boa e barata”, diz Fernando. “O consumidor na Argentina não quer pagar mais por conta da pegada ambiental como talvez aconteça nos Estados Unidos ou na Europa. São atributos difíceis de aplicar ao preço da carne aqui.”

Com um total de 53,9 milhões de vacas, a Argentina é o terceiro país com maior estoque bovino do mundo, depois dos Estados Unidos e do Brasil. Há mais vacas do que pessoas, em um país com 44 milhões de habitantes. A Argentina produz 3 milhões de toneladas de carne bovina por ano e exporta 900 mil, principalmente para a China, que representa 75% da demanda. De todas as carnes, a bovina é a mais consumida na Argentina, uma média de 60 kg por pessoa anualmente. Chegará o dia em que esse país sul-americano, famoso pelas suas carnes, poderá servir e vender bifes que não causem tantos danos ao planeta, que sejam mais justos? 

Interrogações similares aparecem do outro lado da Cordilheira dos Andes. Ali é onde mora Isidora Molina. É veterinária e trabalhou durante muitos anos no Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (Indap). Até que um dia um colega de trabalho lhe mostrou uma apresentação de PowerPoint com os conceitos da gestão holística. Ela ficou tão surpresa que renunciou a seu salário fixo para ser parte do trabalho no campo com José Manuel Cortazar, que introduziu a gestão holística no Chile. Finalmente, em 2014, decidiu começar seu próprio negócio e fundou Efecto Manada, algo como uma escola a domicílio, porque Isidora visita campos do país inteiro para dar assessoria personalizada. Capacita produtores, dá cursos de avaliação de pastagens, monitoramento ecológico e planejamento da terra.

Isidora vive no sul do Chile, na região de Araucanía. Não nasceu ali, mas a visitava todos os anos, era seu lugar de férias porque lá morava seu tio, um pequeno agricultor. Depois de renunciar ao trabalho estatal, Isidora se mudou para uma casa em Araucanía que era dos seus pais e no jardim realizou suas primeiras práticas de gestão holística.

Chegou a um acordo com uma vizinha, a quem pediu as ovelhas emprestadas para fertilizar o solo, em troca de devolvê-las gordinhas. Foi um processo de aprendizagem que finalmente desembocou no Efecto Manada, apesar de recordar o início difícil, as várias portas na cara recebidas a cada vez que oferecia seus conhecimentos. “Não vou permitir que uma mulher mais jovem venha me dizer o que fazer”, ouviu há anos de um produtor.

Mas, anos depois, Isidora continua a viajar por todo o país para capacitar produtores. Assessorou metade dos 40 produtores que hoje aplicam o modelo no Chile. “O que aprendi na universidade e na indústria da agricultura não fazia sentido para mim”, explica. “Você ganha dinheiro, mas de forma muito camuflada porque todos os custos são altos: ficam escondidos os efeitos secundários da contaminação, da perda de biodiversidade e de problemas para a saúde humana, tanto dos trabalhadores que aplicam os fertilizantes como de todos nós que, além do mais, comemos esse alimento contaminado. Também não há emoção nos animais que você está criando, tudo funciona sob um sistema muito extrativo.”

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Não é a vaca, é o modo

Não é nenhum segredo que a pecuária industrial é um desastre para o planeta. Nem que as vacas criadas para carne são particularmente problemáticas.

Estudos científicos estimam que a pecuária, incluindo os cultivos para alimentar o gado, produz 14,5% das emissões de gases de efeito estufa no mundo. As vacas são as principais culpadas pela mudança climática porque seu processo digestivo gera grandes quantidades do potente gás metano. Criá-las e reproduzi-las também requer uma enorme quantidade de espaço: cerca de 70% de todas as terras agrícolas do planeta. Isso leva ao desmatamento, que libera enormes quantias de emissões para a atmosfera.

No entanto, os promotores das práticas regenerativas garantem que, de modo diferente, a pecuária poderia combater a mudança climática, em vez de causá-la. Não é a vaca, é o modo, dizem.

Porque os organismos e micro-organismos que vivem na terra usam os resíduos de plantas e animais como alimento. Ou seja, a bosta das vacas fertiliza: à medida que os resíduos se decompõem, liberam nutrientes como nitrogênio, fósforo e enxofre, que dão vida ao solo e são aproveitados pelas plantas. Isso é o que a agricultura regenerativa tenta incentivar: ao manter as vacas concentradas em um lote por certo tempo, aproveitam-se todos os seus resíduos para que o solo se encha de nutrientes.

A mudança climática é causada pela liberação de gases de efeito estufa na atmosfera, entre eles o carbono, um dos principais componentes do solo. Esse gás penetra na terra a partir de resíduos de cultivos e raízes, esterco e abonos orgânicos, depois de ser removido da atmosfera pelas plantas através da fotossíntese. Mas as práticas de agricultura convencionais, como o arado intensivo, a falta de rotação dos cultivos e as vacas que passam mais tempo nos feedlots do que no campo fizeram com que os solos tenham perdido entre 50% e 70% do seu estoque original de carbono. Sem carbono nem outros micróbios críticos, a terra se converte em mero pó sem vida, um processo de deterioração que se estendeu pelo mundo.

É possível reverter isso? Como levar ao solo outra vez esse carbono que se encontra na atmosfera? Muitos cientistas dizem que as práticas agrícolas regenerativas podem fazer isso, em um processo conhecido como “captura de carbono”.

E o conceito vai além da pecuária. Porque o reconhecimento do papel vital desempenhado pelo carbono do solo poderia também significar uma transformação na discussão sobre a mudança climática, que se concentrou em grande parte na redução das emissões de combustíveis fósseis.

“É verdade que há emissões de gases de efeito estufa por conta da carne, mas isso está restrito ao feedlot e a práticas ruins de pastoreio. A vaca não é a culpada, ela é parte da natureza”, defende Isidora Molina no Chile. “Se você conseguir imitar a natureza e não utilizar materiais que contaminam, os pastos terminam sendo sequestradores absolutos de carbono. Você termina sequestrando mais emissões do que as vacas podem emitir.”

Os estudos científicos mais mencionados em relação às práticas regenerativas são os do Instituto Rodale dos Estados Unidos, o maior centro de pesquisa no assunto. Um relatório de 2014 ressaltou que, com uma mudança para práticas regenerativas no mundo inteiro, poderiam ser capturadas mais de 100% das emissões anuais de dióxido de carbono atuais.

Nem todos estão de acordo. Especialistas em mudança climática também questionaram que os benefícios das práticas regenerativas sejam tão extensivos como o setor costuma afirmar. Por exemplo, um documento sobre o futuro dos alimentos, do World Resources Institute (WRI), organização sem fins lucrativos, concluiu que o potencial de captura de carbono no solo é limitado. Tim Searchinger, autor do estudo, defende que melhores técnicas de gestão da pecuária regenerativa podem ser úteis, mas não tanto como muitos pensam. 

Outra pesquisa da Food Climate Research Network do Reino Unido concluiu que uma melhor gestão do gado só captura carbono sob certas condições e que inclusive assim isso pode ser temporário e não necessariamente em quantia suficiente para compensar o impacto negativo da criação dos animais.

Os desafios da carne

Mesmo quando se amplia o uso das práticas regenerativas, muitos se perguntam se isso será o bastante para reduzir os impactos da pecuária no ambiente e para a mudança climática. Preocupa o que virá, o futuro. Porque o consumo de carne está aumentando em termos mundiais: um relatório da ONU calcula que vai crescer 76% até 2050, mesmo momento em que as emissões globais deveriam se aproximar de zero para o que mundo freie os piores impactos da mudança climática (algo que se vislumbra como quase impossível).

Para satisfazer essa demanda crescente, os agricultores continuam dizimando bosques em toda a América Latina, com cifras recorde de desmatamento durante as últimas décadas na Argentina, no Brasil, na Bolívia e no Paraguai.

Que o gado seja criado sob práticas regenerativas, em aliança com a natureza, pode ajudar a combater a mudança climática, ao recuperar o carbono perdido por conta da agricultura convencional, e voltar a dar vida ao solo. Mas não sustenta a demanda de carne atual, e muito menos a demanda futura, que cresce, especialmente em países com uma classe média que pede cada vez mais carne, como China e Índia. 

Por isso, vários especialistas e organizações ambientais como Greenpeace garantem que não é suficiente mudar a produção de gado, senão que também é preciso reduzir o consumo de carne e passar a uma dieta com mais frutas e verduras. Sem mudar de modo massivo nossa relação com os alimentos, o planeta dificilmente poderá evitar o aumento da temperatura antecipado por tantos estudos científicos.

Enquanto isso, as vacas que crescem semilivres em pastagens bucólicas ainda são um produto de alcance muito limitado, acessíveis apenas para consumidores que podem pagar seu alto preço. A carne regenerativa é ainda incipiente na América Latina, com um grupo reduzido de produtores e um mercado claro: Europa, Estados Unidos e China, onde há consumidores dispostos a pagar o dobro por um produto gerado com respeito à natureza e sem emissões contaminantes. Um bife, um corte, uma carne que tem o valioso certificado “EOV” (Ecological Outcome Verification, verificação de resultado ecológico), ou seja, o selo do Instituto Savory, que garante ao consumidor que foram seguidos certos parâmetros ambientais no campo, e que permite ao produtor vender a maiores preços.

No Uruguai, Magdalena Urioste vende toda a sua produção a consumidores locais e sempre fica de mãos vazias frente à forte demanda. Reconhece que a carne custa o dobro da produzida de forma industrial, mas não a considera cara: “Se alguém ousa dizer que é cara, lhe digo que pense se barata é a porcaria que compra no supermercado”.

Sua posição não é superficial. Sempre é estranho pensar que construímos um sistema econômico em que chamamos de “barato” algo que implica perda de fertilidade do solo, mudança climática, sofrimento dos animais e deterioração da vida em geral. Enquanto que consideramos “caro” o que regenera, cuida, torna algo possível. Comer um hambúrguer com carne produzida em feedlot, com vacas alimentadas com grãos em pouco tempo, tem um custo que às vezes parece estar oculto, mas que sempre existe. Trata-se de um custo para o solo, cada vez com menos nutrientes; para o planeta, rumo a um aumento de temperatura com consequências imprevisíveis para todos; e para nossa saúde, ao comer carne com menor valor nutricional.

Frente a esse cenário complexo, surge a pecuária regenerativa como proposta de um jeito diferente de fazer as coisas, em aliança com a natureza. Mas não é suficiente, pelo menos hoje. São poucos os produtores com práticas holísticas, e milhões de pessoas com uma dieta que pede cada vez mais carne. Não é possível – pelo menos por enquanto – compatibilizar esse modelo com uma ideia de soberania alimentar que garanta produtos saudáveis e de boa qualidade para toda a população.

Não podemos esperar para ver se de fato a pecuária mais ecológica se torna algo massivo. Temos que nos perguntar também, hoje, em 2021, como produzir alimentos saudáveis que cuidem da terra e cheguem à maioria da população. Que podem ser carne, ou não.