Como reconhecer uma organização de fachada

Bocado

Elas estão por todos os lugares. Seria injusto dizer que são dezenas: são centenas de organizações América Latina afora. Em audiências públicas no Congresso Nacional, nos ministérios, em eventos científicos, em ações de responsabilidade social, em discussões nos mais variados espaços políticos. Parecem levar ao debate as melhores evidências científicas e as posições mais favoráveis à sociedade. Mas, sob a roupagem de organizações da sociedade, representam interesses privados.

É difícil, por vezes impossível saber a que interesses servem algumas dessas organizações de fachada, que acabam por se misturar em meio a entidades que atuam de maneira legítima em prol do interesse público.

A permeabilidade do poder estatal a essas organizações, e a aceitação da mistura entre interesses públicos e privados, faz com que se tornem úteis para a atuação de corporações na definição de políticas. Nos últimos anos, como jornalistas na área de alimentação, lemos uma série de estudos e vimos, na prática, a atuação de grupos de fachada nas áreas de cigarro, álcool e alimentos. No geral, são importantes para as corporações por:

1. Fingir que fazem um trabalho de base para se aproximar de grupos sociais, neutralizar críticas ou apagar as linhas que separam pequenos e grandes agricultores ou empre sas.

2. Desacreditar os opositores mediante ataques e disputar espaço com organizações da sociedade que causem problemas.

3. Neutralizar evidências científicas contrárias e promover evidências científicas supos tamente independentes, mas sempre favoráveis ao financiador.

4. Exagerar ou mentir sobre os impactos de uma política pública em análise no Legislati vo ou no Executivo.

O projeto Source Watch, do Center for Media and Democracy, é especializado em identificar grupos de fachada. E sugere uma espécie de lista de checagem para identificar uma organização desse tipo.

  • Evita citar suas principais fontes de financiamento. Observe que isso não significa neces sariamente ocultação absoluta do financiamento. Alguns grupos de fachada realmente fazem um grande esforço para esconder suas origens, financiadores e vínculos pessoais com os patrocinadores. No entanto, a probabilidade de que sejam expostos de qualquer maneira, com consequências embaraçosas para a credibilidade de um grupo, tem levado muitas empresas e suas organizações patrocinadas a optar por uma estratégia de divul gação seletiva.
  • É estabelecido por e/ou operado por outra organização, (principalmente uma empresa de relações públicas, de campanha de base, de pesquisa ou uma consultoria).
  • Envolve-se em ações que beneficiam de forma consistente e evidente um terceiro, como uma empresa, setor ou candidato político.
  • Protege efetivamente um terceiro de compromissos / responsabilidade / culpabilidade
  • Redireciona o debate sobre uma questão para um tema novo ou não relacionado de forma suspeita (por exemplo, fumo passivo como uma questão de direitos de propriedade)
  • Tem um nome enganoso que disfarça sua agenda real. Às vezes o nome de um grupo de fachada pode parecer sugerir neutralidade acadêmica ou política, quando na verdade ele gera consistentemente opiniões, pesquisas, levantamentos, relatórios, enquetes e outras declarações que beneficiam os interesses de uma empresa, setor ou candidato político.
  • Tem o mesmo endereço ou número de telefone de uma empresa patrocinadora, ou de um grupo semelhante que desde então se desfez ou foi forçado a fechar por exposição, ações judiciais etc.
  • Alega repetidamente nas comunicações que é “independente”, “respeitado”, “com credibilidade”, etc.
  • Tem taxas para membros individuais extremamente baixas ou inexistentes (grupos de fachada normalmente precisam de membros individuais para sustentar suas reivindicações de serem uma organização “de base”)

A linha entre uma organização de fachada e outras organizações pode ser tênue. E isso torna o caso mais complicado. Em algumas situações, uma organização pode ter uma atuação ampla e reconhecida, e isso pode ser usado por uma determinada corporação. Com o tempo, o grupo pode perder totalmente o foco e passar a atuar simplesmente em função dos interesses desse financiador.

É comum que corporações se aproximem de organizações que já atuam em uma área que passa a ser um risco. Supermercados, por exemplo, podem passar a financiar grupos de agricultores familiares para se afastarem da ideia de que são responsáveis pela perda de diversidade alimentar e que colocam nas prateleiras apenas produtos de grandes empresas.

Colocando a culpa no indivíduo

Colocar o peso nos indivíduos é uma especialidade das corporações de qualquer área. Um estudo da London School of Hygiene and Tropical Medicine analisou a movimentação de redes sociais de organizações da sociedade que atuam na prevenção do uso excessivo de bebidas alcoólicas. De seis grupos analisados, três eram financiados por corporações. E eram justamente esses os que usavam com mais frequência os argumentos dos financiadores:

  • As pessoas estão bebendo muito
  • Pais são responsáveis por crianças e adolescentes que andam bebendo
  • Você deveria reduzir o consumo de álcool
  • Você deveria consumir bebidas com baixo teor alcoólico


Quando falamos dos argumentos que entram na discussão, precisamos pensar naqueles que ficam de fora. É assim que as organizações de fachada conseguem direcionar o debate público para longe dos temas que ameaçam seus financiadores. Pouco ou nada se falava sobre:

  • Políticas públicas de regulação da indústria de bebidas alcoólicas
  • Preços e impostos
  • Danos à saúde
  • Violência associada ao consumo alcoólico


Moldando a evidência científica

O International Life Sciences Institute (ILSI) é um habituè dos textos sobre conflitos de interesses. E, também, dos órgãos públicos que discutem saúde. Criado pela Coca-Cola e mantido por dezenas de corporações, o ILSI tem encontrado tapete vermelho na Anvisa, a agência nacional de saúde pública do Brasil.


Os radicais livres

Em setembro de 2017, a Philip Morris anunciou a criação da Fundação para um Mundo Livre de Tabaco, com orçamento de quase US$ 1 bilhão ao longo de uma década. Não menos surpreendente foi saber que a organização seria comandada por Derek Yach, uma figura com uma trajetória fundamental na negociação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, um marco global no desestímulo ao tabagismo.

O passado de Yach foi importante para cumprir com a estratégia mais antiga das corporações da área: semear a dúvida. Se um ex-figurão da OMS está nessa fundação, quer dizer que é um trabalho sério? O sul-africano logo lançou mão de outro chavão corporativo: desacreditar os opositores.

“Quando comecei a falar com a PMI [Philip Morris International] tive o mesmo tipo de reação emocional profunda que está sendo expressa por colegas próximos hoje. Ao longo de meses, após considerar as evidências dos benefícios de produtos de risco reduzido, fechamentos de fábricas de cigarros tradicionais e redução da demanda por fumo em folha, concluí que a estrada de redução de danos teria um enorme benefício para a saúde pública dos fumantes e poderia alcançar um grande progresso bem mais rápido do que está atualmente em andamento.”


Demandas justas da sociedade

Aproximar-se de demandas legítimas da sociedade é uma maneira de fazer avançar a agenda de interesses de corporações ou de comprar simpatia. Em vários países da América Latina, acesso a água e esgoto é uma demanda relevante e simpática. Mas melhor ainda se adicionarmos a isso uma questão identitária. “As desigualdades de gênero ocorrem em todos os estágios da vida da mulher, da sua infância à sua velhice. Por isso é tão importante dar atenção às necessidades especiais das mulheres com relação ao direito à água e ao esgotamento sanitário nas diferentes fases de sua vida”, diz um estudo feito em parceria entre a consultoria ExAnte, a organização Trata Brasil e a BRK Ambiental, uma das grandes concessionárias do setor no Brasil.

O Trata Brasil se posicionou como o grande think tank nacional na discussão sobre saneamento, a ponto de ter sido fundamental na moldagem dos projetos que resultaram na liberação geral da privatização desse setor. A organização é financiada por corporações que lucram tanto no saneamento como no comércio em geral da água.

O tema encontrou eco no Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, também financiado por corporações do setor. A organização participou das discussões do Fórum Mundial da Água, em 2018, e sobre a privatização do saneamento no Brasil.

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