Dieta enteral feita com alimentos em casa tem respaldo científico, mas enfrenta resistência da indústria

Alguns municípios têm programas bem-sucedidos de incentivo à dieta caseira para pacientes não internados; prática ainda tem má fama devido a esforços da indústria, interessada em vender fórmulas comerciais

Por Mariana Lenharo

07/12/2021

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Olivia Mendes de Araújo é mãe do Hemerson, jovem de 24 anos que precisa se alimentar por uma sonda. Ela já conseguiu na Justiça o direito de receber do estado de São Paulo a fórmula de nutrição enteral, um preparo industrializado que contém todos os nutrientes necessários para pacientes que não podem se alimentar pela boca. O custo mensal da fórmula pode ultrapassar R$ 1.000. Recentemente, porém, ela ficou sete meses sem receber o produto.

Nesse período, ela conta que teve que se virar para fazer preparos caseiros para dar ao filho por sonda. “Eu comprava Sustagen e Nutren por minha conta e dava. No café da manhã, como ele tem o intestino bastante preso, eu batia mamão, laranja, ameixa, coava, e depois dava pela sonda com a seringa. Fazia sopinha caseira”, conta.

Mas, sem orientação e prescrição de uma dieta personalizada, feita por nutricionistas, e sem o acompanhamento desses profissionais, obter os nutrientes necessários por meio de preparos caseiros é muito difícil. Hemerson acabou perdendo dez quilos nesse período. Agora, a família já recebeu fórmulas suficientes para os próximos dois meses. Depois disso, no entanto, a situação é incerta.

Olivia não é a única a passar por essa dificuldade. O número de pessoas em nutrição enteral domiciliar tem crescido no Brasil e no mundo. Apesar de não haver um registro nacional de pacientes nessa situação, levantamentos regionais apontam para esse aumento. No Distrito Federal, por exemplo, a prevalência de indivíduos que se alimentam por sonda em casa saltou de 5 por milhão para 176 por milhão de habitantes entre 2000 e 2005. Outras famílias brasileiras sequer conseguem decisões judiciais favoráveis para obtenção da fórmula, como foi reportado recentemente por O Joio e O Trigo

No Brasil, não existe uma política nacional do SUS para garantir a dieta enteral comercial para pacientes em domicílio. Por isso, cada município determina se irá fornecer os produtos e como irá fazê-lo. Para lidar com a questão dos altos custos desses preparos industriais, alguns municípios têm desenvolvido protocolos que recomendam dietas enterais feitas em casa, com alimentos de verdade, ou um misto disso com suplementos industrializados. As experiências das cidades de Piraquara e Pinhais, no Paraná, têm demonstrado que esse tipo de programa pode ser bem-sucedido quando existe um acompanhamento personalizado de nutricionistas. Especialistas veem a adoção da dieta enteral caseira como uma tendência, que traz de volta aspectos sociais da alimentação.

“O fato de o paciente sentir o cheiro do alimento na casa e se sentar na mesa próximo à família, para que não seja excluído da refeição, faz muita diferença. Às vezes até o resultado do tratamento é melhor e ele consegue reagir, conversar”, diz Karin Luciane Will, coordenadora da Divisão de Nutrição da Secretaria Municipal de Saúde de Piraquara. 

Mas ainda existe muita resistência à prática, com base na ideia de que a comida feita em casa tem mais riscos de contaminação e não é capaz de satisfazer todas as necessidades nutricionais dos pacientes. Para esta reportagem, avaliamos estudos sobre dietas enterais artesanais e entrevistamos especialistas que atuam na área de nutrição enteral para entender as evidências que respaldam o uso dessa alternativa. A pressão da indústria alimentícia foi apontada como um dos motivos pelos quais a dieta caseira ainda tem uma fama ruim.

Tendência

Quando Ana Paula Lança Bento, nutricionista na Clínica de Nutrição da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), desenvolveu sua pesquisa de mestrado sobre dieta enteral feita com alimentos, em 2010, ela sentiu que estava nadando contra a maré. “Meu trabalho era importante para a população, mas, para a área acadêmica, era visto como uma coisa ultrapassada”, afirma. “A gente hoje vê o contrário: a necessidade de aumentar a oferta de alimentos para o paciente. A gente recebe alimentos a vida inteira e não tem motivo nenhum para deixar de recebê-los, ainda que pela sonda.”

Nos Estados Unidos, a adesão à dieta enteral caseira é uma tendência dos últimos anos e tem sido adotada principalmente a pedido do próprio paciente ou da família, segundo um artigo de 2016. “Parece que recentemente as pessoas estão preferindo algo mais natural e estão voltando a fazer suas próprias fórmulas”, afirmou em 2015 Katherine Bennett, nutricionista clínica do hospital americano infantil CHOC, em um episódio de podcast dedicado ao tema.

No Brasil, a tendência não está tão relacionada à busca por uma alimentação mais natural, mas ao alto custo da fórmula industrializada, que chega a R$ 40 por dia, segundo levantamento feito por Bento – o valor se deve ao fato de que são produtos especializados, que contêm ingredientes caros. Já a fórmula semiartesanal custa até R$ 12 por dia. 

Diferentemente do que ocorre com medicamentos, não existe uma linha de financiamento federal para dietas enterais para quem se alimenta por sonda em casa, nem uma política nacional para garantir o acesso a esses produtos, afirma Luna Rezende Machado de Sousa, doutoranda em políticas públicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora no Centro Universitário Uniandrade. O SUS garante o fornecimento gratuito das fórmulas comerciais apenas para pacientes em hospitais. 

As prefeituras não são estritamente obrigadas a fornecer o produto e, na prática, cada uma desenvolve sua própria estratégia para lidar com a questão. Algumas fornecem parte das necessidades dos pacientes, e a família fica responsável por custear o restante da dieta. Outras fornecem apenas para pacientes com determinada renda familiar.

“Os municípios do Brasil todo tiveram que se organizar para dar conta dessa demanda que vem aumentando bastante”, diz Sousa. “As pessoas vivem mais e têm mais doenças que vão impedindo a alimentação pela boca por diversos fatores, desde câncer, doenças neurológicas até o pós-Covid.” 

Diante do alto custo das fórmulas comerciais, dietas elaboradas com alimentos passaram a ser cada vez mais consideradas. Mas para fazer uma dieta enteral artesanal adequada não basta bater e coar os alimentos que se comeria pela boca, diz Sousa. O grande desafio é que, ao peneirar o alimento, grande parte dos nutrientes pode ser perdida. Os ingredientes devem ser selecionados com cuidado para não deixarem resíduos e apresentarem a textura correta para passar pela sonda.

Pensando nisso, o município de Belo Horizonte e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) elaboraram uma dieta enteral com base em alimentos, avaliando toda sua composição química e nutricional. Em 2016, o Ministério da Saúde endossou a experiência pioneira e publicou o primeiro informativo técnico sobre a terapia nutricional enteral domiciliar.

Experiências bem-sucedidas

Isso impulsionou alguns municípios a incluírem em seus protocolos fórmulas elaboradas com alimentos. Um deles foi Piraquara, uma cidade de 110 mil habitantes no Paraná, que passou a indicar fórmulas semiartesanais para os pacientes da cidade. A mistura consiste em alimentos contidos na cesta básica combinados com fórmulas industrializadas fornecidas pelo município. A experiência, que foi descrita por Sousa em um artigo de 2017, fez com que o custo médio por paciente atendido com fórmulas caísse 48%.

Com a economia, a prefeitura pôde contratar nutricionistas para fazer o acompanhamento personalizado desses pacientes, que antes não existia. Antes do novo protocolo, Karin Luciane Will era a única nutricionista contratada pelo município. À frente da Divisão de Nutrição e Saúde da Criança, ela só cuidava da parte de gestão. “Os pacientes passavam por atendimento, mas não tinha uma continuidade. Não adiantava fornecer a dieta e não ter acompanhamento, que é primordial.” 

Além de Will, Piraquara hoje tem mais três nutricionistas contratadas, além de oito residentes da Universidade Federal do Paraná, que atuam na cidade. “Em todas as situações de dieta enteral, é feita visita domiciliar pela nutricionista para verificar como é a casa, o armazenamento da dieta, os cuidados em relação à limpeza, para evitar qualquer tipo de risco”, diz Will. Segundo ela, o município continua fornecendo dietas 100% industrializadas quando as nutricionistas avaliam que isso é necessário, mas 95% dos pacientes são atendidos com dietas mistas, ou seja, feita com alimentos e complementadas por fórmulas prontas.

A administração da dieta artesanal é feita da mesma forma que a industrial: por meio da gastrostomia, quando a sonda entra diretamente no estômago, ou por meio da sonda naso-gástrica, que entra pelo nariz.

Em Pinhais, também no Paraná, a situação foi semelhante. Antes, o município conseguia fornecer apenas 50% do que o paciente precisava de dieta industrializada. “Os outros 50% ficavam a cargo da família, que nem sempre adquiria ou complementava”, afirma Jerosiane Nunes Marchaukoski, nutricionista do município de 123 mil habitantes. “Isso ocasionava piora do paciente, pois a família realizava a diluição incorreta para render mais, o que é totalmente compreensível.”

Alguns pacientes que fizeram a transição da dieta comercial para a dieta caseira em Pinhais resistiram à mudança. Eles argumentavam que as fórmulas comerciais são mais práticas e tinham dificuldade para entender que as calorias da dieta artesanal atendem 100% da prescrição, diz Marchaukoski. “Mas outros aceitaram bem, até com certa satisfação pela redução de custos, e também pela família poder preparar a comida do paciente e não dar somente ‘o leite’”, como se referem às fórmulas comerciais. 

Sousa afirma que as experiências de Piraquara e Pinhais fazem parte de um movimento maior. “Agora eu garanto o acompanhamento mais de perto do paciente e não dou só uma lata de um pozinho. E tenho uma dieta testada, que eu sei que de fato tem uma composição adequada. É uma tendência”, garante Sousa.

O que diz a ciência

Pesquisas que avaliam a transição de pacientes que consumiam fórmulas enterais comerciais para preparos com alimentos têm mostrado resultados promissores. Um estudo britânico de 2019 concluiu que, após a transição para a dieta artesanal, não houve aumento de episódios de entupimento da sonda nem de taxas de infecção. Houve ainda uma melhora significativa na prevalência de problemas intestinais, como vômito, diarreia e constipação, além de uma redução no uso de medicamentos e melhora na qualidade de vida. Em alguns pacientes, a dieta feita com comida reduziu episódios de engasgo e ânsia de vômito.

Em estudo qualitativo de 2018, pacientes e cuidadores entrevistados relataram ainda terem percebido benefícios sociais na adoção da dieta artesanal por ter incluído a pessoa que se alimenta por sonda nas refeições da família. 

Há também estudos que apontam desvantagens. Um trabalho de 2013 que avaliou receitas de dietas enterais artesanais coletadas aleatoriamente em hospitais brasileiros concluiu que essas receitas são altamente variáveis e apresentam composições nutricionais inconsistentes. O artigo também cita outras questões relacionadas a dietas caseiras, como o risco de contaminação e de entupimento da sonda, bem como a falta de praticidade do preparo em comparação às fórmulas comerciais. 

É preciso considerar que os autores do estudo estão associados a empresas que produzem fórmulas nutricionais, como a Nestlé e a Danone ou ao ILSI Brasil, organização ligada à indústria.

Um dos autores, Dan Linetzky Waitzberg, professor associado do Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da USP e diretor do grupo Ganep – Nutrição Humana, observa que o preparo de dietas enterais artesanais embute a dificuldade de saber o real valor energético-proteico e de micronutrientes consumidos pelo paciente. Isso porque o cozimento pode alterar a biodisponibilidade dos alimentos, ou seja, a quantidade de nutrientes que podem ser absorvidos e utilizados pelo organismo. 

“Existem diferenças na composição de cada nutriente em termos regionais e de sazonalidade. Além disso, a chance de contaminação aumenta, e o tempo de guarda [de armazenamento] da dieta diminui, obrigando a preparar a dieta frequentemente, o que nem sempre é factível pelos cuidadores ou familiares do paciente”, afirma Waitzberg.

A dieta artesanal pode ser indicada em alguns casos, segundo ele. “Nós apoiamos o uso de dietas artesanais em pacientes com pleno uso do trato gastrintestinal e quando ministradas por sondas de alimentação em gastrostomia (no estômago) e feitas com materiais de valor calórico proteico conhecido como albumina, hidrolisado de soja, caseína, whey, maltodextrina, óleo de oliva ou de soja, adicionada de um suplemento vitamínico mineral de boa qualidade”, afirma.

O risco de contaminação, um dos pontos citados por Waitzberg, também é destacado nas páginas informativas sobre dieta caseira nos sites de grandes produtoras de fórmulas comerciais, como Nestlé e Danone. Bento, da Universidade de Ribeirão Preto, afirma que essa ênfase se deve ao fato de poucos estudos terem analisado a qualidade microbiológica das dietas caseiras feitas em condições adequadas. 

“Quando eu fiz uma análise da dieta preparada com todos os cuidados que foram orientados no manual, essa dieta vinha com nível de contaminação muito pequeno, dentro do aceitável para dietas enterais”, explica Bento. Ela afirma que, em condições inadequadas de higiene, tanto dietas caseiras quanto as industrializadas podem ter contaminação, já que as últimas também requerem algum tipo de manipulação.

Questionado sobre se existe alguma pressão da indústria de alimentos pela indicação de dietas 100% industrializadas, Waitzberg afirma que “o objetivo de qualquer indústria é vender seus produtos”. Segundo ele, “cabe aos médicos e nutricionistas saber indicar de maneira mais correta uma ou outra forma de melhor nutrir o paciente.”

Nutricionistas que atuam na área afirmam que a influência da indústria na prescrição de fórmulas comerciais é significativa. Marchaukoski, nutricionista de Pinhais, afirma que sentiu essa pressão para manter a recomendação de 100% de fornecimento de dietas industrializadas no município. “Foram várias abordagens em visitas de representantes comerciais, questionando sobre a dieta enteral artesanal/mista, citando a dificuldade do paciente, o risco de contaminação microbiológica, a piora do estado nutricional que ocasionaria em um efeito reverso de aumento nas internações e complicações da doença de base, questionamento sobre se a dieta passaria no equipo [tubo de plástico utilizado na alimentação enteral], se era mesmo completa.”

Bento diz que existe uma pressão por parte da indústria principalmente na prescrição feita por nutricionistas de hospitais, quando o paciente vai ter alta. “A indústria é muito sedutora em muitos pontos. Favorece caminhos para idas a congressos, jantares, alguns brindes. Acho que, em tudo isso, a marca fica ali martelando na cabeça dos profissionais”, afirma ela.

Sousa, da Universidade Federal do Paraná, concorda: “Da mesma forma como a indústria exerce um forte apelo para fórmulas infantis, também tem forte apelo para fórmulas enterais industrializadas.”

Dietas industrializadas ainda são importantes

Quando surgiram na década de 1960, as fórmulas enterais comerciais foram muito importantes para reduzir os níveis de contaminação em hospitais e padronizar a oferta de nutrientes para pacientes, além da praticidade oferecida. Nos hospitais, elas continuam sendo essenciais devido à inviabilidade do preparo de dietas com alimentos em um ambiente com risco mais alto de contaminação. Ela também é indispensável para certos pacientes em casa, com determinadas condições clínicas. 

É o caso de Viviane, 27, que foi vítima de um atropelamento quando era criança. Ela ficou com diversos problemas graves de saúde, inclusive uma alergia severa à maioria dos alimentos. A condição faz com que Viviane precise se alimentar por sonda com uma dieta exclusivamente industrializada. 

Apesar de ter uma liminar judicial que determina que o estado de São Paulo forneça a dieta, a jovem chegou a ficar meses sem receber as fórmulas. Nesse período, sua mãe, Maria de Fátima da Silva Lima, contou com o suporte da ONG Entre Rodas, que forneceu o alimento para algumas famílias. “Fui ajudada por dois meses por essa ONG. A gente tem que ficar atrás de doação”, afirma Maria.

Para Sousa, o estímulo e orientação sobre uso de dietas enterais artesanais a pacientes que têm condições de recebê-las permite que municípios arquem com 100% dos custos de dietas industrializadas de pacientes que realmente precisam dessa modalidade, como Viviane.

Tanto Maria, mãe de Viviane, quanto Olivia, que precisou se virar para fazer uma dieta enteral caseira para o filho Hemerson por sete meses, fazem parte de uma rede de mães que lutam pelo acesso a insumos. “Até o que eu tenho recebido, se posso ajudar alguma outra mãe que está precisando no momento, eu ajudo, para que não falte nem pra uma e nem pra outra”, diz Maria. “A minha luta não é só minha, é uma luta de muitas outras mães com a mesma necessidade.”

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