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Com uma mão, Coca-Cola apoia pequenas mercearias, com outra as asfixia com baixas comissões e lojas de conveniência próprias

por Orlando Humerez
Fotos: Emilio Jiménez
Publicado em 5 de novembro de 2021

Donos desses estabelecimentos dizem ganhar entre 75 centavos e dois pesos por cada refrigerante que vendem; lucro que é perdido com a conta de luz

São 6h50 da manhã. Martha prepara os últimos detalhes para abrir sua mercearia e atender os trabalhadores da fábrica localizada em frente ao seu negócio. No transcurso do dia, receberá clientes e fornecedores, até as 7 da noite, hora em que fecha por causa da criminalidade que atinge a região. 

Segundo a Iscam, uma empresa especializada em pesquisa e análise de mercado, 56% dos mexicanos consideram as pequenas mercearias de bairro como as mais confiáveis para encher a despensa desde que a pandemia começou. A Associação Nacional de Merceeiros Atacadistas (Anam, na sigla em espanhol) informou que esses estabelecimentos tiveram um aumento em vendas de 8,7% em 2020. 

Mas esse não foi o caso de dona Martha: “a pandemia acabou com minhas economias: como a fábrica fechou e os trabalhadores dela eram meus principais clientes, quase ninguém vinha mais. Por sorte, abriram outra vez e, pouco a pouco, a gente vai se recuperando. Minha filha me diz para eu fechar a lojinha, porque me desgasta muito, mas ela é minha vida, eu preciso fazer algo produtivo”, diz a mulher de 60 anos. 

Até a segunda metade de 2020, a Coca-Cola e suas fábricas engarrafadoras iniciaram uma campanha para apoiar as pequenas mercearias. Em seus caminhões, era possível ler frases solidárias, e foi anunciado um programa para ajudar aquelas que haviam sido afetadas a saírem da crise. 

A indústria mexicana da Coca-Cola, por meio da Fundação Coca-Cola, desenvolveu um projeto de empoderamento de mulheres donas de mercearias, em que são oferecidas capacitações para melhorar o sucesso e a rentabilidade de seus negócios. E, embora anunciem 5 mil apoios econômicos, na realidade são créditos entregues juntamente com o Pro Mujer, uma sociedade financeira que concede microcréditos e que pede como garantia algum veículo ou propriedade imobiliária. Essa opção está disponível somente nos estados de Hidalgo, Estado de México, Puebla, Querétaro, Tlaxcala, Oaxaca, Veracruz e Cidade do México.

Segundo a fabricante de refrigerantes, foram entregues mais de 190 mil créditos aos pequenos comerciantes, 500 mil equipamentos de proteção sanitária e foram capacitados mais de 180 mil mulheres merceeiras. No relatório de donatárias 2020, consta que a Fundação Coca-Cola recebeu 34.426 milhões de pesos. Já o Pro Mujer tem dados públicos somente de seu status financeiro de 2016, ano em que teve uma receita líquida de cerca de 31 milhões de pesos. 

Para Estela, os créditos com a Coca-Cola não são uma opção. “Eu tenho crédito com a Coca-Cola, mas se você atrasa o pagamento em um dia, independente se deve pouco ou muito, não te fornecem mais, ou seja, esse crédito não é de muita ajuda.”

Em dezembro do ano passado, a empresa iniciou uma campanha chamada Minha loja segura, para gerar confiança aos merceeiros e seus clientes e, assim, evitar que as lojas fossem fechadas. O projeto consistiu em dotá-los de anteparos e máscaras de proteção. “Deram-me um plástico para que não cuspissem em mim, em que está escrito o nome da marca. Para mim, seria mais útil se dessem desconto na compra de refrigerantes”, comenta María, visivelmente irritada. 

Baixas comissões

Não é segredo algum que o produto mais vendido é a Coca-Cola. Um produto isca que, se as mercearias não o oferecem, pode significar perdas de clientes. 

Esteban el tendero (Esteban, o merceeiro), um youtuber, mostrou como o lucro com a venda de Coca-Cola é baixo: dependendo do tamanho do refrigerante, ganha-se entre 75 centavos e 2,50 pesos por garrafa.

“O lucro com os produtos da Coca-Cola é muito pequeno, pois os refrigeradores consomem muitíssima luz. Outro dia eu disse ao representante da empresa que o refrigerador estava consumindo muita luz e que isso me fazia quase não ter lucro com o refrigerante, e ele, fazendo cálculos, comentou que com o que eu pedia em produtos ganhava 1.600 pesos em dois meses, mas isso é muito pouco, e 60% das minhas vendas são de produtos da Coca-Cola”, informa Estela.

“Não te dão mais ajuda se você tem refrigerador de Coca-Cola na mercearia, ou, se te dão algum produto na compra de tantos refrigerantes, não te dão mais nada de ajuda. Antes, te davam produtos se você não vendesse Red Cola [refrigerante de cola mexicano concorrente da Coca-Cola], mas me disseram que, por causa da pandemia, não fazem mais isso”, relata Clemente, dono de uma mercearia. 

Oxxo, a rival

“A pandemia não afetou meu negócio; as pessoas preferiam comprar comigo a ir a um supermercado. O que me prejudica são as Oxxos que existem aqui perto”, comenta seu Armando. 

Oxxos são as cerca de 20 mil lojas de conveniência criadas pela Femsa, a maior engarrafadora da Coca-Cola. A maioria delas encontra-se no México, mas se expandiram pelas Américas Central e do Sul. Antes da pandemia, calculava-se que a cada dia eram abertas três Oxxos em algum lugar do país. Apesar da pandemia, a Oxxo fechou 2020 com receitas superiores a 181 bilhões de pesos.

“Sim, elas nos afetam, porque às vezes tem gente que vem com cartão de crédito e eu não tenho maquininha. Não posso competir com eles, pois oferecem promoções que não posso oferecer”, diz Clemente.

Segundo a Comissão Nacional Bancária e de Valores (CNBV), a Oxxo é o principal correspondente bancário do país ao representar 43% dos pontos de pagamentos de dez instituições. Além disso, suas lojas oferecem a possibilidade de fazer cobranças e envio de remessas, pagamento de serviços e produtos da Amazon, venda de comida rápida, celulares, entre muitas outras coisas. Segundo estimativas, para cada Oxxo que abre, entre 5 e 7 comércios de bairro fecham.

“As pequenas mercearias não me afetam tanto como as Oxxos, pois não posso competir com suas promoções e com o fato de aceitarem pagamentos com cartão de crédito e terem diversos serviços que eu, como merceeiro, não posso oferecer”, conta Mario, dono de um comércio há mais de 30 anos. 

A Aliança Nacional de Pequenos Comerciantes (Anpec) calculava que, em dezembro de 2020, aproximadamente 300 mil pequenos negócios fechariam suas portas.

Funcionários mal pagos

As lojas Oxxo geram 37% das receitas da Femsa, e somente no México têm mais de 245 mil funcionários com um salário de entre 1.100 e 1.500 pesos semanais, dependendo dos incentivos por baixos índices de perdas de produtos ou por cobrança de serviços. 

Mariela, assim como muitos mexicanos, foi despedida de seu antigo emprego por causa da pandemia, razão pela qual teve de procurar rapidamente outro trabalho. Foi assim que chegou, em abril de 2020, à Oxxo. “Comecei a trabalhar aqui porque os trabalhos do meu pai diminuíram, eu fiquei desempregada e tive que ajudar com os gastos da casa e, bem, por causa da pandemia ninguém estava contratando mais do que a Oxxo”, comenta. 

“Já cortaram o vale-transporte. Isso me afetou muito, porque eu saía do trabalho à noite, e a essa hora não tem mais transporte público. Agora só dão o vale aos que entram às 11 da noite.”

“Não acho justo o salário que recebo, é muita responsabilidade para o que recebo”, diz Ricardo, funcionário há dois anos. Essas lojas costumam aparecer nos noticiários por causa dos roubos que sofrem tanto de dentro quanto de fora; houve até casos de tomada de reféns, tiroteios que atingiram os funcionários, além de ataques com bombas molotov.

“O salário poderia melhorar, o fixo poderia ser maior, porque de fixo ganho 1.400 por semana, mas dependendo das vendas, aumenta um pouco, se vão muito bem, chega a 2.000, mas isso é muito raro”, acrescenta Mariana.

Segundo a organização civil Fundar, no ano fiscal 2013 foram isentados 60.849.597 pesos de impostos devidos pela Oxxo, que recentemente foi apontada pelo presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, como beneficiária da reforma energética de seu antecessor, Enrique Peña Nieto, pois, de acordo com o atual mandatário, paga menos pela energia elétrica do que consome. Segundo o presidente, um lar mexicano paga 5,2 pesos por kilowatt, enquanto a Oxxo paga 1,8 pesos, o que faz os pequenos comerciantes serem ainda menos competitivos em relação às lojas da Femsa. 

Mercearias, um fator que contribui para a obesidade

O México é o quarto país do mundo que mais consome alimentos ultraprocessados. Ana Isabel Rodríguez, doutoranda do Instituto Nacional de Saúde Pública, estudou a associação das cadeias de lojas de conveniência e de bairro com a má alimentação.  

A conclusão foi que “quanto maior a densidade desses comércios, havia uma diminuição do consumo de frutas e leguminosas e uma predisposição, sobretudo, para o consumo de bebidas açucaradas”. 

Também descobriu que esses comércios oferecem menos frutas e verduras e mais enlatados. “Isso talvez aconteça porque muitas vezes essas lojas não possuem condições adequadas para terem esse tipo de alimentos, ou porque é muito mais custoso comprá-los. E esses alimentos processados são muito mais baratos, e as pessoas os estão consumindo cada vez mais.”

O estudo foi feito na Cidade do México; foram estabelecidos quadrantes de 500 metros em torno das casas dos participantes e contou-se o número de mercearias disponíveis para as pessoas dessa área. Foi feita, também, uma enquete com todos os participantes de cada casa para que se conhecesse sua alimentação, e os resultados foram associados ao número desses pequenos comércios existentes na região. 

“Então, vimos que quanto mais mercearias dentro dessa área de 500 metros da casa, havia uma menor qualidade da dieta”, diz Rodríguez. Esse trabalho mostra o peso dos ambientes obesogênicos na alimentação. “O problema não pode ser resolvido pedindo que se altere a alimentação, porque se você diz às pessoas que elas devem começar a comer frutas e verduras e estas não estão disponíveis na região ou não são acessíveis, as pessoas não vão comprar.”

Para a pesquisadora, medidas como a rotulagem frontal nos alimentos e a proibição de venda de junk food a menores de idade em Oaxaca são boas medidas, “mas também é preciso transformar os sistemas de produção e distribuição de alimentos. Uma opção poderia ser subsidiar esses alimentos locais, para que sejam muito mais acessíveis à população. Também apoiar, sobretudo, as mercearias para que possam oferecer majoritariamente esses produtos locais”.