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O manual do bom lobista

Foto: Adobe Stock
Publicado em 8 agosto 2021

As marcas são as mesmas em toda a região. Na gôndola, elas competem para conquistar clientes e multiplicar oportunidades de consumo para seus produtos. Porém, para contrariar as políticas públicas que as afetam, elas trabalham juntas, ombro a ombro, e utilizam estratégias que aperfeiçoaram ao longo dos anos.

DEZ ESTRATÉGIAS DE INTERFERÊNCIA REPETIDA

1/ Adiar as leis

Quantos carrinhos de compras são abastecidos por hora em um supermercado? Basta percorrer o mais próximo e multiplicar essa imagem para ter uma ideia do que as marcas ganham a cada dia que conseguem adiar uma lei que visa desestimular o consumo de nutrientes críticos à saúde. Por isso a estratégia é sempre a mesma: quando as políticas públicas começam a dar sinais de avanço, aciona-se a máquina do atraso.

A lei de rotulagem nutricional foi apresentada ao Congresso do Chile em 2007 pelo senador Guido Girardi, mas foi aprovada em 2011 e só entrou em vigor em 2019. Por que o processo demorou doze anos? “Havia um lobby gigantesco de empresas transnacionais que usaram todos os meios de boicote, com recursos econômicos e políticos de toda espécie”, lembra Girardi. O senador pode fazer um relato em primeira pessoa das ligações que recebeu da então presidente Michelle Bachelet, que apesar de apoiar a medida, exigia que ele negociasse concessões no texto para aliviar a pressão do setor. Bachelet teve que enfrentar ameaças de catástrofes econômicas que previam a promulgação da lei: a perda maciça de empregos que o setor assegurava que ocorreria. Mas que nunca se materializou. Um relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization – FAO) e da Universidade do Chile mostra que, cinco anos após a implementação da lei de rotulagem, não houve impacto em termos de empregos, salários e produção física no setor de produção de alimentos.

As principais corporações de alimentos participaram ativamente das discussões legislativas no Chile. E, de alguma forma, elas ensaiaram erros e acertos que depois colocariam em prática em outros países. Um grupo de marcas liderado por Carozzi, Nestlé e Coca-Cola rompeu com a associação que as unia, Chilealimentos, para formar uma nova associação mais combativa: Alimentos y Bebidas Chile (AB Chile), que formou a vanguarda da guerra em 2014. “Foi uma grande falha não ter tido uma voz poderosa. Sentimos que o setor de alimentos foi maltratado”, disse José Juan Llugany, gerente geral da Carozzi.

A lei foi aprovada. Mas o empresário Sebastián Piñera ganhou a presidência e a vetou. Girardi, então presidente do Senado, ficava dia após dia em frente ao Palácio de la Moneda junto a outros parlamentares com cartazes que diziam coisas como “Piñera vendeu a saúde das crianças para o McDonald’s”. Eles permaneceram lá mesmo quando o presidente do país pediu que liberassem a área para uma visita oficial de Barack Obama. Ele finalmente suspendeu o veto, mas permitiu que o regulamento fosse traçado a portas fechadas e com critérios tão brandos que até a Coca-Cola parecia saudável.

Com Bachelet de volta ao poder, em um segundo mandato, o governo avançou com uma nova regulamentação, agora aberta e baseada em evidências. As pressões voltaram e Bachelet ligou novamente para Girardi: “Estou com muita pressão, não sei se consigo assinar esta regulamentação”, disse a ele. O senador ameaçou renunciar e finalmente negociaram a prorrogação do prazo de implementação da norma. “Tivemos que chegar a situações muito extremas”, lembra.

Enquanto o Chile avançava com a lei, os governos da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai encontraram no Mercosul a desculpa perfeita para evitar o conflito com as empresas de alimentos e adiar a discussão. Com o argumento da necessidade de “harmonizar” as normas de rotulagem de todos os países-membros para não afetar o comércio, criou-se um atoleiro burocrático que daria ao setor um prazo de entrega incomum: mais de dez anos. Ainda hoje, quando se discute a lei de rotulagem na Argentina, essa é a principal objeção da Coordenadora das Indústrias de Produtos Alimentícios (Coordinadora de las Industrias de Productos Alimenticios – Copal), replicada por Jorge Neme, secretário de Relações Econômicas Internacionais da Argentina. “Hoje, é muito mais importante que as empresas preservem a possibilidade de gerar empregos, de exportar, do que de alguém de repente ficar chateado porque um doce de leite tem muito açúcar ou algum chouriço tem excesso de gordura”, diz o secretário.

No Peru, a lei foi sancionada em 2013, mas só pôde ser aplicada em 2017, após a aprovação da sua regulamentação, que foi adiada pelos presidentes Ollanta Humala e Pedro Pablo Kuczynski.

Na Argentina, ela obteve um consenso arrasador no Senado. No entanto, no mesmo dia da sessão parlamentar, a senadora Anabel Fernández Sagasti admitiu publicamente que horas antes havia recebido um e-mail da Coca-Cola com uma série de correções no projeto de lei.

Assim que obteve a meia sanção do Senado e ingressou na Câmara dos Deputados, seu presidente, Sergio Massa, viajou até a província de Tucumán e foi fotografado no aeroporto com políticos ligados à indústria açucareira como Juan Luis Manzur, governador daquela província, ex-ministro da Saúde, médico e um dos detratores do imposto sobre bebidas açucaradas que se tentou implantar na gestão de Mauricio Macri. Pouco depois, Massa entregou o projeto a seis comissões, em uma manobra que os defensores da lei consideraram uma forma de atrasar seu andamento e denunciaram no Twitter com a hashtag #ExcessoDeLobby. O trending topic acabou forçando Massa a refazer seus passos e descartar duas comissões. No entanto, não foi possível apressar o tratamento: demorou nove meses até a decisão da comissão, em julho de 2021, e o projeto ainda aguarda debate para virar lei.

O processo na Guatemala também está atrasado: o projeto foi apresentado em 2018 e, desde então, está nas mãos da comissão de saúde dos deputados, que ainda não se pronunciou. Mas os legisladores atuais estão começando a rediscutir o assunto.

Uruguai e Brasil conseguiram alguns avanços, apesar da camisa de força imposta pelo Mercosul. O Uruguai possui um decreto de rotulagem de alimentos desde 2018, que, no entanto, não saiu do papel por dois anos e meio. O decreto que se seguiu, nº 246, alimentou as expectativas, mas menos de uma semana após sua entrada em vigor o Uruguai mudou de governo e seu novo presidente, Luis Lacalle Pou, relaxou os valores-limite que determinavam o excesso de açúcar, gordura e sódio. O que aconteceu no meio? Foram apresentados cerca de dez recursos de revogação e foi criada uma ação na mídia, realizada principalmente por representantes do setor. Uma agência de comunicação contratada pelo grupo de supermercados Disco divulgou na mídia dois engenheiros químicos da Universidade da República que criticaram a rotulagem e negaram que houvesse relação causal entre o consumo de alimentos ultraprocessados ​​e o desenvolvimento de patologias. Os empresários Fernando Pache, diretor da Câmara da Indústria de Alimentos (Cámara Industrial de Alimentos – Ciali), e Martín Montoro, da Associação dos Importadores e Atacadistas de Armazéns (Asociación de Importadores y Mayoristas de Almacén – Aima), também fizeram uma excursão pela mídia.

As estratégias de dilação, adiamento – até agora as mais eficazes –, são infinitas e têm exemplos em todos os países. Outra técnica usada para atingir esse objetivo é propor modelos de rotulagem alternativos. Isso força os governos a construir evidências sobre se funciona ou não e, em alguns casos, até se é implementado. Os favoritos da indústria são o sistema de estrelas com valor nutritivo usado pela Austrália; o Nutriscore, que tem um design diferente, mas parte de uma ideia de pontuação semelhante e é muito difundido na Europa; o semáforo, muito utilizado no Equador; e o GDA (Guideline Daily Amount), uma diretriz de rotulagem de quantidades diárias que a Coca-Cola promoveu voluntariamente em 2010. O México teve propostas diferentes para definir sua rotulagem, mas no país que teve como presidente um ex-CEO da Coca-Cola – Vicente Fox Quesada (2000-2006) – prosperou o sistema favorito do líder em refrigerantes.

Em 2011, o maior grupo da indústria de alimentos e bebidas do México, o ConMéxico, anunciou a campanha nacional “Checa y elige” [Verifique e escolha] para que todas as empresas se juntem à cruzada pelo GDA. A campanha contou com dois mascotes, Buzo e Caperuzo, que “ajudaram” na tarefa de decifrar o código e “ter uma vida saudável sem abrir mão de comidas deliciosas ou sobremesas”. O exercício consistia em colocar na mesa todos os alimentos ultraprocessados ​​que ia comer durante o dia e, calculadora na mão, somar percentagens para não ultrapassar o valor diário recomendado. Missão impossível. De acordo com levantamento do Instituto Nacional de Saúde Pública (Instituto Nacional de Salud Pública – Insp), mesmo entre os estudantes de nutrição, menos de 2% conseguiam fazer a matemática direito.

Alejandro Calvillo é diretor do El Poder del Consumidor [O poder do consumidor], entidade que então denunciou a campanha do setor: “O que procuravam era se antecipar ao que poderia ser uma regulamentação de rotulagem com base científica”. Mas, em 2014, o GDA proposto pela indústria, com algumas leves mudanças cosméticas, foi instalado. Foi preciso ir à Suprema Corte e travar uma batalha extenuante. Somente em 2018, com a posse de Andrés Manuel López Obrador como presidente, deu-se início à discussão que culminou com a nova lei de rotulagem, até então a mais rigorosa e completa de toda a região.

Foto: Nacho Yuchark

2/ Comprar vontades

No Brasil, a doação de recursos por empresas é proibida em épocas de campanha. Outros países como El Salvador nem mesmo exigem a prestação de contas dos órgãos de controle. Já em outros, como Chile, Argentina e México, os partidos são forçados a divulgar informações sobre seus financiadores. Nos que exigem declaração de recursos, ficam expostas as manobras da indústria alimentícia. Em 2018, os cinco senadores colombianos que lideraram o boicote à lei do junk-food receberam 411 milhões de pesos colombianos – o equivalente a 125 mil dólares – para financiar suas campanhas de empresas do setor de alimentos ultraprocessados, como Postobón S.A. e Aldor, e de engenhos de açúcar como Manuelita, Mayagüez, Castilla, Riopaila e La Cabaña.

A pressão econômica foi efetiva na Colômbia, onde o projeto foi descartado duas vezes e só aprovado em 2021 com importantes modificações solicitadas pela indústria, como a eliminação da obrigatoriedade de impressão da etiqueta nos anúncios. Assim, mesmo que suas embalagens tivessem dois ou mais selos, as marcas poderiam continuar a oferecer iogurtes milagrosos ou refrigerantes light em diferentes meios, sem que o excesso de gordura e açúcar manchasse a mensagem.

“Na sétima comissão do Senado, a Associação Nacional de Empresários da Colômbia enviou um documento que foi utilizado por legisladores financiados pela indústria a fim de trazer seus pedidos às dependências como uma cópia literal”, diz Alejandro Mantilla, do Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo. Em ambos, foi proposta a modificação do artigo 5 para limitar a regra e para que a rotulagem não fosse estendida a “todos os produtos classificados como ultraprocessados”.

Peru: em 2018, a líder do partido de direita Força Popular, Keiko Fujimori, pediu ao então presidente Martín Vizcarra, em uma série de reuniões secretas, que demitisse a ministra da Saúde Silvia Pessah por ter solicitado a regulamentação da lei de rotulagem aprovada pelo Congresso. Mas o maior escândalo foi desencadeado quando o empresário bilionário ligado à indústria de alimentos e CEO da Credicorp, Dionisio Romero Paoletti, confessou na Justiça ter entregue 3,65 milhões de dólares para a campanha presidencial de Keiko Fujimori em 2011 e 450 mil dólares para a campanha de 2016.

Enquanto isso, o fundador do poderoso grupo de laticínios Gloria, Vito Rodríguez, declarou ter dado 200 mil dólares em dinheiro à dirigente do partido Força Popular também em 2011. A mesma cifra que Alfredo Pérez Gubbins, gerente da empresa de alimentos Alicorp, confessou ter dado para a campanha. Em contrapartida, Fujimori também atuou para modificar a lei promovida pela sociedade civil e substituir os octógonos de alerta pelo sistema de semáforos. No entanto, a manobra foi impedida pelo então presidente Vizcarra, que se opôs às modificações de Fujimori e acabou implementando os octógonos de alerta. Apesar de o Peru ter obrigado a declarar contribuições para campanhas políticas, Fujimori não as declarou, e parte do dinheiro que recebeu somente foi descoberto pelas confissões dos envolvidos na causa Lava Jato.

Foto: Miguel Tovar

3/ Criar uma narrativa

Mais que um ator econômico, a indústria tornou-se um interlocutor autorizado em questões de saúde pública. Ela não obteve legitimidade apresentando evidências científicas, mas acumulando poder em diferentes áreas.

As marcas são especialistas em se posicionar como parte das soluções para os problemas que afligem a sociedade, mas que, em alguns casos, são causados por elas mesmas. Em 2008, a associação Chilealimentos criou o programa “Chile crece sano” [Chile cresce saudável], a fim de trabalhar em conjunto com a FAO na “luta contra a obesidade”. E há centenas de exemplos semelhantes.

Em junho deste ano, a fundação da empresa Danone lançou na Argentina um programa de “educação alimentar e nutricional em tempos de pandemia”, o qual envolve o “treinamento” de professores de meninos e meninas de 5 anos. Desenvolvido em parceria com a Fundação Educacional – onde marcas como McDonald’s, Coca-Cola, Shell e Disney investem dinheiro –, o programa foi pensado para ser aplicado em creches da cidade de Almirante Brown, nas proximidades de uma das fábricas da empresa, na província de Buenos Aires. Um mês depois, também na Argentina, o Grupo Arcor, principalmente produtor de doces, assinou um acordo de cooperação com o Ministério da Educação no qual se comprometeu com um investimento de 25 milhões de pesos (equivalentes a 250 mil dólares) para o “desenvolvimento de conteúdos educacionais digitais” e “24 espaços de inovação com equipamentos multimídia em escolas de todo o território nacional”.

No Brasil, desde o início da discussão sobre a criação de um novo sistema de rotulagem frontal, em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) colocou ​na mesma mesa pesquisadores de saúde pública, organizações não governamentais e fabricantes de ultraprocessados. O perigo da igualdade hierárquica tornou-se cada vez mais evidente ao longo dos anos, quando a agência acabou se posicionando a meio caminho entre a pressão privada e a saúde pública. No final, o Brasil definiu um sistema de rotulagem que não se baseia nas melhores evidências científicas, um sistema chamado “lupas”.

Outra estratégia utilizada é criar uma narrativa que inverta papéis: é o consumidor que deve resistir, estoicamente, ao esforço constante que a indústria faz para gerar desejo e necessidade. “O modelo octógono preto é dissuasor, demoniza os alimentos e acreditamos que essas coisas são primeiro opção e depois porção. É diferente comer uma barra inteira de chocolate que comer uma barra”, diz Daniel Funes de Rioja, presidente da poderosa Copal, que representa 35 câmaras setoriais e mais de 14.500 empresas de alimentos e bebidas na Argentina.

As marcas propõem que, assim como o consumidor deve aprender a se comportar, poderá se adaptar gerando mecanismos de autorregulação. A Copal tem um código próprio de autorregulação da publicidade infantil: foi lançada oficialmente em 2019 em um evento que contou com a presença de Luis Miguel Etchevehere, então secretário de Agroindústria, e de Mercedes Nimo, diretora nacional de Alimentos e Bebidas (e ex-diretora-executiva da própria Copal). Ela postula restrições à publicidade de alimentos e bebidas que excedam 200 quilocalorias por embalagem servida em espaços e programas com públicos de 35% ou mais de crianças menores de 12 anos. O mesmo fez as associações empresariais em toda a região — Colômbia, Brasil, Peru – e também empresas unilaterais como Kellogg’s e Ferrero.

Além disso, a publicidade: plataforma econômica que sustenta os meios de comunicação e que os torna um elemento-chave na divulgação das suas mensagens comerciais disfarçadas de notas informativas. Alejandro Calvillo garante que, quando a lei de rotulagem foi debatida no México, “surgiu, na mídia, inúmeros artigos contra ela pagos pela indústria. Mídias de comunicação muito conceituadas que publicam páginas inteiras sobre a rotulagem assinadas pela equipe como se fossem notas jornalísticas, negando ao leitor o direito de saber se se trata de informação paga”.

No Chile, após a entrada em vigor da lei e da sua regulamentação, a indústria de alimentos ajustou a mira dos seus esforços para deslegitimar. Uma dessas novas estratégias foi a campanha “Hagámosolo bien” [Vamos fazer direito], apresentada em um comercial produzido pela associação AB Chile, com as caras mais conhecidas do esporte e do entretenimento dizendo que a lei era confusa. “Todos queremos que o Chile se alimente de maneira mais saudável, mas isso não está claro”, foi a mensagem rejeitada por representantes do governo, sociedade civil e ciência. “No dia seguinte, todos esses rostos pediram perdão, dizendo que não sabiam que haviam sido enganados pela indústria”, lembra Girardi.

Em 2016, a Superintendência de Indústria e Comércio da Colômbia ordenou o cancelamento da veiculação de um comercial na televisão, a fim de conscientizar sobre o grande risco à saúde que representa o alto consumo de bebidas açucaradas, das organizações colombianas Educar Consumidores. A campanha, intitulada “Tómala en serio” [Leve a sério], causou tanto aborrecimento no setor de alimentos que o órgão oficial também determinou que revisaria “toda a publicidade relacionada ao consumo de bebidas açucaradas” antes de ser veiculada. Ou seja, aplicaria censura prévia. Por fim, o Supremo Tribunal Federal colombiano suspendeu o veto e possibilitou a divulgação do comercial, considerando que a restrição da informação afetava o direito à saúde dos consumidores.

4/ Se disfarçar de ciência

Na década de 1960, quando começou o debate sobre a toxicidade do cigarro, circularam estudos que se apresentavam como científicos quando, na verdade, eram financiados pela indústria do tabaco para negar os danos que causavam à saúde. Trinta anos depois, documentos internos da indústria foram divulgados gabando-se do sucesso de estratégias para minar regulamentações que poderiam ter salvado milhões de vidas.

Naqueles mesmos anos, outra indústria estava aperfeiçoando a mesma estratégia de ganhar tempo: a de alimentos e bebidas.

As marcas falam constantemente sobre saúde. Fazem isso por meio dos chamados especialistas que, em momentos-chave da discussão, pedem que os alimentos ultraprocessados ​​não sejam “demonizados” e se opõem à proposta de rotulagem frontal de advertência na mídia e nos âmbitos de discussão de políticas públicas.

Na Argentina, as semanas de debate sobre a lei de rotulagem tiveram entre as personalidades mais consultadas médicos e nutricionistas relacionados às marcas. Alberto Cormillot, que tem uma linha de produtos ultraprocessados ​​que leva seu nome e dirige uma fundação que recebeu dinheiro da Coca-Cola, disse na televisão que com um padrão tão “exigente” todos os alimentos teriam selos e seu efeito seria diluído: “Se tudo é preto, nada é preto”.

Uma voz muito recorrente é a de Mónica Katz, ex-diretora da Sociedade Argentina de Nutrição (Sociedad Argentina de Nutrición – SAN) – organização que dá seu selo de aprovação a biscoitos açucarados, iogurtes e sal – e participante da campanha “Tu porción justa” [Sua justa porção], criada pela Arcor para estimular o consumo “moderado” de produtos que no Chile têm dois, três e até quatro octógonos. A campanha foi denunciada pela Fundação InterAmericana do Coração Argentina (Fundación Interamericana del Corazón Argentina – FIC) e pela Fundação para o Desenvolvimento de Políticas Sustentáveis (Fundación para el Desarrollo de Políticas Sustentables – Fundeps) por considerar que sua mensagem é “enganosa e temerária” e que é uma estratégia comercial que viola o direito à saúde e à alimentação de crianças e adolescentes. Entrevistada em diferentes meios de comunicação sobre o projeto de lei de rotulagem frontal, Katz afirmou: “Estou preocupada que minha neta passe por uma gôndola e veja que o iogurte, que é algo que eu quero que ela consuma, tem um rótulo preto ou um aviso de perigo em qualidade de nutrição”. Os iogurtes que terão selos contêm até oito colheres de sopa de açúcar, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o máximo diário de seis colheres para um adulto.

Os profissionais se apresentam perante o Congresso argentino como independentes, embora não sejam tão independentes assim. Como exemplos, Susana Socolovsky, financiada pela Coca-Cola para participação em simpósios e congressos, e Sergio Britos, diretor do Centro de Estudos em Política e Economia Alimentar (Cepea), cuja posição – crítica ao modelo de alerta – chegou ao nosso conhecimento por meio da agência de imprensa da Danone.

“Se todos os consumidores fizessem exercícios, o problema de obesidade não existiria”, disse Indra Nooyi, CEO da Pepsi. A Coca-Cola, por sua vez, financiou um instituto de pesquisa dedicado a validar essa teoria com estudos: a Rede Global de Balanço Energético. Entre 2010 e 2015, ela gastou quase 120 milhões de dólares para pagar pesquisas acadêmicas, parcerias com grandes grupos médicos e programas de exercícios para combater a obesidade. Pelo menos doze dos cientistas que questionaram a ligação comumente aceita entre açúcar e obesidade tinham laços financeiros com a Coca-Cola, que lhes pagou milhões de dólares.

Em 1978, Alex Malaspina, então vice-presidente da Coca-Cola, fundou o Instituto Internacional de Ciências da Vida (International Life Sciences Institute – Ilsi) como “uma oportunidade de reunir a indústria de alimentos e promover pesquisas”. Bayer, Mondelez, PepsiCo, Grupo Bimbo, Danone, Cargill e Dow são hoje algumas das empresas que fazem parte do grupo. “Vamos chamar as coisas pelo seu nome e vamos chamar o Ilsi de grupo de lobby”, diz um relatório de 2012 do Observatório de Corporações na Europa (Corporate Europe Observatory – CEO), uma organização que expõe como operam na formulação de políticas os interesses de empresas que não buscam o bem.

O relatório descreve como o Ilsi entrou na OMS, na FAO e na Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (European Food Safety Authority – EFSA). O instituto conseguiu colocar representantes em comissões de fumo, agrotóxicos, organismos geneticamente modificados, aditivos, açúcar, sal, gorduras trans, em momentos críticos do debate sobre temas como a toxicidade de certos venenos, a segurança dos transgênicos e a segurança dos aditivos. E, claro, a relação entre produtos ultraprocessados ​​e obesidade. Eles apoiam sua posição em estudos nos quais seus cientistas escrevem coisas como: “A diminuição do gasto energético e da atividade física e o número de horas investidas em atividades sedentárias teriam um papel crítico (na obesidade infantil)”, enquanto “o aumento na ingestão calórica é ainda mais polêmico e deve-se às características individuais de cada região e a fatores biológicos e culturais”.

No México, o Ilsi foi denunciado como uma corporação de lobby dedicada a bloquear políticas públicas que poderiam ser inconvenientes para a Coca-Cola. Em 2015, ele ofereceu uma série de estudos segundo os quais não há relação entre bebidas açucaradas, obesidade e diabetes. O então presidente da entidade era o engenheiro Raúl Portillo, ao mesmo tempo diretor de Assuntos Científicos e Regulatórios dessa empresa de refrigerantes. O Ilsi foi denunciado pelo El Poder del Consumidor e o escândalo obrigou o instituto a fechar seus escritórios.

A Aliança Latino-Americana de Associações da Indústria de Alimentos e Bebidas (Alianza Latinoamericana de Asociaciones de la Industria de Alimentos y Bebidas – Alaiab) e o Conselho Internacional de Associações de Bebidas (International Council of Beverages Associations – ICBA) são estruturas criadas em nível supranacional para gerar pressão. Embora tenham nomes que sugerem interesse pelo bem-estar – e podem ser confundidos com entidades da sociedade civil –, são alianças empresariais. Câmaras que reúnem outras câmaras de todos os países e colocam lado a lado as grandes marcas de alimentos e bebidas de todo o mundo.

Desde que o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveu a classificação NOVA para identificar alimentos pelo seu nível de processamento (do não processado ao ultraprocessado), e mais ainda quando essa classificação se popularizou ao ser incorporada ao Guia Alimentar para a População Brasileira do Ministério da Saúde, em 2014, um dos maiores esforços da ciência patrocinada pela indústria está em ação para desacreditá-lo.

O Brasil se tornou palco central dessa batalha, que acabou se espalhando pela América Latina. As associações nacionais e regionais de tecnologia alimentar são as principais promotoras dos argumentos mobilizados pelas empresas contra os estudos científicos realizados por suas universidades nacionais. Entrevistas, simpósios, encontros com estudantes e profissionais de saúde tentam convencer que a expressão “ultraprocessado” não faz sentido e que não existem alimentos bons ou ruins para nomear especificamente.

Um estudo assinado pela Universidade da Costa Rica (que participa da diretoria do Ilsi na Mesoamérica) e pela Associação de Tecnologia Alimentária da Costa Rica (Asociación de Tecnología Alimentaria de Costa Rica – Ascota) garante que o termo “ultraprocessado” “não tem base científica” e critica diretamente a classificação dos alimentos NOVA. Para ele, a preocupação com o consumo desse tipo de alimento tem uma raiz “ideológica” incentivada, em parte, por “blogueiros” carismáticos que optam por se referir à comida como um “assunto da moda”.

A deslegitimação de instituições e profissionais atingiu casos extremos nos quais são os próprios espaços e autoridades que são questionados. Na Argentina, a então diretora da Sociedade Argentina de Nutrição disse repetidamente que a Opas não fazia parte da OMS. Algo semelhante aconteceu na região do Caribe – em um simpósio desenvolvido para levantar perspectivas sobre a rotulagem frontal, a indústria avançou para questionar publicamente a autoridade da organização: “Não é uma fonte confiável”.

Por fim, e muitas décadas antes desses debates, a indústria participa assídua e regularmente de congressos e espaços de formação de profissionais e sociedades específicas. A Coca-Cola esteve presente nos Congressos Latino-Americanos de Nutrição junto a empresas como a Herbalife. A Nestlé parece ser uma parceira estratégica de todas as sociedades pediátricas do continente e outras que aparentemente nada têm a ver com áreas que lhes interessam. Por exemplo, um gerente da Nestlé participou da Exposição da Associação de Diabetes de Trinidad & Tobago de 2017 (Diabetes Association Trinidad & Tobago Expo 2017). A Unilever é parceira do Instituto Nacional do Coração (National Heart Institute) na Colômbia e da Federação Nacional do Coração (World Heart Federation). Em um estudo, descobriu-se que em eventos científicos na América Latina e no Caribe, cujos patrocinadores eram acessíveis ao público, havia 92 atores da indústria de alimentos patrocinando 88% dos eventos.

5/ Dar medo

Quando a lei de rotulagem foi discutida no Chile, a associação Chilealimentos e representantes da Nestlé e do McDonald’s participaram ativamente das discussões legislativas, onde insistiram que a implementação da medida afetaria seriamente as empresas de alimentos, especialmente as que importam e exportam, e que, consequentemente, milhares de empregos seriam perdidos. Algo que não aconteceu. Além disso, a medida motivou a reformulação de 17% dos produtos em busca de padrões mais saudáveis.

Fabio da Silva Gomes, assessor regional de nutrição da Opas, afirma que os países do Caribe e da América Central são os que mais são abalados pelo argumento do suposto impacto na economia. Alega-se que são países altamente dependentes de importações e que a regra afetaria as relações comerciais. O determinante é que a indústria ali é extremamente organizada em torno da Caricom (Comunidade do Caribe, composta por 15 membros e 5 membros associados, dos 26 que compõem a região), e não diferenciada por setores, razão pela qual as empresas de alimentos unem forças com bebidas, tabaco, máquinas, sementes etc. “A indústria atua como um conglomerado de oposição às regulamentações”, diz Da Silva Gomes.

Na Colômbia, o Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo alerta que a indústria gera um verdadeiro “terrorismo econômico” ao afirmar em comunicados, na mídia e até no Congresso que as empresas vão fechar e com isso gerar desemprego e pobreza. “Esses argumentos são falaciosos, sendo que foi demonstrado que isso não aconteceu em países rotulados como Chile e México”, explica Alejandro Mantilla.

No Brasil, estudo da GO Associados, consultoria que costuma prestar serviços a empresas do setor industrial, estimou impacto negativo de 100 bilhões de reais e perda direta de 2 milhões de empregos. A análise partiu do pressuposto de que todas as pessoas entrevistadas em uma pesquisa do Instituto Ibope que declarassem discordar da bula do aviso simplesmente parariam de comer.

6/ Fazer caridade

As marcas sabem como se fazer amar. Eles entram na vida no momento e da maneira perfeita para selar os laços emocionais que acompanham as pessoas pelo resto de suas vidas, continuando por gerações. Desde a década de 1980, Coca-Cola, Nestlé, Bimbo e McDonald’s, para citar apenas alguns, vêm ocupando os espaços negligenciados pelos governos. Eles construíram abrigos, escolas, poços de água e, claro, entregaram a comida que sobrou e que os pobres não podem pagar. Sempre, depois do ato da filantropia, vem o spot, o vídeo, as fotos comoventes que eles registram. A estratégia de marketing somada à descrença da política leva mais do que naturalizar, mas a de ser grato por essas ações.

Durante a pandemia, o McDonald’s Brasil enviou alimentos para profissionais de saúde e, na Argentina, doou cerca de 70 mil pratos de alimentos por meio do Banco de Alimentos. No Equador, a empresa concedeu um desconto de 20% em suas instalações aos funcionários públicos como “um reconhecimento econômico e prático por sua luta contra o coronavírus”. O Burger King da República Dominicana se ofereceu para abrir suas instalações para servirem de escolas quando elas fossem fechadas para proteger a população. A Coca-Cola doou ambulâncias e bebidas no Uruguai. A Unilever se associou ao Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), da ONU, para trabalhar na América Latina distribuindo produtos de higiene.

A filantropia publicitária ajuda as empresas a concentrarem poder. A se sentarem nos escritórios onde as decisões são tomadas. A estabelecerem vínculos diretos com as comunidades. “Somos um braço executor do Ministério do Desenvolvimento Social”, afirmam em entrevista concedida em off em uma importante empresa de laticínios da Argentina, enquanto fazem lobby contra o projeto de Lei de Alimentação Saudável.

Em tempos normais, a indústria também se esforça para fortalecer seu vínculo com as comunidades, apoiando grupos da sociedade civil ou patrocinando tudo o que seja visto como uma boa causa. No Chile, por exemplo, a Sociedade de Fomento Fabril (Sociedad de Fomento Fabril – Sofofa) financia campeonatos esportivos escolares e o Teleton, programa para crianças e jovens com deficiência. Mas ela ameaçou retirar seus fundos quando a lei de rotulagem começou a ser discutida.

Saúde, Trabalho e Educação: todos os ministérios são um bom espaço para desenvolver essa estratégia. Uma pesquisa publicada pela Universidade de Cambridge revelou que grandes empresas multinacionais como Nestlé ou Pepsico usaram programas escolares de alimentação saudável para anunciar suas marcas entre as crianças. Exemplos são o programa “Nestlé por Crianças mais Saudáveis” no Equador, o programa “PespiCo ActivaRSE” no Chile e o “Programa de Educação Alimentar e Nutricional” no Brasil, que concluía com uma visita à fábrica do Grupo Bimbo onde os alunos e seus professores recebiam um kit contendo diversos produtos e materiais da empresa.

Foto: Nacho Yuchark

7/ Portas giratórias

Jorge Neme é o secretário de Relações Econômicas Internacionais da Argentina, é o encarregado de debater a rotulagem frontal de seu país no Mercosul. Também é ex-diretor de uma empresa açucareira: a subsidiária argentina da mexicana Sucriloq, dedicada à produção de açúcar líquido para a indústria alimentícia. É um exemplo perfeito do fenômeno das portas giratórias ou “revolving doors”, como são chamadas quando ex-funcionários de empresas ocupam cargos de decisão vinculados aos assuntos em que eram ou são partes interessadas. Também na Argentina, Mercedes Nimo, diretora nacional de Alimentos e Bebidas do Ministério da Agricultura, foi anteriormente diretora-executiva da Copal, principal câmara do setor de alimentos industrializados do país.

Os exemplos não faltam: vários governos e congressos latino-americanos estão repletos de agentes que migram diretamente das empresas. É o caso do ex-gerente da Associação Nacional de Empresários Colombianos e senador colombiano Gabriel Velasco, que com sua bancada atrasou a lei de rotulagem. Apesar dos vínculos diretos com a indústria, a sociedade civil não conseguiu destituir Velasco na votação da lei. Uma investigação de La Liga Contra el Silencio [A liga contra o silêncio] na Colômbia revelou que pelo menos onze altos funcionários do governo de Iván Duque ocuparam cargos de liderança no setor pouco antes de sua nomeação.

No Peru, a Comissão para a Eliminação de Barreiras Burocráticas do Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e Proteção da Propriedade Intelectual condenou o Ministério da Saúde pela imposição de octógonos na publicidade. A comissão era formada por Gonzalo Zegarra, executivo de uma consultoria que tinha a Coca-Cola entre seus clientes no Peru e no Chile, e também por Carlos Mendoza Gutiérrez, que havia sido gerente jurídico da Sociedade Nacional das Indústrias (Sociedad Nacional de Industrias – SNI).

No México, país que teve um ex-CEO da Coca-Cola como presidente e fez daquele território um dos principais produtores e consumidores da marca, foi dado um lugar à mesa para a indústria de alimentos ultraprocessados ​​e bebidas açucaradas. Em 2015, durante o governo de Enrique Peña Nieto, foi criado o Observatório Mexicano de Doenças Não Transmissíveis (Observatorio Mexicano de Enfermedades No Transmisibles – Oment) para medir sobrepeso, obesidade e diabetes, entidade cuja diretora-geral era Yolanda Elva de la Garza, assessora do Instituto de Saúde e Nutrição Kellogg’s. Além disso, das vinte cadeiras do conselho técnico do observatório, dez eram ocupadas pela indústria de alimentos e junk-food ou por associações estreitamente relacionadas ao setor privado.

8/ Processar

Em busca de barrar a rotulagem, a indústria entrou na Justiça no Chile, no Peru, no Equador, na Colômbia, no Brasil, no México e em países da América Central que fazem parte do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica). A estratégia de gerar litígios em nível nacional atrasa a aplicação das leis e alimenta o temor da quebra dos tratados de comércio internacional.

No México, a Coca-Cola entrou com uma liminar contra a lei de rotulagem antes de ela ser aplicada. O país tem um dos maiores índices de consumo de bebidas açucaradas do mundo – em muitos territórios é mais barato e mais fácil encontrar Coca-Cola que água potável – e a multinacional, que temia por sua aplicação, atuou na esfera da Justiça e mandou um comunicado alertando sobre os investimentos no país.

O Chile não foi poupado de pressões judiciais. A PepsiCo e a Kellogg’s foram ao tribunal para contestar uma nova regulamentação sobre rotulagem e publicidade de alimentos, e a Ferrero também fez ameaças, embora sem alcançar seu objetivo. Por mais que lutassem, a Kellogg’s foi proibida de ter Tigre Tony em sua caixa de cereais e a Ferrero de vender o Kinder Ovo, que cativa as crianças com seu brinquedo-surpresa em todo o mundo.

No Uruguai, o fato de a norma que regulamenta a rotulagem de alimentos ser um decreto e não uma lei deu mais capacidade de ação às empresas, que entre 2018 e 2020 apresentaram recursos de revogação, mecanismo que serve para retardar a entrada em vigência da norma.

Já na Colômbia, houve pressões do Ministério do Comércio, “que alertou que a aprovação de uma rotulagem poderia levar o país a ser processado perante organismos internacionais por violação de acordos comerciais”, segundo Alejandro Mantilla, do Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo. “Esse argumento é falso e mostramos que a legislação colombiana deve ter prioridade em saúde e educação, estando acima dos acordos comerciais”, acrescenta.

O próprio Acordo sobre Obstáculos Técnicos ao Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC) estabelece que nenhum país deve ser impedido de tomar as medidas necessárias para proteger a saúde humana. Em outras palavras, a rotulagem não seria um obstáculo para acordos entre países. Esse conflito dentro da OMC também tem sido fomentado pela representação de países onde estão localizadas as sedes de grandes multinacionais do setor alimentício, como a Suíça, os Estados Unidos e a Europa.

9/ Bloquear em bloco

Com o argumento de buscar uma “harmonização” das regulamentações entre os diferentes países-membros, as organizações supranacionais aparecem como dispositivos para atrasar iniciativas e impedir tentativas de avançar unilateralmente. Isso ocorre mesmo quando dentro dessas organizações há vozes que apontam para a necessidade urgente de regulamentação dos produtos ultraprocessados.

Em 2018, os Ministros da Saúde dos países que compõem o Mercosul (Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil) assinaram uma declaração conjunta a favor da rotulagem frontal de advertência. O Sica tem um projeto integral baseado nas diretrizes da Opas e promovido pelas áreas de saúde, que alcança os Estados de Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Belize e República Dominicana. Mas, apesar da existência dessas iniciativas favoráveis ​​para melhorar a saúde pública, as tentativas esbarram no muro das áreas econômicas.

Existe uma tensão subjacente: embora o que se queira regulamentar seja uma política de saúde pública, trata-se de organizações criadas com fins comerciais. “No Mercosul, os representantes da indústria participam sistematicamente como palestrantes, enquanto os porta-vozes da saúde têm pouca ou nenhuma participação. Na verdade, a saúde tem muito menos voz nos grupos de trabalho do que a Copal e as diferentes câmaras do setor de alimentos”, explica Ignacio Drake, da ONG Consumidores Argentinos.

Da mesma forma, na Caricom, existe um projeto de rotulagem com base nos parâmetros da Opas, resistido por câmaras que fazem lobby e ameaçam com graves consequências econômicas. No debate sobre sua possível implementação, foram formadas poderosas câmaras de negócios que reuniram, entre outras, PepsiCo, a empresa engarrafadora Jamaica Bottling, a importadora de alimentos Wisynco Group, a Nestlé e a fabricante de alimentos Banks DIH Limited, enquanto empresas como Nestlé e Coca-Cola se comprometeram com algo que nunca cumpriram: parar de anunciar para crianças.

O governo jamaicano é um dos mais bem-sucedidos no avanço da campanha “Right to Know” [Direito de saber], mas é contestado pela Associação de Industriais e Exportadores da Jamaica. Enquanto isso, o caos reina nas gôndolas dos supermercados caribenhos. Nos países de língua inglesa, há pacotes sem tradução do chinês ou do francês e caixas de cereais com o Tigre Tony, que sobraram do México, segundo a organização civil The Healthy Caribbean Coalition [Coalizão caribenha saudável].

Existem casos em que a obstrução se torna grosseira e explícita. No México, a discussão sobre a lei de rotulagem ocorreu durante a finalização dos detalhes do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (T-MEC), que substitui o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (North American Free Trade Agreement – Nafta). Nesse processo, vazou um anexo assinado pelo representante dos Estados Unidos no qual estabelecia a proibição do desenvolvimento de etiquetas de advertência nos países-membros. “Esse documento foi preparado pelo presidente da Câmara ConMéxico, Jaime Zabludovsky. Para não o apresentar diretamente no México, foi enviado aos Estados Unidos, e as empresas locais negociaram com o representante dos Estados Unidos”, reconstitui Calvillo.

Foto: Nacho Yuchark

10/ Intimidar

Perseguir, investigar e ameaçar: três manobras mafiosas de que a indústria lança mão quando vê que tudo está perdido.

Em fevereiro de 2017, diversos ativistas no México denunciaram publicamente que haviam sido vítimas de espionagem digital. Os números de telefone de Simón Barquera, diretor do Centro de Pesquisas em Nutrição e Saúde (Centro de Investigación en Nutrición y Salud – CINyS) do Instituto Nacional de Saúde Pública, Alejandro Calvillo, diretor do El Poder del Consumidor, e Luis Manuel Encarnación, então coordenador da coalizão ContraPeso, foram monitorados com o malware Pegasus, desenvolvido pelo Grupo NSO, uma empresa israelense que tem contratos com várias agências oficiais no México.

No Peru, a questão foi ainda mais direta. “Eles nos seguiram, puseram atrás de nós gente que nos insultou, ridicularizou. Trinta colunas foram escritas contra mim na mídia: eles diziam que eu era um louco, um antissistema, um comunista”, diz o ex-deputado Jaime Delgado, autor da Lei da Alimentação Saudável.

Na Colômbia, Esperanza Cerón, diretora da Educar Consumidores, foi abordada por dois motociclistas que ameaçaram matá-la: “Se você não calar a boca, sabe quais serão as consequências”, disseram a ela quando ela lutava junto ao seu grupo civil para a aprovação do imposto sobre bebidas açucaradas. Também lá, campanhas de trolls foram orquestradas para acusar advogados de cobrar dinheiro por impelir a lei contra o junk-food.