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O quê você vê
quando me vê

por Paola Miglio Lima, Perú
Publicado em 27 abril 2021

Com a lei de rotulagem em plena vigência, o Peru anunciou seu primeiro mini mercado livre de selos de advertência nutricional. E depois de uma volta, bom ou ruim se tornam categorias imprecisas para narrar o que acontece ali. Amplo, completamente asséptico e ordenado; Bivo Market Saudável está cheio de embalagens e não oferece os alimentos que nunca tiveram e nunca terão octógonos, os de verdade, esses que abundam nos mercados do Peru, um país famoso no mundo pela sua culinária.

Vocês já viram The Stepford Wives? Neste filme de ficção científica / humor negro, dirigido por Frank Oz e estrelada por Nicole Kidman e Glenn Close, tem uma cena na qual os atores andam por um supermercado com amplos corredores, impecáveis, com luz branca intensa, tudo bem organizado e perfeito, enquanto fazem a compra do mês com os seus carrinhos de aço cintilante. Entrar numa unidade da Bivo Market Saudável provoca a mesma sensação, só que em menor escala, padronizado, esterilizado, sem coração. Entretanto, não podemos nos deixar enganar pelas aparências que, talvez, sejam exageradas nestes dias de pandemia e protocolos. Sigamos.

David Novoa e seu irmão Felipe são empreendedores e proprietários de Teoma, uma rede de mercados peruana que cresceu notavelmente nos últimos anos. Juntos, eles decidiram comprar um bar fechado na Av. Conquistadores, no distrito de San Isidro, na capital, Lima. San Isidro é uma das áreas mais privilegiadas da cidade e com o maior preço por metro quadrado. A Av. Conquistadores era, antes da pandemia, uma das áreas comerciais mais caras do país, com aluguéis de mais de US$3.000 por metro quadrado. Restaurantes, lojas de roupa, cafés e até mercados de comida de rua, [no estilo praças de alimentação em áreas abertas], se enfileiravam um atrás do outro, transformando a avenida em um espaço de grande atividade e circulação, margeada pelo Bosque El Olivar e o Clube El Golf. Ou seja, uma área muito exclusiva. A Covid-19 fez com que essa avenida se tornasse um lugar desolado, cheio de cartazes de ‘aluga-se’ ou ‘vende-se’. Somente a passagem de carros e ônibus ainda anima a avenida. Alí se mantêm ainda alguns comércios de bairro tradicionais, abriram algumas mercearias e ainda sobrevivem alguns restaurantes e cafeterias, principalmente de redes de fast-food. É exatamente no meio da Av. Conquistadores onde ficava o bar que os irmãos Novoa compraram e transformaram em Bivo Market Saudável.

Eles entenderam muito rapidamente que o projeto tinha que se destacar e ter um diferencial. Para o marketing  isso é fundamental, de outra forma a iniciativa se tornaria apenas mais um de muitos espaços saudáveis, orgânicos ou gourmets que povoam Lima. Então, com a Lei de Promoção da Alimentação Saudável em plena vigência, os Novoa fizeram de Bivo o primeiro mini mercado peruano livre de octógonos [selos de advertência nutricionais]. Um nicho um pouco radical e ainda inexplorado no país, que afirma promover a alimentação saudável e orientar o público a pensar um pouco mais no que come. Entretanto, que um produto não tenha octógonos no Peru não significa que seja sempre saudável, já que a lei, em uma primeira etapa, tem sido um tanto permissiva no que se refere às quantidades aceitáveis de açúcar, sódio e gorduras saturadas e trans. Mas, pelo menos, traça um caminho.

Sem cheiros nem ruídos, este local onde tudo está empacotado contrasta com os mercadinhos de bairro e as feiras barulhentas e agitadas mesmo na pandemia. Entrar num mercado tradicional peruano é despertar os sentidos e ver crescer os desejos. O que visito com mais frequência é Lobatón, no distrito de Lince, vizinho a San Isidro, onde há uma agitada zona comercial com residências de classe média, habituadas à compra semanal ou diária. Sua arquitetura se diversifica em cada esquina; prédios contemporâneos se intercalam com casas antigas e casas ajardinadas, as quintas, que resistem, encantadoras, ao cimento da modernidade. A identidade deste bairro se reflete no seu maior mercado, que ocupa todo um quarteirão, cercado de lojas que vendem frutos secos, flores, material para confeitarias, frutas, roupas, de tudo um pouco. Presidindo a porta principal, uma virgem rodeada de flores frescas e, em seguida, os corredores com a sua mistura de estímulos: o de comida preparada com oferta de menus caseiros e ceviche, o de cafés da manhã servidos em barracas que vendem sucos feitos na hora, o de vegetais frescos, mercearias, carnes e o fascinante corredor de peixes, onde, cada sábado, quando menina, ia com meu pai comprar o peixe do dia.

A diferença é sensorial, gastronômica: num lugar se sente a temporada de morango ou abacaxi, o aroma da manga explode ao seu redor e você sabe que já é verão, ou as espigas de milho macias que chegam de Cusco e são vendidas em maços de cinco. No outro, nesse mercadinho novo livre de selos nutricionais, não há nada disso.

 

Nas prateleiras da loja Bivo se intercalam quinua embalada de diversas marcas, como a Tiyapuy, que vem de um empreendimento de Ayacucho que também inclui entre seus produtos batata frita feita apenas com batata nativa, sal de Maras e óleo de girassol, e massa de quinua. Além disso, aveia e granola artesanais fortificadas com maca andina Huella Verde pelo chef Germán Roz; os pós de Ecoandino, como lúcuma, feito com insumos orgânicos (lucuma quinua, milho nativo, alfarroba e canela); e o famoso substituto do açúcar Lakanto, feito com extrato de fruta de monge ou monk fruit e eritritol, além de seus derivados.

A lei e seus efeitos

A Lei de Promoção da Alimentação Saudável, publicada em 2013 no Peru, define como alimentos naturais aqueles que não foram submetidos a alterações desde que são extraídos da natureza até a sua preparação culinária ou seu consumo. São de origem vegetal ou animal, também se incluem aqueles minimamente processados (divididos, partidos, selecionados, fatiados, desossados, picados, esfolados, triturados, cortados, moídos, pasteurizados, refrigerados, congelados, ultracongelados ou descongelados) e os que passaram por processamento primário (limpeza, remoção de partes não comestíveis, secados, moídos, tostados ou pasteurizados, etc)

Os octógonos, segundo seu tipo, não se aplicam sobre esses produtos, mas apenas sobre os processados ou ultraprocessados (matriz alimentar modificada com adição de açúcar e gorduras, ou maquiados com aditivos) nos seguintes casos: por exemplo, salsichas ou linguiças altas em sódio; iogurtes altos em açúcar, batatas fritas ou chips, altas em gordura saturada; e produtos que contenham ou não gorduras trans e sejam altos em calorias. As etiquetas devem ser colocadas na área frontal da embalagem e não se aplicam quando esta é menor que 50cm². E aqui é onde começam os debates: os fabricantes artesanais de chocolate reagiram quando seus produtos tiveram que levar etiquetas apesar de serem orgânicos e serem feitos com cacau de origem; enquanto doces com sabor de chocolate mas em embalagens pequenas se livravam da advertência. Ou seja, Cacausuyo e Maraná Chocolates, produtos de cacau premiados em todo o mundo levavam o selo, enquanto Sublime ou Winter que só tem sabor artificial de chocolate, não.

Jaime Delgado Zegarra é o Diretor do Instituto de Consumo da Universidade San Martin de Porres. Sua sagacidade e persistência foram cruciais para o desenvolvimento da lei e sua aplicação. Sua defesa do direito dos consumidores já o levou a enfrentar grandes empresas e atualmente continua trabalhando com afinco no assunto. Defensor da lei, ele espera o dia 17 de setembro, quando vai entrar em vigor a segunda fase, com critérios mais rigorosos. Entretanto, ao analisar o assunto destaca que “a alimentação saudável variada é aquela que se baseia em produtos frescos naturais sem processar ou minimamente processados, que garantam os nutrientes que o corpo precisa. Frutas, verduras, comida viva; proteína vegetal ou animal e grãos. Os carboidratos que o corpo precisa e o açúcar natural próprio do alimento. Tudo o que for adicionado é acessório e supérfluo. O almoço tem que ser comida de verdade”, afirma.

No Bivo também há alguns produtos que, com as adaptações à lei que chegam em setembro, terão de ser regulamentados caso ultrapassem as quantidades permitidas de gordura e sódio. Por enquanto, os Mamalama (os da quinua têm arroz integral, quinua, óleo de girassol, sal Maras e queijo cheddar em pó) e os Veggie Chips atendem aos requisitos estabelecidos para evitar a rotulagem, mas não poderiam ser incluídos na categoria de alimentos não processados.

Um bom início

Em Lima, a recepção do Bivo tem sido boa. Era de se esperar, cidade curiosa, já contava com antecedentes importantes que preparavam o caminho e se somavam à oferta dos mercados tradicionais. Mercados (exclusivamente) orgânicos de Miraflores, Barranco, La Molina e Surquillo (batizados pelos bairros onde se instalaram); e as Agro Feiras Camponesas, que agrupam uma diversidade de produtores que chega de todo o Peru para vender na capital nos fins de semana (realocadas nas instalações do Puericultório Perez Araníbar de Magdalena por causa da pandemia), um dos modelos de diversidade e protocolo que se destaca na cidade. As pequenas lojas orgânicas também confirmaram sua presença durante o confinamento com serviços de entrega; a oferta se completa com a reaparição das lojas de hortifruti em um setor da capital onde os supermercados praticamente as tinha erradicado. Assim, em pouco tempo, era natural que Bivo crescesse: hoje já conta com outra unidade no distrito de Magdalena e se prepara para abrir no Equador, tendo sido reconhecido pela Associação Peruana de Consumidores e Usuários (ASPEC) como a melhor iniciativa inovadora e saudável no nível local, de acordo com os critérios estabelecidos de Consumers International e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). 

Ainda que no Bivo Market Saudável tudo seja embalado, alguns produtos de verduras cozidas, grãos ou sementes sem processar, por biossegurança e higiene, não encontram outro tipo de apresentação até o momento. Um espaço onde foi realizada uma boa curadoria de produtos embalados. Nas visitas, não encontramos nenhuma trapaça com o consumidor, alí se encontra desde quinoa orgânica até detergente eco amigável que abre o caminho a novos empreendedores locais. “Trabalhamos com 100 fornecedores e lançamos no mercado mais de 500 produtos. Foi mais complicado, mas nós queríamos dar o exemplo para o empresariado nacional. Oferecer uma boa variedade com vantagens para o consumidor, com preços competitivos”, diz o pujante e decidido empresário David Novoa por telefone dos Estados Unidos, onde realizava uma viagem de negócios. Ainda que “competitivos” não significa que os produtos se encontrem ao alcance de todos nem sejam parte indispensável da cesta básica dos peruanos. No Peru esse nicho é diferenciado e caro. A compra básica é feita no mercado tradicional e no supermercado, onde a maioria dos consumidores é atraído pelos preços.

Para Jaime Delgado, a iniciativa é interessante como estratégia para quebrar a resistência da grande indústria que não pode (nem parece querer) reformular seus produtos diminuindo a quantia de açúcar, gordura e sal. Por causa da lei, a renovação tem sido local, e pequenos produtores, cozinheiros e engenheiros agrônomos começaram a lançar iniciativas com alimentos minimamente processados e artesanais.

As visitas ao Bivo têm sido uma experiência interessante, inovadora e, para alguns setores, promissora. Mas a comida viva deveria ser integrada ao projeto. Se para alguma coisa serviu esta pandemia é para nos lembrar que a cozinha caseira, essa que havia sido deixada de lado, se prepara com tempo e com alimentos reais. Que a compra diária, no bairro, convida a consumir alimentos mais frescos e naturais. Que uma melhor alimentação é saúde e que devemos valorizar o privilégio de ter uma biodiversidade tão grande que não precisa vir num suporte de isopor ou ser embalada com plástico.

Embora muitos dos produtos do Bivo sejam de empreendimentos locais interessantes e tenham crescido ao longo do tempo para passar de feiras artesanais a mercados, apostando em veganos e sem glúten, há outros que vêm de marcas internacionais que se incorporam, abrindo o leque de alternativas para celíacos que, até recentemente no Peru, era de um alcance muito limitado. Estes estão dentro dos limites para não portar octógonos, mas ainda são processados ​​e não "alimentos vivos" como o que encontramos em mercados orgânicos ou tradicionais.