O Tratado entre o Mercosul e a União Europeia, oportunidade histórica ou “acordo vampiro”?

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários

Nazaret Castro, com a colaboração de Amigos da Terra

Foi Susan George, a ativista de Attac (Associação pela Taxação das Transações financeiras e pela Ação Cidadã), quem popularizou a expressão “acordos vampiro”, se referindo a tratados de livre comércio que são negociados nas sombras porque, “se saírem à luz, morrem, já que raramente resistem ao debate democrático”. Algo assim ocorre com o tratado que poderia ser assinado entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), do qual participam atualmente o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

A falta de transparência na tramitação desse tipo de acordo tem a ver com o fato de que a sua implementação deixa ganhadores e perdedores. Do lado da União Europeia, entre os setores que mais serão beneficiados pelo acordo estão as empresas do setor automobilístico, a indústria química e os serviços mas, também o setor farmacêutico, agropecuário, energético, mineração e os bancos.

Do lado do Mercosul, os maiores ganhadores são os exportadores agropecuários e, em particular, os grandes frigoríficos brasileiros. “São os grandes produtores e exportadores que vão ser beneficiados, não os pequenos e médios produtores”, afirma Luciana Ghiotto, membro de TNI e Attac Argentina e coautora do livro O Acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Estudo integral de suas cláusulas e efeitos, que analisa criticamente as consequências que teria o tratado caso seja ratificado.

Ghiotto conclui que o acordo “congelaria as assimetrias comerciais entre ambos blocos econômicos, tornando mais difícil mudar o fato de que o Mercosul exporta fundamentalmente produtos de baixo valor agregado, como carne, soja ou suco de laranja”. Mas também haverá perdas para os pecuaristas do outro lado do Atlântico: o sindicato agrário COAG estimou as perdas para os agricultores espanhóis em 2.7 bilhões de euros por ano.

Empresas de carne brasileiras como JBS, Marfrig, BRF e Minerva se tornaram líderes do setor em nível global. Aqueles que exportam grandes quantidades de carne bovina, como JBS, poderão fazê-lo com tarifas muito mais baixas. Atualmente a chamada “cota Hilton” permite exportar do Brasil para a UE até 46 mil toneladas de carne bovina por ano com uma tarifa de 20%. Agora, esse volume não pagará mais tarifa, e será adicionada uma nova cota de 55 mil toneladas a uma taxa de 7,5%. Desse modo, essas empresas vão acumular lucros, apesar de investigações de organizações como Amigos da Terra, Greenpeace, Repórter Brasil, Anistia Internacional, Imazon e Mercy For Animals terem provado o vínculo dessas empresas com o desmatamento da floresta amazônica e de outros ecossistemas vulneráveis, como o Chaco e o Cerrado.

Essas empresas brasileiras são financiadas por entidades bancárias como o Banco Santander, que entre 2014 e 2019 foi a segunda instituição bancária europeia que mais financiou a JBS, Marfrig e Minerva, diretamente vinculadas com o desmatamento da floresta amazônica. A ratificação do acordo comercial UE-MERCOSUL pode representar o aumento do investimento em atividades de desmatamento por parte de instituições financeiras da União Europeia.

De acordo com Mute Schimpf, Responsável de Alimentação da Amigos da Terra Europa, “este acordo facilitaria as atividades dos bancos e investidores da UE no financiamento do desmatamento nos países do Mercosul, agravando a ameaça que enfrentam as florestas e terras dessas comunidades”.

Com este tratado, “o setor de carnes terá a oportunidade de aumentar suas exportações ou, ao menos, de melhorar a sua rentabilidade graças à redução de taxas”, concluem os analistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Algo parecido acontece com a produção de soja. Neste caso, as exportações de soja do Mercosul para a UE, que alcançaram 2.19 bilhões de dólares em 2019, já estão livres de taxa, mas as empresas agroexportadoras pagam retenções na Argentina. Tais taxas devem ser reduzidas a um máximo de 14%, o que implica uma perda de soberania na política econômica do país austral. Isso em um setor que é crítico para a economia do país e que tem sido fortemente contestado pelo uso intensivo de água, terra e agrotóxicos, com implicações severas para a saúde humana  e dos territórios.

Menos garantias para os consumidores

Também diminuirão, em caso da assinatura do acordo, os controles nas alfândegas, o que preocupa setores críticos na Europa, em alerta para o excessivo uso de agroquímicos nas monoculturas de soja, além de hormônios e antibióticos nas enormes granjas. O relatório “O verdadeiro custo do Tratado UE-Mercosul”, da Amigos da Terra, documenta que o Brasil usa 149 pesticidas proibidos na Europa. O documento afirma ainda que a diminuição dos controles de produtos importados dos países do Mercosul poderia expor os consumidores europeus à ractopamina, um hormônio de crescimento que está proibido em 160 países, incluídos todos os da UE, mas que é utilizado na Argentina e no Brasil. Por tudo isso, há temores de que, se o tratado avançar, haja um impacto que prejudique a saúde dos cidadãos e cidadãs europeias.

Essa diminuição dos controles alfandegários e o incentivo à importação de carne bovina do Mercosul pode fazer com que a Espanha aumente o volume de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil e comercializada nos supermercados espanhóis –muito difícil de rastrear pelas deficiências da legislação atual, principalmente no caso de carne processada. Entre 2014 e 2019, a Espanha importou 48.157 toneladas de carne bovina do Brasil, sendo, em 2019, o quarto país europeu em volume de importações de carne bovina de áreas afetadas pelo desmatamento no Brasil.

Aumentar as exportações de soja e carne implicaria, além disso, um aumento das emissões de gases de efeito estufa que aprofundam a mudança climática, não só devido ao desmatamento ligado à expansão do modelo do agronegócio, mas também pelo aumento do transporte em navios de carga. Segundo a comissão de pesquisadores independentes que avaliou o impacto do acordo, isso significaria o desmatamento de 700.000 hectares nos seis anos seguintes à assinatura do tratado, especialmente na Amazônia. A Espanha é atualmente o terceiro país europeu em pegada de carbono associada à importação de carne procedente de áreas desmatadas do Brasil, segundo um estudo recente da Earthsight.  

O risco dos protocolos ‘ad hoc’

O acordo, forjado ao longo de duas décadas de negociações, a maior parte do tempo secretas, está hoje em fase de “revisão técnica e legal”, o que em inglês é conhecido como scrubbing. Nesta fase, explica Ghiotto, é habitual que sejam introduzidas reformas importantes no texto, com uma falta de transparência ainda maior do que no resto do processo. Em seguida, o texto deverá ser traduzido a todas as línguas da UE, para passar à ratificação pelo Conselho Europeu e por cada um dos países do Mercosul. No caso de ser aprovado pelo Conselho, passaria aos parlamentos nacionais, mas não o texto completo: a parte crítica do tratado, relativa à política comercial, pode entrar em vigor ainda sem ratificação nos parlamentos nacionais, como já aconteceu com o TLC assinado entre a UE e a Colômbia.

Do lado europeu, foi colocado sobre a mesa a preocupação pelas políticas de meio ambiente do presidente Jair Bolsonaro: durante seu primeiro ano no poder, o desmatamento cresceu 85% no Brasil. Um relatório recente encomendado pelo Comitê de Meio Ambiente do Parlamento Europeu põe em dúvida a capacidade do Brasil de cumprir com tratados internacionais como o de Paris, e admite que o tratado não contém disposições que garantam a proteção dos ecossistemas e dos direitos humanos, já que o recurso legal só é aplicável a violações das cláusulas comerciais. Atualmente a Comissão Europeia está trabalhando na redação de anexos que amenizem as preocupações ambientais e climáticas de alguns governos, como o da França e Alemanha.

O tratado UE-Mercosul, da mesma forma que a maioria dos regulamentos comerciais, é muito concreto sobre os aspectos econômicos, mas não regula adequadamente os impactos sociais e ambientais. Este acordo foi elogiado pela inclusão de pontos sobre sustentabilidade, apesar da sua redação imprecisa e não vinculante, o que faz que a sua efetividade dependa da boa vontade de cada país. “Se a UE e os países do Mercosul realmente têm disposição de enfrentar a mudança climática, o desmatamento e frear as violações aos Direitos Humanos, o lugar para fazer isso e conseguir resultados é, respectivamente, a Convenção Quadro sobre a Mudança Climática, o Convênio sobre a Diversidade Biológica e o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, que está sendo negociado atualmente na ONU. Não neste, nem em nenhum Tratado de Livre Comércio disfarçado como Acordo de Associação” afirma Alberto Villarreal, coordenador regional do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Amigos da Terra América Latina e Caribe.

Ainda é difícil prever se o texto, ao menos seu braço comercial, vai avançar. Se isso acontecer no hemisfério sul, vai encontrar também, previsivelmente, oposição na Argentina, talvez o país mais prejudicado pelo acordo na sua redação atual – em especial pelo impacto que terá na indústria automobilística e de autopeças e, portanto, no emprego. São também polêmicas as cláusulas que obrigariam os Estados, nas suas compras públicas e o setor de serviços, a tratar de igual para igual as empresas dos países membros, com consequências que poderiam ser fatais para as pequenas e microempresas locais. 

“O problema é que não há um plano B: não estão sendo discutidas alternativas de reconversão das pequenas e microempresas e trabalhadores locais que sofrerão diretamente seu impacto”, explica Ghiotto. Segundo declarações recentes do governo português, que assume em janeiro a presidência rotativa da União Europeia, a ratificação do tratado será uma prioridade do seu mandato. Entretanto, os parlamentos da Áustria, Bélgica, Irlanda e Países Baixos já se posicionaram contra a ratificação. No momento, o Estado espanhol se posicionou como um dos maiores promotores do acordo, talvez porque, como sugere o militante de Ecologistas em Ação Tom Kucharz, serão beneficiários do tratado “empresas do Ibex 35 com presença nos países do Mercosul, tais como Telefônica, Santander, BBVA, Iberdrola e Gas Natural Fenosa”. O fato é que o apoio do governo espanhol ignora graves impactos econômicos para o setor agrário e a ameaça para a segurança alimentar dos consumidores, assim como o previsível aumento da pegada ecológica.

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