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Que arda

por Soledad Barruti
Publicado em 29 junho 2020
Na Argentina, o agronegócio aproveitou a quarentena para abrir campos onde existem bosques, selvas e pântanos. Com escavadeiras e incêndios, eles destroem a biodiversidade e aumentam a fome, enquanto produzem transgênicos e vacas que fornecem carne para exportação. Um negócio redondo para o fim do mundo.

Os bezerros comiam a grama verde da selva que crescia frondosa na terra úmida. Tinham narizes rosados e corpos gordos, marrons e pretos, manchados de branco. Seus couros brilhavam novos e limpos porque o céu estava todo diáfano, como se o ar sobrasse e o horizonte sempre tivesse sido assim: infinito.

Isso foi há 10 anos.

Na borda invisível que dissolve a província de Chaco com outra, Santiago del Estero. No norte da Argentina começou a ser impresso o holograma que vendemos para o mundo toda vez que negociamos carne.

Eu vi e parecia bucólico, embora fosse realmente monstruoso.

Prosperidade e abundância, diz a imagem que não mostra nada do que está por trás: o que custa construir esse campo; destruição, morte, o absurdo que a alimenta; as escavadeiras, os incêndios, os venenos que nesses dias de pandemia continuavam sem parar, devastando centenas de hectares por dia em todo o país. 

O norte da Argentina é uma mistura de bosques, montanhas impenetráveis e florestas. O segundo território mais importante em diversidade na América do Sul depois da floresta amazônica. Um lugar que, quando selvagem, é bonito, forte e denso, com um calor que pode parecer o próprio inferno e que, no entanto, possibilita a existência de uma rede de plantas baixas e outras muito altas; animais como cobras, tatus e onças-pintadas; sapos, grilos e escorpiões; borboletas e milhões de micro-organismos.

Uma complexidade vital que torna o solo fértil, preserva o clima, contém pragas como a dengue, o zika e vírus zoonóticos, como o que ressoa tanto hoje, o novo coronavírus, enquanto protege e multiplica uma variedade de medicamentos e alimentos. Este território diverso é o lar de milhares de comunidades indígenas e camponesas com formas de habitar a natureza que implicam em desfrutá-la sem destruí-la; as comunidades que desaparecem dessa natureza vivem nas periferias urbanas, entre marginalidade e miséria.

Essa informação deveria ser suficiente para preservar. Mas não. Desde que o país terminou de destruir sua planície dos Pampas, com o boom da soja transgênica, em meados de 2000, Chaco, Formosa, Salta e Santiago del Estero tornaram-se terra pura do agronegócio: o local onde se estendeu a fronteira agrícola para realocar gado e expandir monoculturas.

Escavadeiras e fogo são as armas que o agronegócio usa para devorar paisagens nativas e, em seu lugar, encher a terra com culturas incomíveis e animais cuja carne será vendida para exportação.

Os empresários rurais dominam o lugar. Se há pessoas, eles as expulsam. Ligam as máquinas e começam a derrubar alfarrobeiras, quebrachos, urundays, que depois vendem como madeira. E o que resta naquele lugar, que era uma montanha, que era uma floresta, que era uma selva cheia de vidas diversas, cantos e vento, eles incendeiam. Eles ateiam fogo às raízes e aos galhos, mas também aos ninhos de antas, de tatus, dos insetos que não podem escapar.

É um fogo de chamas enormes. Laranja, vermelha, violeta.

Um fogo que ninguém parece ver também quando se transforma em um preto espectral que ecoa por dias. Um eco de violência.

As vacas pastando pacificamente, as imagens que aparecem impressas nos rótulos dos supermercados escondem a violência do fogo e também o que acontece depois, o passo a passo do agronegócio que muitas pessoas desconhecem.

As monoculturas transgênicas de soja e milho que são implantadas nas cinzas e regadas com venenos, sob um sol de 50 graus.

E o que resta quando, após três ou quatro colheitas de grãos, a fertilidade termina: terra seca e abandonada, coberta de espinhos.

E novas queimadas são feitas na mesma terra que parece não aguentar mais. Outro incêndio, mais curto, agora para implantar os pastos.

A publicidade mostra apenas o que pode ser vendido: animais pastando alegremente.

Nunca o antes ou o depois.

Nem poderia.

Para que possamos comer o que eles nos vendem, a oferta deve ocultar o que a carne de pasto implica e também os currais para os quais os bezerros são levados quando o pasto não é mais suficiente para eles. Porque isso também acontece aqui: as terras são cercadas para que os animais do holograma passem as últimas semanas de suas vidas amontoados enquanto estão cheios de soja e milho que vem de plantações próximas, fechando o círculo perverso.

Nos últimos 30 anos, 300 empresários com nomes como Eduardo Eurnekian, Marcelo Mindlin, Alejandro Carlos Roggio e Mauricio Macri destruíram 8 milhões de hectares de floresta nativa na Argentina, de acordo com uma denúncia publicada pelo Greenpeace. Eles o fizeram quando não havia lei florestal e a terra foi explorada pelo capricho de quem obtivera seu título; também continuaram a fazê-lo depois de 2009, com a lei promulgada. Fizeram sem uma pandemia e hoje em dia fazem aproveitando o confinamento de todo o país. Embora a maioria das atividades tenha sido suspensa para impedir a disseminação da Covid-19 — um vírus desencadeado pela destruição que estamos causando na natureza — o agronegócio destruiu 200 hectares de floresta nativa por dia que nunca serão recuperados. 15 mil hectares no total, 40% em áreas onde o desmatamento é proibido.

– E tudo isso por quê? – pergunta Deolinda Carrizo, desafiadora, como fazia dez anos atrás, quando viajei pela primeira vez ao norte da Argentina e ela, ainda com vinte anos, já era líder na luta camponesa.

– Eles dizem que para alimentar, certo? – respondo, por telefone, do meu isolamento em Buenos Aires.

– O agronegócio se alimenta apenas de si e aqui estamos como prova – diz ela.

Aqui é Quimilí, uma cidade pequena e pobre de Santiago del Estero, a província com mais desnutrição infantil, ao norte do país, a região com maior insegurança alimentar na Argentina. Uma cidade localizada a 30 quilômetros da comunidade onde Deolinda ainda moraria se não tivessem lhe ocorrido coisas demais: a perseguiram por defender seu território, ameaçaram e queimaram sua casa.

Pampa Pozo é o nome da área de apenas 1.100 hectares em meio à devastação para onde Deolinda vai todos os dias. Um território que 14 famílias preservam 90% nativo, enquanto reservam 100 hectares para um pomar sem venenos e animais que organizam em pequenos rebanhos. Uma bela paisagem onde a montanha ainda é uma montanha e eles podem se dedicar à agricultura camponesa e indígena, à resistência cultural, à defesa dessa biodiversidade e ao exercício de algo que também corre o risco de extinção: a soberania alimentar.

O agronegócio se alimenta apenas de si e aqui estamos como prova"

Deolinda é diretora de comunicação do Movimento Nacional dos Camponeses Indígenas e membro do povo indígena Vilela. Tem 40 anos, cabelos pretos longuíssimos, traços fortes e uma voz muito clara. Desde que era criança e seus pais lutavam pelo direito à terra, ela sabe o que é organização social na prática. Somente em Santiago del Estero, coordenando comunidades como Pampa Pozo e pessoas deslocadas em bairros carentes, o Movimento agrega 20.000 famílias que vivem do que produzem e comercializam localmente. Hoje, além disso, ajudam com refeições diárias a 15 refeitórios comunitários nos quais são alimentadas cinco mil pessoas, em especial crianças e mães solo. O dobro de pessoas de antes da pandemia.

Porque a Argentina, além da promessa de prosperidade mantida por aqueles que apoiam o modelo produtivo, é um país em que 50% das crianças são pobres e comem pouco, e uma em cada 10 é indigente e não tem o que comer, de acordo com os dados revelados pelo Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina.

“Camponesas: construindo outro mundo para nossos filhos”, diz a camiseta que Deolinda veste em uma de suas fotos de luta. Tem um semblante alerta, enraivecido, com a mão direita aponta o indicador a um público que a imagem não registra. Com o braço esquerdo sustenta um bebê, o menor de seus três filhos.

Vinte anos antes, ela teve o primeiro, depois veio o que agora tem dois anos e, antes do bebê, sofreu uma perda aos oito meses de gestação. “Há quem me diga que foi devido a problemas genéticos e quem me assegure que foi devido às fumigações dos campos que nos cercam”, diz ela.

– E o que você acha?

– Que vivemos no meio dos venenos e que isso não pode fazer bem a ninguém. Mas ninguém se importa, se tudo pode parar no país, exceto isso: você viu o que foram essas semanas de pandemia …

– Não houve mudanças?

– Sim: tudo ficou pior, porque se sentem mais donos de tudo. Aqui há empresários mais canalhas e menos canalhas. Nas primeiras semanas todos os dias vimos aviões de pulverização: eles aproveitavam e pulverizavam até as áreas proibidas. Depois vieram as colheitadeiras: umas máquinas ridiculamente grandes que invadiram tudo. Agora são caminhões e caminhões e caminhões. Alguns carregam soja. Outros, animais. São caminhões de dois andares, todos para exportação – disse, contando o lado B de uma ordem oficial que saiu ao mesmo tempo que a do confinamento absoluto: na Argentina, o agronegócio não podia parar.

Aos camponeses, por outro lado, foram aplicadas regras diferentes: “Se andarmos com uma cabra ao nosso lado, a polícia nos dirá que por causa da pandemia não podemos transitar. E eles controlam a mercadoria como se não estivéssemos fazendo um trabalho essencial: dar de comer aos que de outra forma não teriam o que comer, começando por nós mesmos.”

Intoxicam e desmatam nossos lugares de vida. E tudo termina desaparecendo por causa da ambição. Também a comida "

O agronegócio produz commodities: grãos, óleos, carnes que valem pelo preço no mercado internacional, pelos dólares que entram no país, pela capacidade que têm para manter girando a rodinha produtiva. “O campo pôde sustentar o fluxo de exportações em um marco de dificuldades extremas”, escreveu, orgulhoso, o diretor de Clarín Rural, Héctor Huego, em um de seus tradicionais editoriais nos quais sublinha semanalmente os feitos do setor enquanto leva adiante uma tarefa que assumiu pessoalmente: derrubar qualquer crítica, tachando-a como “obscurantista”.

Texto após texto, Huergo defende a produção de soja, a vantagem de usar venenos e a aparição de algum avanço biotecnológico. Um porta-voz que encontrou na pandemia seu momento de glória. “O campo passou de vilão a herói”, escreveu, em outro relato de tom épico. “Começamos a ver máquinas pulverizadoras circulando pelas cidades espalhando alvejante ou compostos de efeitos similares. São as mesmas que estavam proibidas de pulverizar agroquímicos a menos de 500 metros do perímetro urbano (…) A questão é recuperar o ‘contrato social’ de confiança entre o consumidor e o produtor de alimentos, de bioenergia e, agora, também de insumos sanitários.”

Mas, enquanto desde a sala de edição do Clarín se repete que os pulverizadores são os heróis, o avanço da pecuária no norte, progresso e o coronavírus, uma praga mais, milhares de famílias vivem outra realidade.

– Por esses dias, além de todo o trabalho que temos, tivemos de nos proteger das fumigações e parar tratar – diz Deolinda.

– E como fazem?

– Ficamos em frente. Pedimos que mostrem as autorizações. Nunca têm. Se conseguem, seguem destruindo a saúde e a natureza. No máximo ganham uma multa que não significa nada. Intoxicam e desmatam nossos lugares de vida. E tudo termina desaparecendo por causa da ambição. Também a comida – conta, enquanto vê passar caminhões repletos de grãos que ninguém gostaria de comer, ou de animais vendidos como carne em euros, tão caros que, nas terras de origem, onde são criados, ninguém poderia pagar.

Algo que ao agronegócio não resulta problemático. Pelo contrário. Nos editoriais do Clarín, Héctor Huergo propôs uma solução para os que não têm dinheiro para um churrasco: Protein Plus. Um granulado feito com a sola que recheia os cochos dos animais enclausurados nas granjas industriais, agora repaginada para uma versão aos humanos pobres. Um ultraprocessado que já conta com receitas, como recheio para empanadas e torta de batata, formuladas pela especialista em sustentabilidade do agronegócio Cecilia Theulé. “Incrível: o que na Argentina é uma alternativa na emergência alimentar, no mundo é um produto estrela. Temos um substituto à carne cotado em Wall Street”, aplaude Huergo.

A proposta de alimentar as pessoas com soja cultivada para animais vem desde 2002. Nessa época, a Argentina, com colheitas recorde e um agronegócio que não parava de acumular riquezas, tinha 18% de desemprego, mesma cifra dos que não conseguiam ter acesso a alimentos. Talvez seja bom dizer: produzir comida não é o mesmo que ter dinheiro para comprá-la.

O agronegócio sabe disso, e prepara doações de coisas tão diferentes daquelas que comem os proprietários das terras: granulados de soja e bebidas de soja.

Em 2002 se distribuiu tanta soja nos refeitórios comunitários que os efeitos foram evidentes. Um experimento massivo involuntário: os corpos das pessoas começaram a se deteriorar. A acidez da bebida carcomeu os dentes de milhares de pessoas e os hormônios vegetais da soja na forma natural provocou menstruações precoces em meninas e crescimento das mamas em meninos. O assunto foi tão escandaloso que o Ministério de Desenvolvimento Social teve de regulamentar as doações: ficaram proibidas para menores de dois anos e restritas para menores de cinco. A política sanitária segue vigente, mas ninguém pode assegurar que esteja sendo cumprida. 

A Argentina é um dos dez países do mundo com mais desmatamento. A cada dia sacrificamos milhares de hectares de diversidade. No começo de junho, ao desastre do norte os mesmos produtores somaram a queimada intencional de 250 mil quilômetros quadrados de natureza em outro ecossistema igualmente necessário e frágil: os pântanos do Delta do Paraná. Ironicamente, isso é feito novamente em nome do mesmo pretexto de sustentar o sistema alimentar.

Porém, a biodiversidade que se perde é essencial para combater a fome e defender a alimentação adequada: fresca, saudável e rica.

Em 2004, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) o explicou assim: quanto mais riqueza, mais fertilidade nos solos, mais polinizadores, mais regulação do clima, menos necessidade de produtos químicos, mais possibilidades de vida e de trabalho para quem produz 70% dos alimentos do mundo: agricultores familiares, camponeses e indígenas.

Em 2014, o então relator especial para o Direito à Alimentação das Nações Unidas, Olivier de Schutter, foi além: “Em nome de elevar a produção de alimentos, nos esquecemos de perguntar quem se beneficiará de tal crescimento. Frequentemente se trabalhou contra a pequena escala, a agricultura familiar, mas não deveríamos confundir rentabilidade com produtividade. Ainda que menos rentável, a agricultura familiar, de pequena escala, é mais produtiva por hectare do que as grandes plantações.”

Qual é o antídoto contra a fome? Produção em pequena e média escala, com conhecimentos tradicionais e sem venenos. “Os camponeses alimentamos o mundo. E vamos poder seguir alimentando se os empresários deixam de destruir tudo”, diz Deolinda Carrizo, com a urgência de quem sabe que não há muito tempo.  Segundo um estudo do Ministério da Agricultura, na Argentina há quase dez milhões de hectares nas mãos de camponeses e indígenas. Terras sobre as quais quer avançar o agronegócio. Se o consegue, os poucos bosques que sobraram serão transformados em outro encantador postal que, por detrás, pinga sangue, nos envenena, nos faz arder.