A indústria de produtos comestíveis sofreu uma derrota histórica no Brasil. O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem (25) que é constitucional uma lei do estado da Bahia que proíbe propagandas infantis dentro das escolas de educação básica.
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Por João Peres, de Bocado
Um documento lançado pelo Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo, da Colômbia, e pela organização El Poder del Consumidor, do México, não tem dúvidas em afirmar: sim, as fabricantes de ultraprocessados ameaçam a democracia ao frear a ação do Estado em políticas públicas que podem salvar vidas.
“La interferencia de la industria es nociva para la salud” é um estudo no qual as organizações passam a limpo as estratégias adotadas por corporações como Coca-Cola, Nestlé, Pepsico, Bimbo e Danone nos países que criaram sistemas de alerta sobre o excesso de nutrientes críticos, como sal, gorduras e açúcar.
Não é acaso que esse modelo tenha sido criado no Chile e desde então sido analisado por outros países da América Latina: a região tem uma das situações mais graves no que diz respeito ao avanço das doenças crônicas (diabetes, doenças cardiovasculares, câncer) desde os anos 1990. Desde a última década, os governos têm buscado medidas para desencorajar o consumo de ultraprocessados e incentivar culinárias tradicionais, com base em alimentos frescos.
O documento estabelece um pressuposto importante: “A indústria, apoiada em seu poder econômico e sua influência social e política, passou de ser um ator econômico a um interlocutor autorizado, apesar de sua ausência de credenciais confiáveis, em matéria de saúde pública.” Disso decorrem dilemas éticos e políticas públicas incoerentes, como a que está sendo adotada esta semana no Brasil.

Desde o início da discussão sobre a criação de um novo sistema de rotulagem frontal, em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) colocou na mesma mesa pesquisadores em saúde pública, organizações não governamentais e fabricantes de ultraprocessados. O perigo dessa igualdade hierárquica ficou mais e mais evidente ao longo dos anos, quando a Anvisa acabou se posicionando no meio do caminho entre as pressões privadas e a saúde pública. Ao final, tudo indica que o país terá um sistema de rotulagem que não está baseado nas melhores evidências científicas, e que não sabemos se funcionará na prática.
Mas o documento lançado esta semana fala sobre quem conseguiu levar adiante a medida, e não sobre quem falhou na implementação – esse, aliás, seria um ótimo desdobramento, analisando países como Argentina e Brasil. Olhando para Chile, Peru, Uruguai e México, o estudo lista onze estratégias utilizadas para frear, retardar ou enfraquecer a ação do poder público no que diz respeito à rotulagem.
Não valeria a pena ser exaustivo nas práticas adotadas, que podem ser conferidas em resumo entre as páginas 72 e 75. Destaco aqui alguns dos casos mais interessantes.
- Na Colômbia, o projeto de lei voltado à adoção do sistema de alertas já está na terceira tentativa de tramitação. Os parlamentares simplesmente não permitem que a proposta avance. O documento mostra como a indústria de bebidas açucaradas se tornou a principal financiadora eleitoral dos maiores partidos políticos.
- Fale com o presidente. Na Colômbia, destaca o estudo, o acesso da indústria a Ivan Duque foi fundamental. No Uruguai, Luis Lacalle firmou um decreto no qual retarda a adoção dos selos, que deveria ter sido iniciada em março. Acréscimo por minha conta: em 2018, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) acionou diretamente Michel Temer, e conseguiu duas reuniões em dois dias, o que é um feito notável em se tratando de um presidente da República. Na época, Temer ameaçou intervir, o que afeta a autonomia administrativa garantida à Anvisa.
- No Peru, houve uma tentativa de aprovar uma nova lei, derrubando a adoção de alertas em prol de um sistema mais fraco, de interesse da indústria. A ofensiva foi coordenada por Keiko Fujimori, do partido majoritário Congreso Fuerza Popular, que foi diretamente ao presidente Martin Vizcarra. Uma situação autoexplicativa: se Fujimori é a líder do seu braço de lobby, isso diz muito sobre quem você é.
- “Coca-Cola é uma das empresas mais ativas no bloqueio das políticas de saúde que podem afetar os interesses da indústria de comestíveis ultraprocessados e as bebidas açucaradas. No caso do México, é sumamente ativa e suas ações se potencializam em sua aliança com FEMSA, a engarrafadora de Coca-Cola maior no mundo.”
- O uso de ameaças econômicas é um eixo comum a todos os países analisados. Argumenta-se que a medida viola as regras de livre comércio previstas pela Organização Mundial de Comércio, mesmo que esta já tenha dito que cada país tem autonomia para definir a própria rotulagem. O uso do Mercosul para pressionar o Uruguai é narrado em uma série de vídeos que publicamos em nosso canal no YouTube.

Para além do relato sobre interferências, o documento postula uma agenda concreta para prevenir o problema. E essa é uma das partes mais interessantes, sem dúvida, porque responde à questão inicial: trata-se de um conjunto de medidas que recolocam a indústria no papel de setor regulado, e não de formulador das próprias regras.
“A falta de controle sobre as atividades de lobby para favorecer o lucro privado, a possibilidade de levar a cabo reuniões a portas fechadas e sem registro, a possibilidade de financiar campanhas políticas, a falta de regulação às portas giratórias, ou a contratação de grandes empresas de advogados com estratégias legais em grande escala contribuem a gerar ambientes propícios para que as más práticas da indústria fiquem na impunidade ou sejam desconhecidas para o grosso da população.”
O documento apresenta medidas que deveriam ser tomadas por deputados e senadores; ministros, secretários e presidente da República; juízes e promotores, na tentativa de evitar a ação indevida da indústria. Uma das recomendações mais interessantes é a adoção de um protocolo de relacionamento com os fabricantes de ultraprocessados que dê transparência a essa questão. Entre outras, prevê que:
- ex-funcionários privados que agora ocupam cargos públicos não se envolvam na discussão de medidas de interesse do setor
- não se compareça a eventos promovidos pela indústria para discutir políticas públicas
- exista registro escrito de qualquer integração com agentes privados, deixando clara a intenção da conversa
É difícil encontrar, entre as recomendações, um ponto no qual a Anvisa, do Brasil, não tenha falhado. Diretores e integrantes da Gerência-Geral de Alimentos participaram de uma série de eventos promovidos pelo setor privado. Tiveram reuniões a portas fechadas cujo teor só foi revelado porque conseguimos acesso às atas – em uma delas, um ex-diretor acenava com a possibilidade de adotar um sistema de preferência das corporações, algo que nunca havia dito em público.
Por trás de toda a agenda de recomendações existe um passo simbólico que parece difícil de dar em boa parte dos países da América Latina: desnaturalizar o poder das corporações de moldar a ação do Estado. Vários de nossos governos estão repletos de agentes que migraram diretamente de empresas a cargos estratégicos de interesse do setor para o qual trabalhavam. A lógica de que essas forças privadas são espontaneamente benéficas e de que todos temos de atuar em conjunto para sair do atoleiro está profundamente arraigada em nossas sociedades.
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