Os fabricantes
da dúvida

Bocado

Em qualquer país do mundo, a maioria das pessoas declara estar confusa sobre o que comer. Graças à profunda interferência da indústria do cigarro, hoje sabemos que, diante da confusão, as pessoas se apegam àquilo que se encaixa melhor em seus anseios e desejos. Em outras palavras, a indústria de alimentos ultraprocessados não precisa te convencer de que os produtos dela são melhores: basta te deixar em dúvida.

Uma das definições de conflito de interesses diz que essa situação se configura quando um interesse secundário se sobrepõe ao interesse primário.

  • Por exemplo, um médico tem a conduta com os pacientes influenciada pelo fato de ser do comitê consultivo de uma fabricante de iogurtes.
  • Um pesquisador passa a ignorar parte das evidências científicas por haver sido influenciado, de maneira deliberada ou não, pelo patrocínio de uma fabricante de refrigerantes a seu trabalho.

E essa é uma questão central no debate. Parte da influência é imperceptível. Hoje, graças a estudos no campo da psicologia e das ciências sociais, sabemos que mesmo brindes aparentemente inofensivos, como canetas e ímãs de geladeira, são capazes de influenciar a conduta de um profissional de saúde.

Passagens aéreas, hospedagem, inscrição em congressos científicos, tudo isso pode acabar por estimular um profissional a receitar mais vezes um medicamento, uma fórmula infantil ou um suplemento. Afinal, se nada disso produzisse resultados, as corporações do setor não gastariam esse dinheiro.

Motivos para uma empresa financiar pesquisas:

  • Influenciar, formular ou retardar políticas públicas. Os agentes públicos precisam embasar posições e, por vezes, não detêm conhecimento específico numa determinada área. Logo, um conjunto de evidências científicas apresentado por uma empresa pode levá-lo por um caminho.
  • Influenciar profissionais de saúde. Eles são o elo fundamental entre fabricantes e consumidores. Por exemplo, convencer médicos de que suplementos de vitamina D aumentam a imunidade contra casos de covid-19 pode render bilhões
  • Ditar hábitos de consumo de forma mais ampla. Por vezes, as pesquisas científicas são usadas para criar uma aura de bem-estar e saúde em torno de um produto. O caso do Danoninho, vendido como fonte de ferro, fósforo, cálcio e vitamina A, é exemplar.
  • Atestar boas práticas. O peso da ciência confere credibilidade e uma ilusão de conhecimento neutro. Assim, selos de recomendação dados por associações médicas, por exemplo, podem conferir endosso a produtos que não necessariamente são saudáveis.
  • Desviar o foco e encobrir más práticas. O caso da indústria de refrigerantes é o mais conhecido: há décadas os grandes fabricantes encomendam evidência científica para evitar que esses produtos sejam responsabilizados pelo avanço dos índices de obesidade e doenças crônicas. Assim, cria-se a narrativa de que atividade física é mais importante, e que os refrigerantes podem ser parte de uma dieta saudável.

100% de resultados favoráveis

Em 2007, um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos analisou 222 artigos publicados entre 1999 e 2003, dos quais 22% haviam sido financiados exclusivamente por capital de empresas de alimentos. As conclusões de cada pesquisa foram avaliadas por pessoas que desconheciam a origem do financiamento. A proporção de conclusões desfavoráveis à indústria nos artigos que receberam dinheiro dela foi de 0% – contra 37% em estudos independentes. A diferença foi de 7,6 vezes mais resultados favoráveis nos trabalhos com recursos privados.

Nos refrigerantes, evidências ignoradas

Em 2013, um grupo de cientistas espanhóis analisou 18 artigos de revisão sobre bebidas açucaradas. Os artigos de revisão são importantes porque condensam conclusões e, recomendações de profissionais de saúde.

De seis trabalhos financiados pela indústria, cinco desconsideravam a associação entre a obesidade e o consumo de bebidas açucaradas, ou adotavam uma postura inconclusiva. Trabalhos de comprovada relevância eram ignorados por esses autores. “Os interesses da indústria de alimentos (vendas aumentadas de seus produtos) são muito diferentes dos interesses da maioria dos pesquisadores (a honesta busca pelo conhecimento) (…) Essas descobertas chamam atenção para possíveis descuidos em evidência científica de pesquisas financiadas pela indústria de alimentos e bebidas”, assinala a conclusão.

Um nome com asterisco

É possível fazer pesquisa científica com os recursos de uma empresa e, ainda assim, manter-se íntegro? Em tese, sim. O problema é que inconscientemente o cérebro pode ser levado a ignorar algumas variáveis que seriam inerentes a esse processo de produção da ciência. E, ainda que não fosse assim, os pesquisadores podem se ver sob desconfiança quando chegam a conclusões ou adotam posições convergentes à do financiador.

Por exemplo, em outubro de 2017 o médico Daniel Magnoni esteve em uma audiência pública na Câmara dos Deputados do Brasil. O motivo era a discussão sobre a adoção de um imposto especial sobre sucos, refrigerantes e afins. Magnoni, falando em nome da Sociedade Brasileira de Cardiologia, colocou-se contra esse tipo de medida, dizendo que não existem alimentos bons ou ruins – um mantra mundial da indústria de ultraprocessados.

Uma pergunta enviada pelo público questionou todos os participantes sobre a ocorrência de conflitos de interesses. Magnoni não respondeu. Antes disso, ele participou de uma campanha da indústria do açúcar chamada Doce Equilíbrio, que buscava neutralizar o discurso de que esse alimento causa danos à saúde. “Açúcar, de forma moderada, não é causa direta das doenças cardiovasculares, do diabetes e da obesidade”, ressaltou ele, na Câmara.

O médico chegou a participar de um encontro anual promovido pelas empresas do setor para aproximar gestores públicos, fabricantes e pesquisadores – o Ethanol Summit, que fala sobre álcool e açúcar. Na ocasião, ele esteve em um debate com o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas, e com o ministro da Saúde, Ricardo Barros. Na ocasião, Barros, deputado federal conhecido pela boa interlocução com o setor privado, também se valeu de uma máxima da cartilha industrial: a de que as crianças são muito sedentárias, o que explicaria a explosão dos índices de doenças crônicas.

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