Estratégia da indústria ao financiar estudos é negar a ciência e atrasar o conhecimento, diz autora

Em livro “The Playbook”, pesquisadora da NYU Jennifer Jacquet descreve como cientistas são recrutados por empresas, e alerta: conflitos de interesses são mais prevalentes do que nunca

Por Mariana Lenharo

30/11/2021

Categorized as Reportagens

Se você está à frente de uma grande corporação cujo lucro está sendo ameaçado pelo conhecimento científico, o que você faz? A pesquisadora Jennifer Jacquet, professora do Departamento de Estudos Ambientais da New York University (NYU), notou um padrão em como grandes indústrias reagem a essas situações. E essa reação quase sempre envolve a contratação de uma empresa de relações públicas e o recrutamento de cientistas que, em troca de financiamento, se dispõem a chegar a conclusões favoráveis àquele setor. Eles passam a atuar para negar o consenso científico vigente e atrasar o conhecimento, diz Jacquet.

Jennifer Jacquet. Foto: Divulgação

A pesquisadora afirma que, no longo prazo, a verdade científica acaba se impondo, mas que a pressão da indústria serve para adiar esse momento. “Toda a estratégia deles é uma estratégia de atrasar aquele conhecimento. A ciência encontrará o seu caminho para a verdade, dadas as condições adequadas. Mas pode levar muito tempo, especialmente quando a maior parte do financiamento para um determinado campo vem da indústria”, explicou ela, na entrevista abaixo. E o tempo, em questões urgentes, como as mudanças climáticas, é um fator-chave.

Jacquet é autora do livro “The Playbook”, que deve ser lançado em junho nos Estados Unidos pela editora Pantheon. O texto foi escrito como se fosse um manual, com conselhos para corporações que querem se livrar do escrutínio público por meio da contestação da ciência. “Para mim, era muito difícil escrever de forma literal sobre esse assunto, porque isso me deixava com muita raiva”, afirma. Por isso, ela decidiu incorporar a mentalidade de um executivo para entender e descrever essas estratégias do ponto de vista de quem as executa. 

Saiba mais sobre o livro na entrevista com a autora abaixo. 

Sobre o que fala o livro “The Playbook”?

O livro é um manual do usuário de como as empresas subvertem e desafiam o conhecimento científico para aumentar seus lucros. Eu essencialmente acredito que algo assim realmente exista. E eu apenas tentei tornar público o tipo de estratégia ampla que as corporações – especialmente as com fins lucrativos e de capital aberto – usam quando são ameaçadas pelo conhecimento científico. E a razão pela qual elas são ameaçadas pelo conhecimento científico é o fato de que esse conhecimento pode levar a uma mudança nas preferências do consumidor ou, pior, a uma regulamentação governamental. E isso as fará perder parte de sua participação no mercado ou parte de sua base de consumidores. E assim elas abordam o conhecimento científico que está ameaçando suas operações comerciais da mesma forma que abordam o código tributário ou questões trabalhistas. Por exemplo, elas não vão dizer explicitamente que pagam o mínimo possível aos trabalhadores. Mas entendemos que isso faz parte de sua estratégia para reduzir os custos e maximizar o lucro total. Neste caso, estamos falando da negação do conhecimento científico: por que, quando e como as corporações o fazem. Eu argumento que se trata de uma estratégia que envolve quatro pontos: desafiar a ciência do problema em si; desafiar a ciência da causalidade do problema; desafiar os cientistas, repórteres e ativistas; e finalmente desafiar as políticas públicas.

Como os conflitos de interesse na ciência entram nessa história?

Um componente-chave dessa estratégia é contratar cientistas especialistas em determinado assunto, especialmente aqueles que têm uma aparência de serem independentes. E o padrão-ouro, pelo menos no contexto dos Estados Unidos, são os professores universitários. Então quando a indústria se depara com o conhecimento científico que desafia seu setor ou sua empresa em particular – por exemplo, as pessoas podem notar distúrbios de colapso das colônias de abelhas, e se perguntarem qual é o papel dos pesticidas – ela contrata imediatamente alguns professores universitários para começarem a trabalhar nessas questões. E, neste ponto, diríamos que quando esse professor vai publicar uma pesquisa ou revisar outro artigo sobre os efeitos dos pesticidas, esse professor tem um conflito de interesses. Porque um conflito de interesses, como é historicamente entendido, tem natureza financeira. A indústria quer que você pense de outra forma, eles querem que você pense que, por exemplo, se você é hindu e está criticando a indústria de carne bovina, isso representa um conflito de interesses por causa da ideologia. Mas, tradicionalmente, da forma como entendemos os conflitos de interesse, eles são financeiros por natureza.

Isso surgiu pela primeira vez com a indústria farmacêutica. Nos anos 1980, a questão dos conflitos de interesse em periódicos médicos e na ciência médica tornou-se um grande ponto de debate. Desde então, isso se espalhou para quase todos os aspectos da vida científica, porque muitas indústrias se envolveram em estratégias similares. Não tenho certeza da situação no Brasil, mas nos Estados Unidos muitas pesquisas científicas são financiadas por interesses privados, pela indústria. Portanto, a questão dos conflitos de interesse é mais prevalente que nunca. E mesmo dentro das universidades, as pessoas ainda têm uma compreensão muito pobre do que realmente configura um conflito de interesses.

Por que você resolveu pesquisar esse tema?

Há algumas razões. Uma é que sou apaixonada pela ciência, por toda a epistemologia da ciência. O modo como sabemos das coisas através da ciência é extraordinário. É uma forma incrível de conhecimento. Não é a única maneira, e certamente não deveria ser a forma exclusiva de saber algo, mas o método científico e as regras que guiam a ciência democratizaram o conhecimento como nenhum outro sistema o fez.

Além disso, tendo começado meu doutorado em 2005, já estive no centro de muitas dessas guerras. Eu trabalhei com ciência do clima no meu mestrado. E ficou muito claro desde o início que havia esse tipo de tentativa falsa e insincera da indústria de criar o que parecia ser uma oposição científica à existência da mudança climática como um todo. E isso é intrigante: a negação do clima como um fenômeno. Eu trabalhei nisso por um tempo, e depois também comecei a estudar a pesca e percebi que havia um fenômeno semelhante na pesca, onde há cientistas que são pagos pela indústria para desafiar resultados de pesquisas científicas verdadeiramente independentes.

Fiquei interessada em como a negação do clima é regulada ou controlada nas sociedades. E então eu ouvi uma ótima palestra de Myanna Lahsen, em que ela disse que no Brasil não há uma negação de que a mudança climática exista, mas a negação de que exista uma ligação entre a indústria da carne e o clima. E comecei a pensar em como a negação da ciência tem uma natureza geopolítica, porque sempre vai se manifestar em indústrias e instituições poderosas dentro de um determinado contexto cultural.

Também tenho muito interesse nos cientistas que foram atacados pela indústria e em como eles responderam. Li muitos livros sobre o assunto, como “Golden Holocaust”, que fala sobre a negação da indústria do tabaco que ocorreu mais em meados do século XX. Também li “Merchants of Doubt”, é claro, sobre o grupo de cientistas contratados pela indústria de combustíveis fósseis e, mais tarde, por outras indústrias como a de cigarros. E eu queria juntar tudo isso em uma visão ampla sobre o uso corporativo da negação científica, como uma forma de garantir o lucro. Para mim, mais do que qualquer coisa, o objetivo é dar sentido a tudo. Em geral, acho que ainda precisamos de uma educação em massa sobre como essas ferramentas são usadas para desafiar o que eu diria que é a forma mais importante de conhecer o mundo que já tivemos.

Você pode falar um pouco de como essas estratégias são implementadas na prática?

Primeiro, como corporação, você precisa construir um arsenal. E você faz isso por meio da contratação de escritórios de advocacia, empresas de relações públicas e tornando-se membro de uma associação comercial. Como parte disso, você também deve recrutar especialistas, esses especialistas podem estar em think tanks, podem ser consultores ou podem ser pesquisadores universitários. E então, porque trabalho em uma universidade e sinto que estou mais acostumada a esse tipo de relacionamento com a indústria, escrevi um capítulo inteiro sobre o recrutamento de especialistas em universidades, em parte também porque eles são muito essenciais para a estratégia de construção de credibilidade e de ganhar autoridade científica dentro do debate.

Todos os membros desse arsenal têm suas próprias formas de comunicação. Mas isso se junta em uma espécie de grande estratégia de comunicação, onde você tem revistas científicas, redes sociais, sites, petições falsas, oponentes ativos nas reuniões da prefeitura… Vários tipos de comunicação são importantes porque, em última análise, trata-se de controlar uma narrativa, controlar o que as pessoas pensam que sabemos. E então, como mencionei, o livro se volta para esses quatro pontos principais da estratégia, que é desafiar o problema, desafiar a causalidade, desafiar a credibilidade de cientistas, jornalistas e ativistas, porque são eles que lutam pelo conhecimento científico, e desafiar as próprias políticas públicas. Também falo sobre oportunidades externas, que são argumentos emitidos por pessoas que são de fato independentes da indústria, mas que a indústria usa para capitalizar. Esses também são muito úteis e são difundidos pelas firmas de relações públicas ou pelos advogados ou pelas próprias empresas às vezes. Portanto, é uma estratégia holística para desafiar o conhecimento científico.

Como podemos identificar situações em que a indústria influencia o conhecimento gerado pela ciência?

Uma coisa que é claramente problemática é que muitos desses especialistas não divulgam sua relação com a indústria. E eles estão escondendo isso porque sabem que esses estudos seriam vistos de uma maneira diferente, com maior escrutínio, ou até mesmo desacreditados logo de cara. Se eles declararem isso, como o trabalho da [pesquisadora e professora emérita da Universidade de Nova York] Marion Nestle sugere, fica muito fácil prever, quando você vê uma manchete dizendo, por exemplo, que amêndoas curam doenças cardíacas, que vai ter um agradecimento aos produtores de amêndoas no final do estudo. É muito previsível.

O que temos agora é um corpo crescente de evidências que descrevem as várias maneiras pelas quais esses contratos [entre indústria e cientistas] não colocam o conhecimento em primeiro lugar, eles colocam o interesse da indústria em primeiro lugar. Em alguns casos, as empresas químicas, por exemplo, dizem que possuem os dados que os cientistas independentes produzem e que têm o direito de vetar qualquer publicação que os cientistas queiram fazer. Também temos acordos onde os últimos 10% do financiamento estão condicionados à satisfação da indústria com a publicação que vai sair. E isso simplesmente não é uma boa ciência.

A ciência, por todo o seu incrível poder como forma de conhecimento, está sempre aberta a revisões. E essa qualidade revisionista, de manter a mente aberta por sua própria natureza, significa que ela é altamente vulnerável a esse tipo de tentativa. Mas ela não é vulnerável no longo prazo. No longo prazo, a verdade vencerá. Mas, como sabemos, para muitos desses problemas, não temos décadas pela frente, como tivemos com o clima. Toda a estratégia deles é uma estratégia de atrasar aquele conhecimento. A ciência encontrará o seu caminho para a verdade, dadas as condições adequadas. Mas pode levar muito tempo, especialmente quando a maior parte do financiamento para um determinado campo vem da indústria. Neste caso, é muito difícil chegar à verdade porque não há vozes independentes trabalhando nessas questões.

VOLTAR

REPORTAGENS