A China chegou

A China chegou

por Fermín Koop Montevideo y Buenos Aires, 2020
Publicado em 13 outubro 2020

Com 23% da população población mundial e só 7% das terras disponíveis para produzir alimentos, fome de carne e cada vez mais dinheiro, a China zarpou com destino a nós. Uma neoconquista que seduz com dólares, mas deixa territórios destruídos e povos cada vez mais pobres

Um labirinto de contêineres empilhados. Contêineres de muitas cores, formando uma espécie de mosaico, sem que se possa ver o que estão carregando. Barcos tão altos que não permitem avistar o rio. Tripulações de todo o mundo falando em línguas diferentes. Cheiro de peixe que invade tudo e chega ao terminal de cruzeiros próximo, onde os turistas estão. Acesso controlado, segurança e olhos que monitoram cada passo. Um terreno tão grande que, para cobrir tudo, é necessário usar o carro. O porto de Montevidéu, no Uruguai, está cheio de surpresas. 

Porque este pequeno país, com menos de quatro milhões de habitantes, tem um porto que poderia ser comparado ao Port Royal da Jamaica nos tempos dos piratas. Porque o porto de Montevidéu é hoje considerado o segundo em todo o mundo em transbordo de peixes suspeitos de serem obtidos ilegalmente. 

São toneladas de peixes e mariscos, mas também milhares de quilos de cocaína e até membros da tripulação mortos. Os dados, que soam como uma grande produção de ficção ao estilo de Hollywood, são na verdade informações verdadeiras e oficiais reveladas pelo governo uruguaio. Muita coisa acontece dentro deste porto com mais de 100 hectares e que funciona 24 horas por dia.

Aqui ancoram centenas de barcos pescando onde não deveriam, em travessias ilegais à procura de lulas, tubarões e outras espécies ameaçadas pela pesca excessiva.

Quais são esses barcos que viajam pelos mares da América Latina para pescar o que está proibido? Barcos chineses. 

Porque a China – um país com mais de um bilhão de habitantes – tem o dobro da média global de consumo de peixe per capita e já esgotou a maior parte dos recursos em seu território. Então, para encher os pratos, aproxima-se do Pacífico e do Atlântico com centenas de navios que se aproveitam dos abundantes recursos e da falta de controle nas águas latino-americanas. Não usam apenas o porto uruguaio, como muitos outros na região.

Mas pescar é apenas parte dessa história. Com um apetite voraz, a China vem aqui em busca de todos os tipos de alimentos para seus cidadãos, que representam 23% da população total do mundo. Porque não consegue produzir o que precisa, com apenas 14% de seu território adequado para a agricultura. Porque precisa alimentar sua classe média em expansão, que está mudando a dieta e quer cada vez mais carnes.

Além das centenas de barcos à procura de peixes ilegais, há milhares de outros navios chineses cruzando nossos mares legalmente. Milhares de barcos carregados com soja em todas as suas formas, carne bovina e suína, frutas, legumes, vinho e muitos outros produtos que viajam em enormes contêineres de um lado do mundo para o outro. 

É uma pequena lista do que vem e vai regularmente, porque nas últimas duas décadas a China tornou-se o principal parceiro comercial da maioria dos países da região.

“A China está procurando o melhor para sua população, mas aqui encontra alguém que abre a porta para isso”, diz Ariel Slipak, economista e professor da Universidade de Buenos Aires.

É que, à medida que a potência chega, atraída por abundantes recursos naturais e alimentares, os governos da região veem nela um credor e um investidor que moveu os já conhecidos Estados Unidos e a Europa. Independentemente da orientação política, todos os governos tornaram-se dependentes da China. 

E essa relação comercial não envolve apenas negócios: também mudou nossos modelos de produção. Consolidou a visão agroalimentar e extrativista que hoje caracteriza nossos países. Os preços recordes de alimentos, matérias-primas e uma rentabilidade extraordinária se encontraram com a reprimarização da economia e com conflitos ambientais e sociais, instalando uma dinâmica desigual. Ariel Slipak adverte: “A China está externalizando questões ambientais e sociais para países terceiros. Não estamos exportando apenas soja e carne para eles, mas também água e recursos naturais.” 

Este país pequeno, com menos de quatro milhões de habitantes, tem um porto que poderia ser comparado ao Port Royal, da Jamaica, nos tempos dos piratas

Segurança alimentar

A China sabe que não pode se alimentar sozinha. Tentou, mas acabou resignando seus planos à realidade. Em 1996, pretendia produzir 95% de todos os grãos e leguminosas necessários, mas, com sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, e uma relação comercial mais aberta, acabou repensando suas metas, abrindo-se para o comércio internacional de alimentos. Hoje essa meta de 95% passou a ser 80%, ciente de suas próprias limitações. 

“Gradualmente, a China começou a prover-se de um grande número de produtos agrícolas através do comércio internacional. Eles passaram por várias questões de eficiência, meio ambiente e produtividade”, explica Pablo Elverdin, coordenador de estratégia do Grupo de Países Produtores do Sul (GPS). 

É um país de grandes dimensões, bem como de grandes problemas. Tem apenas 7% da terra arável globalmente. E desse percentual menor, além disso, um terço está contaminado pelo uso excessivo de agrotóxicos.

É um país com produtividade agrícola muito baixa, com uma média de 60% de mecanização quando a Europa e os Estados Unidos estão em torno de 90%.

É um país que sofre com a falta de recursos hídricos para produzir alimentos. A quantidade de água disponível por pessoa por dia é inferior a 2 litros, e um quarto do que tem vai para a agricultura. 

Mas isso não é tudo. Entre o que pode produzir, a China também tem problemas. Especialmente doenças e pragas em seus animais e plantas. Um exemplo, o recente surto de peste suína africana que os levou a abater milhões de suínos desde 2019, com imagens que provocaram indignação global.

“A produção de gado moderno em larga escala é ambientalmente intensiva, e a China tem um ambiente vulnerável devido à sua alta densidade populacional, mesmo no ambiente rural, porque unidades industriais de menor escala não têm as instalações certas para proteger os animais contra doenças”, explica Holly Wang, pesquisadora da Universidade Purdue, nos Estados Unidos. 

Condições que se transformam em problemas, e grandes escândalos de segurança alimentar também atingiram o país. Em 2015, carne contrabandeada ilegalmente foi apreendida, algumas das quais com mais de 40 anos, em quantias no valor de US$ 483 milhões. Também foram detectados em restaurantes muitos casos de “óleo de esgoto”, ou seja, óleo ilegalmente usado e reciclado. Tais escândalos afetaram a confiança dos consumidores chineses em produtos alimentícios produzidos em seu próprio país; por isso, preferem os importados.

E assim a China tornou-se dependente das importações de alimentos, de US$ 14 bilhões em 2003 para US$ 104,6 bilhões em 2017. 642 vezes.  

A nova China e sua expansão

Entre os mais de um bilhão de pessoas da China, o consumo de cereais, grãos e leguminosas começou a diminuir, enquanto o consumo de carne, leite e outros produtos alimentícios não essenciais aumentou. Em 1980, 80% da dieta era à base de cereais, com 10% de consumo de carne e 10% de hortaliças e frutas. Mas hoje o cenário é muito diferente: apenas 40% da dieta é cereal, seguido por carne (30%) frutas e hortaliças (30%). 

O caso da soja é talvez o mais relevante. De 2000 a 2018, as importações passaram de US$ 2,3 bilhões para US$ 38 bilhões, tornando-a o maior importador mundial de soja por uma ampla margem. Comprando principalmente da América Latina e por uma razão que parece ilógica: a China compra soja para comer carne.

A especialista Margeret Myers explica: “A China tem uma quantidade limitada de terra e uma população em expansão. A classe média prefere comer carne, especialmente carne de porco e vaca. Isso desencadeou a demanda por soja, não para consumo direto, mas para o consumo animal, que a China reconhece que não pode atender nacionais”, diz a diretora do programa Ásia-América Latina do think tank Diálogo Interamericano. 

Mas a China não é apenas um comprador de alimentos da América Latina, é também um player muito forte em toda a cadeia agroalimentar da região. Aqui, as empresas agrícolas chinesas estão presentes há mais de duas décadas e, de várias maneiras, competindo lado a lado com os grandes dos Estados Unidos e da Europa, conhecidos como ABCD (Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company), que vendem todo o pacote para trabalhar a terra, de sementes a pesticidas. 

O governo do atual presidente chinês Xi Xinping encorajou empresas de seu país, muitas estatais, a expandir globalmente para garantir o fornecimento de soja (e outros produtos agrícolas) e também melhorar sua capacidade de controlar os preços dos alimentos. Um plano de investimento conhecido como “going out” ou “going global”. 

O primeiro caminho escolhido para o agronegócio latino-americano foi a compra de terras, como já haviam feito na África sem grandes problemas. Mas aqui a maioria das compras terminou em fracasso. Os investimentos foram rejeitados por organizações socioambientais porque os projetos violavam as leis de propriedade da terra. A quantidade de terra comprada por investidores chineses é incerta, com estimativas variando de 70 mil a 800 mil hectares. 

“A China precisa expandir sua capacidade de produção para além de suas fronteiras e opta por fazê-lo na América Latina e na África”, diz Ignacio Bartesaghi, especialista da Universidade Católica do Uruguai. “Enquanto na África entrou na terra, na América Latina está em toda a cadeia de produção e comercialização com grandes empresas, muitas empresas estatais.”

A China faz numerosos investimentos em sementes e na indústria agroquímica

O caso mais representativo foi a compra da Nidera, empresa transnacional doagronegócio, e da Noble, produtora latino-americana de soja, pela estatal chinesa COFCO em 2014 e 2016, respectivamente. 

A compra não foi coisa pouca. A Noble está presente no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai nos setores de soja, café, cana-de-açúcar, biodiesel e algodão, com uma infraestrutura logística bem desenvolvida. Enquanto a Nidera está principalmente na Argentina e no Brasil com grande capacidade de armazenamento e portos próprios para transportar grãos, fertilizantes.

Isso não é tudo. A China continua comprando empresas de processamento, bem como transporte, logística e marketing. Entre os destaques estão negócios da Estatal chinesa CGC com empresas brasileiras e argentinas como Molino Cañuelas (soja) e investimentos na região pelo Chongqing Grain Group, Sanhe e China National Heavy Machinery Corporation (infraestrutura agrícola). Também inúmeras compras e investimentos em sementes e na indústria de agroquímicos, um mercado-chave porque a China produz 40% do glifosato usado globalmente. A compra da Syngenta, uma das maiores empresas de agroquímicos do mundo, pela estatal ChemChina em 2017 foi fundamental nesse sentido.

“As empresas chinesas estão surgindo na cadeia de suprimentos agroindustriais da América Latina como players competitivos com empresas multinacionais”, diz a pesquisadora Holly Wang. “Soma-se a isso o investimento chinês no transporte de produtos agrícolas na região, o que reduz o custo comercial e retorna aos produtos mais competitivos do mercado global.” 

No sólo están comprando nuestros alimentos, también nuestros recursos hídricos, nutrientes de los suelos y bosques nativos

A marca

Além de ser comprador, na América Latina a China também se tornou a que empresta dinheiro. Seu papel como fonte de empréstimos e financiamentos aumentou significativamente, totalizando US $ 113 bilhões de 2003 até o presente. Os bancos chineses financiaram, por exemplo, redes rodoviárias e ferroviárias em toda a região: trens da Belgrano Cargas na Argentina; inúmeros projetos de máquinas agrícolas na Bolívia; hidrovias na Amazônia hoje controladas por empresas chinesas.

E suas compras trazem divisas, mas também pressionam o território, abrindo as portas para diversos conflitos sociais e ambientais. Porque eles não estão apenas comprando nossos alimentos, mas também nossos recursos hídricos, nutrientes de solos nativos e florestas. Mesmo produzindo o que precisa aqui para consumir lá, a China está gerando maiores emissões de gases de efeito estufa nos países da região. Contamina com as fábricas aqui e com a transferência transatlântica.

Para a Slipak, especialista em relações China-América Latina, a região precisa discutir outro modelo de desenvolvimento, que não significa necessariamente o agronegócio. “A indústria não importa, é tudo sobre ser os celeiros ou o supermercados do mundo.” 

A soja é, sem dúvida, a coisa mais importante para a China e também um dos pontos de maior conflito. As compras de produtores da nossa região têm crescido sem parar desde 1996 e agora representam uma média de quase 60% de todas as importações chinesas dessa oleaginosa. Milhares de toneladas de soja viajam pelo mar para o leste. E sete em cada dez quilos saíram do Brasil, em quantidades menores da Argentina e uruguaia. 

Vão-se os barcos com grãos, ficam os problemas. No Brasil, a organização Trase revelou que as importações chinesas de soja brasileira causaram desmatamento de 223 mil hectares entre 2013 e 2017, o equivalente a uma área com o dobro do tamanho da cidade de Nova York. Centenas de empresas participam da cadeia produtiva brasileira da soja, mas apenas seis concentram 70% do volume exportado da região do Matopiba: Agrex, Amaggi, LD Commodities, Multigrain, Cargill, Bunge e ADM. Quer dizer, multinacionais. Dinheiro que não fica no país. Mesmo entre os maiores exportadores de soja para a China, com uma participação de 7%, há uma empresa… chinesa! (COFCO).

“A soja é o principal produto agrícola que a região exporta para a China e, portanto, há quase uma ‘dependência mútua’ entre o país asiático e os países da América do Sul”, diz Maria Eugenia Giraudo, pesquisadora da Universidade de Durham, na Inglaterra. “Uma maior presença na região permite aumentar a interdependência entre os dois e ter maior acesso aos recursos produzidos na região.” Ou seja, uma espiral que parece não ter fim: cresce e cresce.

E no mesmo caminho da soja vai a carne brasileira. Porque 44% da carne bovina que a China compra vem do Brasil. Bifes, cortes e milanesas que saem principalmente, em 70%, de duas regiões, Amazonas e Cerrado, onde a expansão agrícola envolve cada vez mais desmatamento. Árvores são cortadas para colocar vacas. A biodiversidade é perdida e as emissões de gases de efeito estufa aumentam.

Em 2017, o Brasil exportou 1,4 milhão de toneladas de carne para diversos países. A carne produzida, segundo estimativas da ONG Trase, causou o desmatamento de 65 mil a 75 mil hectares de florestas nativas, das quais 22 mil correspondem exclusivamente aos embarques para a China. Para que a população chinesa desfrute de pratos com bons bifes, o Brasil sacrifica suas florestas. E a maior perda foi na região amazônica, onde funcionam dezenas de matadouros. 

Os problemas se repetem em outros países. Na Argentina, organizações sociais e ambientais alertam para um projeto de acordo comercial com a China que dobraria a produção de carne suína. O plano é instalar 25 plantas de produção no norte da Argentina para gerar 900 mil toneladas de carne por ano. Isso dobraria as emissões de gases de efeito estufa do setor, demandaria 12 bilhões de litros de água potável e, certamente, como no Brasil, significaria desmatamento de florestas nativas. 

“A instalação dessas fazendas de suínos nas províncias que mais desmataram nas últimas décadas gerará ainda mais pressão sobre as florestas, pois aumentará significativamente a demanda por milho e soja para alimentá-las”, diz Hernán Giardini, especialista florestal e membro do Greenpeace. “Vai na contramão das medidas necessárias para lidar com a crise sanitária e climática.”

Em 1980, 80% da dieta estava baseada em cereais. Mas, hoje, as carnes são 30%

À espreita

A água é a outra fronteira extrativista para a China na América Latina, e muito importante. Nas últimas décadas, a atividade pesqueira da China expandiu-se globalmente: sua frota de barcos aquáticos distantes passou de 1.830 em 2012 para quase 3.000 hoje. 

A China vê a pesca como uma indústria estratégica e, portanto, subsidia o combustível de seus barcos de água distante, que estão ficando maiores e funcionam virtualmente como fábricas flutuantes.

Pelos mares do mundo, nestas chamadas “águas distantes”, os navios de bandeira vermelha buscam acima de tudo a lula, que é então consumida na China, mas também exportada para os Estados Unidos e europa. 

Milko Schvartzman, especialista em conservação marinha, estima que existam mais de 300 barcos no Pacífico Sul, todos chineses, em picos da temporada de pesca, enquanto há mais de 500, a maioria chineses, no Atlântico Sul. Os governos da região não lhes concedem licenças de pesca, mas tampouco colocam qualquer freio. Por isso, os barcos muitas vezes se movem fora das fronteiras nacionais. Mesmo quando a vigilância é baixa, eles quebram essas fronteiras imaginárias sobre a água e competem com as frotas nacionais.

“É impossível controlar navios remotamente, mesmo através de satélites, à medida que desconectam seus sistemas de rastreamento. Você tem que estar no local e isso custa milhões aos governos”, explica Schvartzman. É por isso que os navios chineses “não respeitam a área permitida ou a época certa. Eles começam a trabalhar em dezembro, quando a frota argentina é autorizada a partir de janeiro.”

Em 2019, a empresa chinesa Shandong BaoMa aumentou as apostas. Tentou instalar um porto privado no Uruguai, um lugar onde poderia receber mais de 500 navios fora do controle do governo local. O projeto, que custaria cerca de US$ 200 milhões, previa o desenvolvimento de uma zona livre com porto, estaleiro e planta para processamento e peixes congelados. Não foi concretizado, está suspenso por alegações de organizações socioambientais. Suspenso… pelo menos por enquanto.

Ao longo da costa do Equador, 340 navios chineses atualmente circundam as Ilhas Galápagos principalmente em busca de lulas. Eles cercam o arquipélago de 12 ilhas que é mundialmente famosa por sua importância ecológica: a segunda reserva marinha mais importante do planeta, declarada Patrimônio Mundial pela Unesco. Mas na visão dos pescadores chineses há apenas uma área de recursos abundantes para a confluência das correntes marítimas. Uma área onde você pode capturar muitas lulas para que se transformem em pratos diversos a milhares de quilômetros de distância. 

Em 2017, um navio chinês foi capturado dentro da zona de proteção marítima de Galápagos. Dentro de seu congelador havia 7.200 tubarões e outras espécies ameaçadas de extinção. Enquanto a frota chinesa agora parece não estar pescando dentro dos limites do Equador, sua mera presença e atividade impactam a área, já que a lula é uma parte vital da cadeia alimentar marinha. 

“Há mais controles no hemisfério norte e é por isso que os navios chineses não estão lá”, diz o especialista Milko Schvartzman. “Eles vêm para a América Latina por falta de vontade política dos governos, por menos controles e por limitação de recursos.” 

Navios chineses espreitam, como se esperassem para atacar. Parecem dormindo ou distraídos, mas não estão. Eles perseguem o tempo todo, aproveitando-se das regras ou controles sem regras. Enquanto isso, os recursos estão acabando. 

Não só o peixe. Os nutrientes do solo, a pureza dos rios e a beleza das florestas nativas da América Latina também estão acabando. 

A indústria de comida-porcaria é uma ameaça à democracia?

Por João Peres, de Bocado

Um documento lançado pelo Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo, da Colômbia, e pela organização El Poder del Consumidor, do México, não tem dúvidas em afirmar: sim, as fabricantes de ultraprocessados ameaçam a democracia ao frear a ação do Estado em políticas públicas que podem salvar vidas. 

“La interferencia de la industria es nociva para la salud” é um estudo no qual as organizações passam a limpo as estratégias adotadas por corporações como Coca-Cola, Nestlé, Pepsico, Bimbo e Danone nos países que criaram sistemas de alerta sobre o excesso de nutrientes críticos, como sal, gorduras e açúcar. 

Não é acaso que esse modelo tenha sido criado no Chile e desde então sido analisado por outros países da América Latina: a região tem uma das situações mais graves no que diz respeito ao avanço das doenças crônicas (diabetes, doenças cardiovasculares, câncer) desde os anos 1990. Desde a última década, os governos têm buscado medidas para desencorajar o consumo de ultraprocessados e incentivar culinárias tradicionais, com base em alimentos frescos. 

O documento estabelece um pressuposto importante: “A indústria, apoiada em seu poder econômico e sua influência social e política, passou de ser um ator econômico a um interlocutor autorizado, apesar de sua ausência de credenciais confiáveis, em matéria de saúde pública.” Disso decorrem dilemas éticos e políticas públicas incoerentes, como a que está sendo adotada esta semana no Brasil. 

No es casualidad que ese modelo haya sido creado en Chile y desde entonces haya sido analizado por otros países de América Latina (Foto: Miguel Tovar. Bocado)

Desde o início da discussão sobre a criação de um novo sistema de rotulagem frontal, em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) colocou na mesma mesa pesquisadores em saúde pública, organizações não governamentais e fabricantes de ultraprocessados. O perigo dessa igualdade hierárquica ficou mais e mais evidente ao longo dos anos, quando a Anvisa acabou se posicionando no meio do caminho entre as pressões privadas e a saúde pública. Ao final, tudo indica que o país terá um sistema de rotulagem que não está baseado nas melhores evidências científicas, e que não sabemos se funcionará na prática.

Mas o documento lançado esta semana fala sobre quem conseguiu levar adiante a medida, e não sobre quem falhou na implementação – esse, aliás, seria um ótimo desdobramento, analisando países como Argentina e Brasil. Olhando para Chile, Peru, Uruguai e México, o estudo lista onze estratégias utilizadas para frear, retardar ou enfraquecer a ação do poder público no que diz respeito à rotulagem. 

Não valeria a pena ser exaustivo nas práticas adotadas, que podem ser conferidas em resumo entre as páginas 72 e 75. Destaco aqui alguns dos casos mais interessantes.

  • Na Colômbia, o projeto de lei voltado à adoção do sistema de alertas já está na terceira tentativa de tramitação. Os parlamentares simplesmente não permitem que a proposta avance. O documento mostra como a indústria de bebidas açucaradas se tornou a principal financiadora eleitoral dos maiores partidos políticos.
  • Fale com o presidente. Na Colômbia, destaca o estudo, o acesso da indústria a Ivan Duque foi fundamental. No Uruguai, Luis Lacalle firmou um decreto no qual retarda a adoção dos selos, que deveria ter sido iniciada em março. Acréscimo por minha conta: em 2018, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) acionou diretamente Michel Temer, e conseguiu duas reuniões em dois dias, o que é um feito notável em se tratando de um presidente da República. Na época, Temer ameaçou intervir, o que afeta a autonomia administrativa garantida à Anvisa.
  • No Peru, houve uma tentativa de aprovar uma nova lei, derrubando a adoção de alertas em prol de um sistema mais fraco, de interesse da indústria. A ofensiva foi coordenada por Keiko Fujimori, do partido majoritário Congreso Fuerza Popular, que foi diretamente ao presidente Martin Vizcarra. Uma situação autoexplicativa: se Fujimori é a líder do seu braço de lobby, isso diz muito sobre quem você é. 
  • “Coca-Cola é uma das empresas mais ativas no bloqueio das políticas de saúde que podem afetar os interesses da indústria de comestíveis ultraprocessados e as bebidas açucaradas. No caso do México, é sumamente ativa e suas ações se potencializam em sua aliança com FEMSA, a engarrafadora de Coca-Cola maior no mundo.”
  • O uso de ameaças econômicas é um eixo comum a todos os países analisados. Argumenta-se que a medida viola as regras de livre comércio previstas pela Organização Mundial de Comércio, mesmo que esta já tenha dito que cada país tem autonomia para definir a própria rotulagem. O uso do Mercosul para pressionar o Uruguai é narrado em uma série de vídeos que publicamos em nosso canal no YouTube.

Para além do relato sobre interferências, o documento postula uma agenda concreta para prevenir o problema. E essa é uma das partes mais interessantes, sem dúvida, porque responde à questão inicial: trata-se de um conjunto de medidas que recolocam a indústria no papel de setor regulado, e não de formulador das próprias regras. 

“A falta de controle sobre as atividades de lobby para favorecer o lucro privado, a possibilidade de levar a cabo reuniões a portas fechadas e sem registro, a possibilidade de financiar campanhas políticas, a falta de regulação às portas giratórias, ou a contratação de grandes empresas de advogados com estratégias legais em grande escala contribuem a gerar ambientes propícios para que as más práticas da indústria fiquem na impunidade ou sejam desconhecidas para o grosso da população.” 

O documento apresenta medidas que deveriam ser tomadas por deputados e senadores; ministros, secretários e presidente da República; juízes e promotores, na tentativa de evitar a ação indevida da indústria. Uma das recomendações mais interessantes é a adoção de um protocolo de relacionamento com os fabricantes de ultraprocessados que dê transparência a essa questão. Entre outras, prevê que:

  • ex-funcionários privados que agora ocupam cargos públicos não se envolvam na discussão de medidas de interesse do setor
  • não se compareça a eventos promovidos pela indústria para discutir políticas públicas
  • exista registro escrito de qualquer integração com agentes privados, deixando clara a intenção da conversa

É difícil encontrar, entre as recomendações, um ponto no qual a Anvisa, do Brasil, não tenha falhado. Diretores e integrantes da Gerência-Geral de Alimentos participaram de uma série de eventos promovidos pelo setor privado. Tiveram reuniões a portas fechadas cujo teor só foi revelado porque conseguimos acesso às atas – em uma delas, um ex-diretor acenava com a possibilidade de adotar um sistema de preferência das corporações, algo que nunca havia dito em público. 

Por trás de toda a agenda de recomendações existe um passo simbólico que parece difícil de dar em boa parte dos países da América Latina: desnaturalizar o poder das corporações de moldar a ação do Estado. Vários de nossos governos estão repletos de agentes que migraram diretamente de empresas a cargos estratégicos de interesse do setor para o qual trabalhavam. A lógica de que essas forças privadas são espontaneamente benéficas e de que todos temos de atuar em conjunto para sair do atoleiro está profundamente arraigada em nossas sociedades.