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A escassez do azeite sagrado

por Talula Mel Salvador (BA), Brasil
Publicado em 3 de maio de 2021

Crise de produção na Bahia coloca em risco a oferta do azeite de dendê, ingrediente ancestral que permeia a cultura, religião e a tradição do estado, além de ser fonte de renda para milhares de agricultores e cozinheiras

Os fins de tarde em Salvador têm o cheiro do perfume do dendê. Em cada ponto da cidade, é possível encontrar uma ou mais baiana de acarajé com seu tabuleiro e o tacho de dendê fervendo ao lado, diariamente, numa afirmação constante dessa herança que se mantém viva. Mas, no ano passado, a população se assustou com uma questão até então desconhecida pela maioria: o azeite de dendê produzido na Bahia corre o risco de acabar?

Considerado um fenômeno cultural do estado, o dendê é mais que um item indispensável da culinária baiana ou um fruto que gera renda para milhares de agricultores e suas famílias. 

Não por acaso, diz-se que nesse território a comida de rua é sagrada. Isso porque os quitutes populares, como o acarajé e o abará, extrapolaram o espaço  dos terreiros para ganhar as ruas da cidade – sob a bênção e o veredicto dos Orixás, que permitiram às suas filhas comercializarem os alimentos para garantir a liberdade de seu povo, nos séculos XVIII e XIX. Em 2012, o ofício da baiana de acarajé foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como Patrimônio Imaterial da Bahia.

Nas últimas décadas, grandes extensões de plantio de azeite de dendê espalharam-se pelos países pobres para garantir a extração do óleo, muito utilizado pela indústria de ultraprocessados. Hoje, Indonésia e Malásia são os maiores produtores. Isso fez do dendê o terror de populações tradicionais na Ásia e na América Central, onde as grandes fazendas tiveram forte impacto ambiental e passaram a competir com a produção de alimentos. 

Mas, no Brasil, o significado é bastante diferente.  Especialmente na Bahia. Embora o estado do Pará seja o maior produtor, entre os baianos o dendê deriva de um processo agroecológico e regional, com a espécie tradicional do dendê dura (a árvore mais alta do dendezeiro e a mais encontrada em solos baianos) como herança direta da ancestralidade africana. Só que, nos últimos anos, a produção do no estado caiu drasticamente. Entre 2015 e 2019, passou de mais de 204 mil toneladas do fruto para apenas 38 mil, uma redução de mais de 80%, gerando a escassez do azeite e uma escalada dos preços. 

mulher com azeite de dendê
Toinha prepara o azeite de dendê. Foto: divulgação do documentário O babado da Toinha /jangada.org

E de onde vem o dendê?

A Costa do Dendê concentra o maior número de dendezeiros, responsável por grande parte do azeite de dendê produzido e comercializado na Bahia. A região é muito conhecida turisticamente por suas praias belíssimas e, claro, pela culinária. 

Em Serra Grande, distrito de Valença, na Costa do Dendê, vive Toinha, baiana de acarajé de 57 anos que há trinta faz sucesso com seu tabuleiro. Toinha prepara todas as iguarias que acompanham o acarajé – cujo nome vem da palavra em Iorubá acará, que significa “bola de fogo”) , como o vatapá, o caruru e o molho de pimenta. Mais do que isso, é ela própria quem colhe e produz todo o dendê que utiliza na cozinha.

Toinha colhendo o fruto do dendê
Toinha colhe ela mesma o fruto do dendê. Foto: divulgação do documentário O babado da Toinha / jangada.org

“Eu faço esse trabalho todo sozinha, eu e Deus, que não tem ninguém pra me ajudar. É minha dor e meu trabalho. Mas pra eu ter meu acarajé assim, gostoso, tem que ser com esse dendê natural, feito do pé. Esse é o segredo!” O trabalho ao qual Toinha se refere realmente não é para amadores. Para coletar o fruto do dendê, muitos cortadores escalam, sem proteção, as palmeiras, que podem chegar a 25 metros de altura. Uma das razões pela qual a Bahia passa por essa crise no principal ingrediente de sua gastronomia é justamente o método de colheita.

O processo trabalhoso de extração do dendê e a falta de investimento para que ele seja otimizado e mais seguro para os trabalhadores é um dos fatores apontados para explicar as baixas safras. O problema, que começa com a altura da palmeira do dendezeiro, continua com o instrumento utilizado para colher os cachos de dendê, nomeado de “peia”. Essa ferramenta tem aproximadamente cem anos e é feita de cabo de aço.

“Não houve uma evolução no aperfeiçoamento desse instrumento, o risco que o cortador de dendê corre para fazer a colheita é grande. Por causa disso, muitas pessoas estão deixando de exercer essa função”, declara Demétrio de Souza, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Nazaré e da Cooperativa dos Pequenos Produtores Rurais (Coomtrata), que conta hoje com 182 cooperados, dos quais 91% são agricultores familiares. 

A respeito da falta de dendê que mobilizou a população baiana no segundo semestre do ano passado, há opiniões divergentes sobre os fatores que levaram a esta crise. Para Demétrio, a carência de dendê no mercado baiano em 2020 se deve, em alguma medida, a fatores climáticos, relativos ao próprio ciclo da natureza, mas sobretudo à falta de tratos culturais, ao baixo investimento em mão de obra e à pouca atenção dos poderes públicos. “O dendê precisa de limpeza nos pés, controle de pragas, adubação, precisa de renovação nas lavouras… como isso não ocorre há algum tempo, a árvore, então, sofre o impacto. Sem investimento, não há perspectiva de melhoria”, afirma ele.

É que as palmeiras antigas, que na Bahia podem ser centenárias, geram menos frutos e precisam ser progressivamente substituídas por mudas, que demoram cerca de oito anos para chegar ao ápice de produção. E, para fazer essa renovação da lavoura, é necessário ter recursos para investir ou ter acesso a linhas de crédito.

Graças ao saber e à autonomia de Toinha em confeccionar seu próprio azeite de dendê, extraído das terras de Serra Grande, ela não sofreu tanto o impacto que a baixa safra do ano passado provocou no estado, quando o preço chegou a dobrar. 

Mas quem vive do dendê na capital baiana e depende de compras em grande quantidade, como as baianas de acarajé, viu o balde de 16 litros, que custava R$ 60, chegar a R$150 e até a R$180. Ivana Muzenza, de 38 anos, baiana do bairro de Itapuã, é a quinta geração de uma família de mulheres que vivem do acarajé. “Existem algumas matérias-primas do acarajé que têm valores sazonais, em especial o camarão e o dendê, que sempre sofrem reajustes. Mas é um reajuste sazonal e pequeno, aquele que sobe e desce, e em 2020 o preço do dendê subiu três vezes mais, foi estarrecedor!”, conta. 

O azeite é a principal matéria-prima do acarajé. “Na verdade, da nossa culinária ancestral. A minha estratégia foi fazer um pequeno reajuste no valor dos meus quitutes. Infelizmente, tive que dividir com meus clientes esses custos, mas ainda assim continua muito apertado para nós, baianas.” 

Ivana Muzenza
Ivana Muzenza é a quinta geração de baianas de acarajé da família. Foto: Gabrielle Guido

Angélica Moreira, mulher negra de 61 anos, chef de cozinha e Ekede de Oxum, é conhecida na cena cultural e gastronômica da cidade de Salvador pelo projeto de étnico-gastronomia Ajeum da Diáspora. Há oito anos ela abriu as portas de sua própria casa, no bairro do Tororó, para servir releituras de pratos repletos de beleza, nobreza e sabor, oriundos de países africanos e da diáspora. Fenômeno histórico, social e cultural, a diáspora negra se inicia com a imigração forçada de cidadãos africanos pelos países coloniais, no período da escravidão, e reinvidica, hoje, a África como local de origem de culturas e pessoas que vivem fora do continente, sobretudo nos países que sofreram essa colonização, como é o caso do Brasil.

“Esse nome, Ajeum da Diáspora, foi minha mãe Oxum que soprou no meu ouvido!” Angélica tinha acabado de se separar do pai de suas filhas e estava terminando a faculdade de Pedagogia quando percebeu a necessidade de recalcular as rotas de sua vida. A primeira refeição que serviu no quintal fresco e aconchegante de sua casa foi numa ressaca de Carnaval, e no dia seguinte já tinha gente ligando: vai abrir hoje de novo?! 

A partir das obras de autores e autoras da diáspora africana, veio a ideia que conduziu seu trabalho e fez dele o sucesso que é até hoje. “O projeto trabalha o resgate de pratos das minhas mais velhas e de outras famílias baianas, assim como dialoga com a diáspora negra. Tem os pratos locais, mais conhecidos, e tem os pratos de alguns países da África e dessa diáspora. O dendê está sempre presente na minha cozinha”.

Angélica Moreira e Angela Davis em Ajeum da Diáspora
Angélica Moreira recebe a escritora, filósofa e ativista Angela Davis na sua casa-restaurante: o Ajeum da Diáspora. Foto: arquivo pessoal

Por conta da pandemia do coronavírus e dos protocolos de segurança, o Ajeum da Diáspora estava de portas fechadas quando a crise do dendê chegou na capital, assim como as cerimônias públicas dos terreiros de Candomblé estavam suspensas. “Talvez por isso o baque não tenha sido tão sentido por nós como seria num momento normal. A garrafinha de um litro, que eu comprava a R$ 6, de repente foi para R$ 12, até R$ 14. Não sei como seria se estivéssemos funcionando normalmente”, relata Angélica.

O dendê colhido pelos agricultores familiares da Costa do Dendê tem dois destinos principais: a Oldesa, uma das maiores indústrias de dendê do país, filiada em Nazaré (BA), e os chamados roldões, locais mais familiares de produção do óleo, nos municípios de Valença e Taperoá. Nessas duas cidades acontece o processamento para consumo doméstico. 

Nos anos 1950, Vanderlei dos Santos viu seu pai começar uma plantação de dendê no município de Jaguaripe, próximo a Salvador, e se tornar “o rei do dendê” com a implementação da Oldesa, principal indústria do ramo – 98% do dendê comercializado por eles vem dessa fazenda própria, que possui hoje de três a quatro milhões de pés de dendê. 

Há 14 anos, uma parte dessas terras foi vendida para a Fazenda Misericórdia, outra importante fornecedora de dendê, restando para a Oldesa um terço de terra, que corresponde a 1.350 hectares de plantação de tenera (variedade de dendê que possui melhor qualidade). “Nosso maior cliente de produto acabado são as redes de supermercados. Nós temos uma marca de azeite de dendê, a Yaô. Então, 95% do nosso dendê vai para a indústria de alimento e os outros 5% vão para a fabricação de biodiesel, de graxa etc”, diz Vanderlei.

Colheita do dendê na Bahia
Processo de colheita do dendê na fazenda da Oldesa. Foto: arquivo pessoal de Vanderlei dos Santos.

Para ele, o biodiesel aparece como um fator que acirra a atual crise do dendê, comprometendo a quantidade da matéria-prima que é destinada à alimentação e, portanto, à população em geral. “Tinha como ter muito óleo [de palma de dendê], o problema é que o governo não taxou esse óleo que vai para o biodiesel. Estão pegando um óleo que é muito bom pra saúde, rico em vitamina E, antioxidante, o oposto do óleo de soja, e vendendo para empresas de combustível. A gordura vegetal da palma de dendê é tão boa que é usada na fabricação de diversos alimentos.”

Já Demétrio discorda do ponto de vista. “Nós somos a única cooperativa da Bahia e do Nordeste com contrato com a Petrobrás e a Oleoplan, para o biodiesel”, diz. “Nós fornecemos muito dendê para elas entre 2017 e 2019. O contrato era até 2020 e nós tivemos que suspender, porque não tínhamos mais matéria-prima para suprir.” 

De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o uso nacional do óleo de palma/dendê para a produção do biodiesel, em 2017, caiu de 2,55% em janeiro para 1,09% em dezembro, passando por períodos de grande baixa em abril, maio e outubro. Em 2020, no registro que vai de janeiro a abril, esse uso passou de 2,64% a 1,12% no período de 4 meses. Os números apresentados apontam que o dendê corresponde a 1,12% das matérias-primas utilizadas para este fim, ficando abaixo do óleo de soja, da gordura bovina e de porco e de outros materiais graxos.

Demétrio afirma que o problema central está na falta de investimento destinado à cultura do dendê, o que prejudica as safras, os trabalhadores e afeta substancialmente a produção final. Com a baixa quantidade disponível, os preços sobem e a conta não fecha. 

De acordo com ele, no período em que o contrato com a Petrobras esteve vigente, não houve crise no mercado. Com a falta dos cachos de dendê para abastecer as empresas, elas preferiram adquirir o óleo diretamente do Pará, onde é produzido em grandes empresas o dendê tenera.

O dendê dura é ainda o mais comum na Bahia. Em sua pesquisa “Viabilidade Econômica do Dendê”, Isidoro Semedo aponta que 25 kg de cachos do dendê dura rendem 12% de óleo, enquanto 30 kg do dendê tenera rendem 22%. “[O dura] é um dendê que, em média, rende duas toneladas por hectare, enquanto o tenera rende dezoito ou até vinte e duas toneladas por hectare”, diz Demétrio. 

Por não haver renovação das lavouras durante décadas, o problema estourou. “O dendê antigo, do tipo dura, nós comprávamos na mão dos nossos cooperados por até R$250 a tonelada, o preço nunca baixou desde que nós entramos no mercado. Hoje, ele está sendo vendido por R$ 480. Não existe dendê para atender à demanda e, sem investimento, a tendência é piorar”, diz Demétrio.

No segundo semestre do ano passado, o governo da Bahia prometeu destinar cerca de R$ 2,2 milhões em ações voltadas para o processamento e o beneficiamento do dendê nos territórios Baixo Sul e Recôncavo. 

De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Rural, o objetivo é beneficiar os agricultores familiares e suas organizações produtivas com infraestrutura e a implantação de unidades modernizadas para qualificação da produção do azeite. No entanto, existe ainda uma dificuldade para que os trabalhadores acessem essa verba, que é destinada por meio de edital do Projeto Bahia Produtiva, o que dificulta a vida daqueles que não estão organizados. 

Demétrio relata dois editais em que a cooperativa concorreu e não foi aprovada: o primeiro, visando à aquisição de equipamentos para pôr em atividade uma usina; e o segundo, para aquisição de novas mudas de dendê.

Indicação Geográfica do Dendê

As Indicações Geográficas (IGs) são acordos internacionais de direito à propriedade intelectual que surgem junto com a criação da Organização Mundial do Comércio, na década de 1990. A partir de 2000 começam a ser criadas as IGs brasileiras. Hoje o país já possui 70 delas, dentre as quais estão o café do Cerrado e o queijo Canastra, ambas de Minas Gerais, registradas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). 

As IGs são uma espécie de “selo de qualidade”, registrado em órgão federal, que tem como função certificar que aquele produto é original, ao reunir características previamente definidas de onde, como e quem o produziu. A Bahia possui quatro Indicações Geográficas: as uvas e mangas do Vale do Rio São Francisco, a cachaça Abaíra, o café do Cerrado baiano e as amêndoas de cacau do litoral sul. O azeite de dendê tem, em tese, um grande potencial para ser reconhecido em IG. A narrativa enfatiza como o processo produtivo é uma tradição local, desde o cultivo até o preparo. 

O grupo que está trabalhando na efetivação do projeto para a IG do Dendê é coordenado pelo professor Alcides dos Santos Caldas, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Há uma tendência do capital para a produção de biodiesel, mas defendemos que a região é pequena, tem vários cultivos, e a produção de biodiesel seria fatal, uma destruição de todos os outros produtos também. Temos uma região minifundista, onde cada produtor produz um pouco de cada coisa, dendê, cravo, guaraná, banana, uma produção totalmente agroecológica.”

Com a Indicação Geográfica haverá uma demarcação do território onde é produzido esse dendê. “A Indicação impede que essa entrada do azeite do Pará aconteça, pois será considerada uma falsificação. Isso já é uma proteção a esses produtores. O segundo elemento, além da delimitação territorial, é um caderno de especificações técnicas que precisa ser escrito, relatando todo o processo de produção, desde o plantio até o envase desse azeite de dendê. A partir do momento que é registrado, esse caderno de especificações técnicas funcionará como a cartilha do produtor, todos têm que produzir de acordo com o estabelecido ali. Nós não criamos isto, é uma sistematização do que já é feito.”

A região é composta por 68 quilombos e uma população majoritariamente negra, com baixo nível de escolaridade e extensa trajetória de vulnerabilidades. “É preciso proteger essa paisagem, que significa uma história de reprodução desse saber, significa proteger um sistema de produção tradicional.” 

Para Alcides, “o trabalho precisa ser feito no dia a dia, coletivamente, buscando apoio do governo federal, estadual e local também, as instituições da sociedade civil, para organizar todo esse tecido. Essa região tem outras possibilidades de indicação geográfica, que é o caso do guaraná, do cravo da índia, da mantinha, dos mariscos, é uma das regiões brasileiras que mais tem potencial de indicação geográfica”.

Ancestralidade e tradição

Ivana, a baiana de Itapuã cuja família trabalha há gerações com o acarajé, conta que, quando nasceu, sua tataravó, Jacinta Borges, ainda era viva. Com a bisavó, ela conviveu até seus vinte e dois anos. “Essa é a primeira profissão da mulher afro-brasileira. Eu sempre digo que as ganhadeiras [mulheres negras escravizadas e libertas] construíram a economia deste país com sangue de dendê.” 

Ivana recebeu a sabedoria da avó e o conhecimento da mãe e, aos 11 anos, por vontade própria, começou a seguir a tradição culinária da família. “Isso é muito simbólico pra mim, pois as mulheres pretas escravizadas do século 19 receberam a autorização de Iansã para comercializar o acará, que é um alimento sagrado, para que elas pudessem juntar dinheiro e comprar suas cartas de alforria. Atualmente, a venda de acarajé continua libertando várias mulheres e suas famílias.”

crianças vestidas de roupa branca tradicional
Ivana (criança à esquerda), vestida com sua primeira roupa de baiana e animada para participar da tradicional Lavagem de Itapuã. Foto: Arquivo Pessoal

O poder da ancestralidade na minha vida é tão essencial que eu consigo afirmar que o azeite corre nas minhas veias. E fervendo!"

Além do saber do ofício, o dendê percorre histórias como a da família de Ivana também por outro caminho: o sagrado religioso. “Minha tataravó era filha de Ogum. Minha bisavó era filha de Xangô. Minha avó, filha de Oxum, feita ainda na barriga de minha bisa. Minha mãe também era de Candomblé e eu sou do Candomblé. O poder da ancestralidade na minha vida é tão essencial que eu consigo afirmar que o azeite corre nas minhas veias. E fervendo! Imagine que o dendê veio nos porões dos navios negreiros por fazer parte da vida e da culinária religiosa dos escravizados. A importância do dendê nas nossas vidas é imensurável.”

“Eu sempre digo que as pessoas têm saudade gastronômica da Bahia… porque a Bahia remete ao dendê!”

Angélica Moreira segura o dendê
Angélica Moreira em Serra Grande (BA) com o dendê da região. Foto: Gabriela Palha

Eu sempre digo que as pessoas têm saudade gastronômica da Bahia… porque a Bahia remete ao dendê!"

Dona Angélica Moreira, além de chef de cozinha e proprietária do Ajeum da Diáspora, é também uma mulher de Axé: filha de Oxum e Ekede de Oxum. “Tudo no Candomblé passa pela cozinha. As obrigações, o preparo da comida sacralizada e das comidas que servimos para os convidados, em tudo o azeite de dendê está presente. Além das comidas, ele está presente também em vários segredos, em vários detalhes que só quem é iniciado sabe”.

Na religião de matriz africana, não são só as pessoas que se deliciam com essas comidas, como também os Orixás, Inkissis e Voduns “se banham no azeite”. Como explica Ekede Angélica: “Com a exceção de Oxalá, Ayrá e alguns orixás funfun (significa ‘divindades do branco’, que só vestem branco e não podem comer dendê), o panteão africano se alimenta dessa força vital – e acho que a gente precisa pontuar assim, pois essa é a força que o azeite tem. A força desse óleo de palma, que percorreu a travessia do Atlântico, veio nos navios negreiros e chegou até aqui como semente, conseguiu sobreviver e fazer parte da nossa gastronomia: a sagrada e a de rua.”

Tudo no Candomblé passa pela cozinha. As obrigações, o preparo da comida sacralizada e das comidas que servimos para os convidados"