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A expansão da fronteira agrícola passa por Brasília

por Leonardo Fuhrmann especial para BOCADO
Imagem: O Joio e O Trigo
Publicado em 13 de dezembro de 2021

Com uma bancada da Câmara e do Senado maior do que a de qualquer partido e um instituto empresarial para apresentar projetos de lei e lutar por sua aprovação, ruralistas avançam sobre a legislação de proteção ao meio ambiente, nas ameaças aos direitos dos povos indígenas e contra o combate ao trabalho escravo

Em suas publicidades, o agronegócio vende sua imagem com máquinas modernas fazendo a colheita de grãos em grandes áreas de terra. Porém, seu principal campo de trabalho não é lá. Mas sim nos carpetes verde da Câmara dos Deputados e azul do Senado. 

Quase todos homens e quase todos brancos, com seus ternos e gravatas, os dirigentes e representantes do Instituto Pensar Agro (IPA) são o principal expoente do lobby do agronegócio brasileiro. O IPA é uma organização de associações setoriais empresariais do agronegócio que atua representando a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que reúne ruralistas e defende os interesses do agro no Congresso Nacional. A simbiose entre a Frente Parlamentar da Agropecuária e o Instituto Pensar Agro impõe a agenda no Parlamento e garante influência nas decisões do Executivo e do Judiciário.

As articulações são feitas no Congresso, no Executivo e no Judiciário brasileiro, em prédios construídos pelo renomado arquiteto Oscar Niemeyer, na cidade projetada pelo urbanista Lúcio Costa. Assim, Brasília, inaugurada pelo então presidente Juscelino Kubitschek como símbolo da modernidade e da industrialização no início dos anos 1960, pouco antes da instauração da ditadura civil-militar, foi dominada pelos interesses da velha elite agrária do país e suas articulações internacionais.

Nos corredores dos prédios da Praça dos Três Poderes e da Esplanada dos Ministérios e em animados rega-bofes em mansões do Lago Sul, área nobre de Brasília, políticos e de dirigentes do IPA escolhem autores e relatores de projetos de lei e decidem como barrar ou modificar propostas que não são de seu interesse. 

O objetivo central é abocanhar cada vez mais territórios para seus negócios, mesmo que para isso seja necessário retirar direitos de povos originários e tradicionais, aumentar a devastação ambiental, diminuir o acesso à água desses povos e dificultar a repressão à exploração do trabalho escravo. Essa sanha por lucros, além de avançar em território nacional, é replicada em conflitos semelhantes do agronegócio brasileiro em países vizinhos como o Paraguai e Bolívia.

Imagem: O Joio e O Trigo

Aliados de Bolsonaro

O setor faz suas escolhas e influencia diretamente as decisões. Apoiou maciçamente o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016, esteve ao lado de Michel Temer (MDB) quando o então presidente foi alvo de denúncias de corrupção e, desde 2018, durante a campanha eleitoral, é um dos principais aliados de Jair Bolsonaro. 

A influência dos diferentes setores do agronegócio na gestão Jair Bolsonaro fica evidente na participação de seus expoentes em cargos do primeiro escalão do governo, notadamente na Agricultura e no Meio Ambiente. E, no Legislativo, na atuação da Frente Parlamentar da Agropecuária. Para apresentar as demandas dos empresários e produtores rurais, foi criado em 2011 o Instituto Pensar Agro (IPA), a face econômica da bancada ruralista. FPA e IPA atuam em conjunto na defesa deste segmento. O IPA é símbolo máximo desta comunhão de interesses da elite agrária nacional com o capital internacional. A marca desta união é a importação do conceito de agronegócio, que se consolidou nas duas últimas décadas, e torna os latifundiários apenas uma parte dos grupos de pressão. 

Os interesses operam em cadeia, e vão dos fabricantes de máquinas e insumos às indústrias e grandes multinacionais exportadoras, passando por bancos, seguradoras, investidores e cooperativas de crédito. Segundo quem acompanha o Congresso, muitas vezes a atuação política desses parlamentares nem sempre têm relação direta com sua trajetória pessoal ou sua base eleitoral. 

A relação também não fica sempre evidente pela análise dos financiadores de campanha. Há ainda os que conquistaram o mandato como representantes de agricultores familiares ou de pequenas cooperativas locais que passaram a trabalhar no mandato em favor das grandes corporações do setor. 

Com a ascensão do bolsonarismo, surgiu um novo grupo: dos que se aproximaram da frente por questões ideológicas, como o discurso contrário aos direitos indígenas, aos militantes sem-terra, à defesa do meio ambiente e em favor do armamento.

Foto: Ibama e PMA

Pautas prioritárias para o setor

O instituto se apresenta como uma organização representativa sem fins lucrativos, criada “por entidades do setor agropecuário com o objetivo de defender os interesses da agricultura e prestar assessoria à FPA por meio do acordo de cooperação técnica”. O instituto afirma que reúne “44 entidades do setor produtivo agropecuário”, “responsáveis por levantar agendas de debates e questões relacionadas ao setor, funcionando como canal interlocutor entre as entidades da cadeia produtiva rural e os parlamentares que estão envolvidos na causa”.

Em reuniões na mansão no Lago Sul, que é usada como sede da IPA, parlamentares decidem junto com os integrantes do instituto quais são as pautas prioritárias da semana. Seus técnicos e associados atuam no Congresso, inclusive nas comissões temáticas, e lançam documentos de orientação para a bancada. Neles, seus técnicos apresentam projetos de interesse do instituto, orientam a votação e apresentam as justificativas.

Uma maneira de ter profissionais experimentados nesta ponte é a chamada porta giratória: pessoas com vivência dentro da estrutura de governo que usam seus conhecimentos e contatos para beneficiar entidades ou empresas que representam. A porta é chamada giratória porque muitas vezes tais profissionais voltam a ocupar cargos dentro de estruturas de governo e se tornam um contato privilegiado de seus antigos chefes e colegas em empresas e associações.

A relação de técnicos e de presidentes de associações que atuam nas comissões junto com os parlamentares mostra um perfil além do representante dos setores de produção. Muitos deles formados mais nos gabinetes de Brasília do que em qualquer ambiente rural. Existe, ainda, o intercâmbio de profissionais entre as associações, o instituto, instituições de ensino e as grandes empresas ligadas ao setor agropecuário.

A peça mais importante sobre o IPA que é divulgada em seu site é o estatuto de abril de 2015. Nele, é explicado que o instituto tem como fonte de recursos para sua manutenção a contribuição de suas associadas e a restrição à captação de recursos públicos. Muitas das associações ligadas ao instituto também são mantidas pela colaboração de seus associados, ou seja, empresas ligadas ao setor, inclusive multinacionais, e ruralistas financiam indiretamente o IPA.

Segundo o estatuto, para participar do instituto, a associação precisa ser entidade de classe, ter vínculo com o setor agropecuário e “ter sido recomendado por associado quite com suas obrigações sociais”. Entre tais obrigações, está a contribuição mensal, cujo valor é decidido a cada ano nas assembleias gerais do instituto.

Foto: Adobe Stock

Os alvos são os povos indígenas e tradicionais

O trabalho junto ao Congresso, Executivo e Judiciário é dividido em comissões temáticas, cada uma delas com um coordenador-geral e um suplente, ambos integrantes das associações de ruralistas, um coordenador político, geralmente um deputado federal, e um técnico responsável, profissional contratado do IPA. O Joio e O Trigo teve acesso a um documento inédito que mostra como funciona essa estrutura, que busca influenciar a tomada de decisões nos três poderes. No documento, constam quem são os líderes empresariais, técnicos e parlamentares que participam em cada um dos temas. O nome de uma dessas comissões, a de “Direito à Propriedade e Minorias” torna mais evidente quem são os alvos da atuação dos ruralistas: os povos indígenas e tradicionais, como os quilombolas. Uma das principais atividades do grupo é dificultar a demarcação de terras para estes povos. A coordenação desta comissão é dos produtores de soja.

Os dois lados opostos estiveram frente a frente na segunda semana de setembro, em Brasília. Os indígenas estavam acampados pelo menos desde o mês anterior na sua luta contra o marco temporal, que pode dificultar ainda mais a demarcação de terras e está sob análise do Supremo Tribunal Federal. Setores do agronegócio, apoiados por caminhoneiros ligados a eles, tomaram a Esplanada dos Ministérios na noite do dia 6 de setembro para participar, na manhã seguinte, dos atos antidemocráticos e em defesa do presidente Jair Bolsonaro, um grande defensor da tese do marco temporal e contrário a novas demarcações de terras. 

O marco temporal impõe que os indígenas só podem pleitear territórios onde comprovadamente estavam na promulgação da Constituição de 1988. Os críticos da proposta argumentam que o direito dos indígenas às terras já era previsto antes e também que a restrição beneficia quem os expulsou das terras com violência nos anos anteriores. 

Um dos principais alvos do grupo era justamente o STF, que foi atacado e sofreu tentativas de invasão. A questão do marco temporal foi um dos temas citados nos discursos. Não por acaso, a Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja) e seu presidente são investigados pelo Supremo como supostos financiadores dos atos. A entidade também participou do julgamento na Corte, com posição contrária aos direitos dos indígenas.

Ameaça à demarcação de terras indígenas

O comando de dois produtores de grãos na comissão que atua contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas não é por acaso. A expansão territorial da soja é uma das principais pressões contra os direitos de acesso à terra de povos originários e tradicionais.

O problema não é recente. Comunidades indígenas e quilombolas apontam diversos tipos de pressão relacionados à produção de soja em seus territórios, inclusive os que já estão demarcados. O cerco causa impactos ambientais, com a contaminação do solo e da água pelo uso de agrotóxicos. 

Há denúncias de que a pulverização aérea também atinge as aldeias, o que causa danos à saúde da comunidade. O cerco também atinge a segurança alimentar das comunidades, provocando a secagem de rios, a escassez de peixes e a redução de locais de caça e coleta.

Invasão de territórios

A preocupação não é só com problemas no entorno do território. Há denúncias de invasão de territórios para o plantio de grãos, inclusive com registros de sobreposição de terras demarcadas com fazendas destinadas à produção de grãos. Além da invasão de terras, a pressão vem de dentro dos territórios, com disputas por arrendamentos feitas pelo governo Bolsonaro e pela FPA. Os dois defendem a produção dentro das áreas indígenas.

Uma das formas que tem acontecido é por meio de arrendamentos, que muitas vezes causam conflitos internos nas comunidades indígenas. O Ministério Público Federal tem agido para conter os arrendamentos ilegais, inclusive exigindo de empresas que adquirem o produto para a exportação que façam rastreamento da cadeia para conter a ocupação irregular das terras. Apesar de atualmente ser proibida, a prática se tornou praxe em muitas regiões. 

O caso mais emblemático é do Mato Grosso, onde, apesar da ilegalidade, os indígenas parecis produzem em parceria com ruralistas há mais de 15 anos. Além deles, os manoki e nambikwara também estão envolvidos na monocultura da soja no estado.

A redução dos direitos trabalhistas e a redução dos casos em que é possível enquadrar violações como situação análoga ao trabalho escravo é outra das prioridades dos ruralistas no Congresso. Dentre eles, um setor mostra especial predileção pelo tema: a cadeia da carne. Tanto é que as associações dos exportadores de carne e dos frigoríficos estão na coordenação da comissão que trata de assuntos trabalhistas do Instituto Pensar Agro (IPA).

O principal ponto de interesse deles no projeto, do Senado, é garantir que “o mero descumprimento da legislação trabalhista não caracteriza trabalho escravo”, ou seja, diminuir as possibilidades de enquadramento atual do trabalho análogo à escravidão.

A preocupação obsessiva da pecuária em descaracterizar o trabalho escravo tem relação direta com a realidade, como mostra o relatório “Trabalho escravo na indústria da carne”, divulgado em janeiro deste ano pela Repórter Brasil. O documento mostra que “de acordo com dados do Governo Federal sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra, mais da metade dos casos de trabalho escravo flagrados no Brasil entre 1995 e 2020 aconteceram no setor da pecuária”. 

Os 1950 casos relacionados ao setor representam 51% do total. Também é a atividade da qual mais trabalhadores foram resgatados. “Foram 31% dos libertados, somando um total de 17.253 resgatados”, diz o documento. O trabalho mostra como fazendeiros flagrados na exploração de trabalho escravo continuavam como fornecedores para os grandes frigoríficos, inclusive pelos responsáveis pelas exportações brasileiras.

As más condições no setor não se restringem ao trabalho escravo no meio rural. O Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho de 2019 aponta quase 23 mil ocorrências nas linhas de abates de frangos, bovinos e suínos no ano, uma média de 62 registros por dia. Como mostra outra reportagem da Repórter Brasil, o setor está entre os dez com maior número de solicitações de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, entre 2012 e 2018. Foram 31 mil benefícios concedidos por problemas de saúde comprovadamente ligados ao ambiente de trabalho no período. O trabalho em baixas temperaturas, o esforço repetitivo e o uso constante de facas e serras estão entre as causas dos problemas.

A preocupação com o monitoramento de ações relacionadas à pandemia de Covid-19 também tem relação direta com o que aconteceu no setor. No ano passado, os frigoríficos foram apontados como um foco importante da aceleração da pandemia no interior do país. O fato de serem ambientes fechados, com funcionários trabalhando próximos na linha de produção, facilita naturalmente a proliferação do vírus. A falta de políticas de testagem, de equipamentos de proteção e de afastamento de pessoas que conviveram com casos positivos podem ter elevado os casos. Para complicar ainda mais, o ambiente refrigerado pode provocar ressecamento das vias aéreas e facilitar infecções.