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A pandemia dentro da pandemia:

Como a indústria de alimentos está destruindo a América Latina, e o que buscamos fazer para enfrentar as consequências

por Soledad Barruti e João Peres
Publicado em 29 junho 2020

Em março, dois fenômenos derrubaram nossa aparente normalidade: a pandemia por Covid-19 e o confinamento – por lei ou por vontade – determinado para frear a propagação do vírus. Se bem é óbvio que estão conectados, pensamos, experimentamos e sofremos como se fossem eventos paralelos. Esse aspecto se evidencia na alimentação de um modo particular. Porque assumimos que necessitamos estar saudáveis e, inclusive, elevar a imunidade, mas nossa estratégia para enfrentar a nova ameaça é – e foi desde o primeiro momento – ir aos supermercados para abastecer-se de produtos ultraprocessados. Ao mesmo tempo, deslocamos o consumo de frutas e verduras até a mínima expressão, como se o verdadeiro desafio fosse como sobreviver ao enclausuramento, e não ao vírus. 

Segundo dados da consultoria internacional Nielsen, desde que o coronavírus começou a se espalhar pela Argentina, a venda de sobremesas congeladas aumentou em 860%, e de carne em lata em 184%. No Peru, em 405% o peixe congelado e em 203% o enlatado. No Brasil, o consumo de pão industrializado avançou 52% nas primeiras semanas, e de embutidos defumados em 16%. No México, as vendas online dos principais supermercados cresceram 74%; no Brasil, segundo o CEO de uma das maiores redes, ao começo da quarentena foram sete dias como se fosse Natal.

Que não falte comida foi uma prioridade explícita para todos os governos da América Latina. Houve acordos com diferentes corporações para a doação de produtos, entrega de cestas básicas e créditos para abastecer-se nos supermercados. Mas até agora não houve nenhum programa de produção de alimentos frescos. Foram fechados mercados de produtores, criados obstáculos à venda de comida de rua e se impediu a chegada de produtores de províncias e povoados afastados dos centros urbanos. Na outra mão foi estimulada a propagação de Rappis e Uber Eats. Os aplicativos de entrega de comida, geralmente impulsionados por restaurantes e cadeias transnacionais, foram da marginalidade à imprescindibilidade de um dia para o outro.

Quem trabalha detrás desses aplicativos – migrantes, desempregados e jovens – se multiplica como fantasmas em bicicletas, com suas mochilas carregadas de hamburgueres, cruzando cidades vazias sob um sistema de vigilância cada vez mais rigoroso e empobrecedor. São um exemplo transparente do que significa a desigualdade: pessoas que colocam o corpo em risco para que outros não tenham de colocar; pessoas que pagam um, dois, três dólares para que sejam outros os que arriscam a vida. 

As compras do medo que brotam do egoísmo reativo do salve-se-quem-puder terão resultados indesejados para os comensais. A comida processada e ultraprocessada, que comem diariamente na clausura, inclui altas quantidades de açúcar, gorduras, sal, farinhas refinadas, aditivos e nutrientes artificiais. Ou seja, ingredientes que aumentam os riscos de padecer de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, hipertensão e câncer; que aumentam a mortalidade por coronavírus. 

A dupla Covid-19/confinamento também tem efeitos inesperados no campo. No Brasil, o desmatamento da Amazônia aumentou 60% (até aqui) com relação ao ano anterior. Na Argentina, os bosques nativos foram destruídos em tempo recorde. E na América Central os campos são rifados a preços funcionais ao avanço do agronegócio. 

Nós, jornalistas de Brasil, México, Argentina e Honduras, que vivemos em países ricos em natureza e em saberes; num continente no qual os camponeses produzem 70% dos alimentos frescos, saudáveis e culturalmente adequados; e onde os supermercados se multiplicam e se fazem onipresentes; em tempos de Covid-19 e de confinamento, pensamos ser urgente refletir sobre o conflito: o conflito entre os comestíveis que nos destroem e a comida real. Um fenômeno desigual que essa pandemia evidenciou de um modo particular, mas que também a extrapola. Uma guerra na qual estão envolvidos há alguns anos corporações transnacionais, governos, agricultores e consumidores que muitas vezes não têm – não temos – ideia do que está ocorrendo.

Escolhemos investigá-lo, narrá-lo, mostra-lo.

E, assim, criados bocado.

Uma rede de jornalistas da América Latina, desde o território, desde nossos campos, desde nossas cidades.

Uma rede de jornalistas que busca as conexões entre pratos, economia e política. 

Uma vontade de investigações comestíveis para cozinhar um presente mais rico, limpo e justo.