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As batalhas do octógono

por Kennia Velázquez México
fotos Kennia Velázquez
Publicado em 29 setembro 2020

Nos corredores dos supermercados, selos pretos começam a ser vistos em alguns alimentos. Selos que são adesivos colados, mas também são muito mais, uma marca inocultável. As pessoas olham, analisam. Há espanto e decepção ao ver que seus produtos favoritos têm um, dois, três, quatro octógonos que alertam para o excesso de açúcares, gorduras ou sódio! Rapidamente seu olhar se move para outra parte da prateleira, procurando opções.

A descoberta de conteúdo oculto em alimentos ultraprocessados, os chamados nutrientes críticos, provocou centenas ou talvez milhares de mensagens nas redes sociais. “Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é), e eu simplesmente troquei de opções, imediatamente. É fundamental que se advirta para a nocividade dos produtos”, diz um tweet de um pai, acompanhado de imagens de fritura marcadas com o novo padrão de rotulagem frontal adotado para alimentos no México.

E ele não é o único. Pessoas surpreendidas, não só por selos de comida-porcaria, mas por aqueles encontrados em produtos que, antes de terem rótulos, eram considerados saudáveis: barrinhas que geralmente são consumidas como merenda ou amaranto com chocolate, molhos de salada, produtos oferecidos para pessoas com diabetes que não contêm açúcar, mas são ricos em gorduras saturadas. Muitos alimentos que pareciam – ou eram vendidos como – saudáveis agora são marcados com octógonos.

Desde que teve início o confinamento pela pandemia, o subsecretário de Saúde, Hugo López Gatell, realiza conferências de imprensa diárias. Não há dia em que não mencione os efeitos adversos do consumo de ultraprocessados e refrigerantes – que chamou de “veneno engarrafado” – e como eles se relacionam com o novo coronavírus, que já levou à morte de mais de 75.000 mexicanos.

Suas declarações diárias levaram a debates raivosos nas redes sociais; colunistas criticaram a posição do subsecretário, a quem descrevem como “ideológico”. As câmaras empresariais disseram que seus produtos são estigmatizados e pediram que a medida que entrará em vigor em outubro seja restringida. Dizem que os rótulos causarão uma grande crise econômica, e ignoram a crise de saúde que já está no meio de nós. 

Os mexicanos estão discutindo o que comem e bebem. Debatem seu direito de conhecer e o papel do Estado na alimentação, questões que pelo menos até o início de 2020 não pareciam ter relevância, até a chegada tanto da Covid-19 quanto dos selos.

Mas o caminho até aqui não foi fácil. Em 2000, o chamado governo de alternância foi liderado pelo então presidente de direita Vicente Fox, ex-CEO da Coca-Cola, que, agradecido pelo apoio a sua campanha presidencial, retribuiu à corporação, e essa cresceu como nunca. Na administração do ex-presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018), a indústria de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas sentou-se na mesma mesa que os altos funcionários. E com isso impediram qualquer medida que abordasse a grave situação de obesidade e doenças crônicas, como um imposto mais forte sobre bebidas de alta caloria ou uma rotulagem clara.

Não só restringiram qualquer regulamentação, como investiram grandes somas no financiamento de “estudos científicos” que fizeram seus produtos parecerem inofensivos, e subsidiaram associações médicas que promovem esses itens, confundindo o consumidor que depende das recomendações de seu nutricionista. 

Eles foram mais longe, muito mais longe. Houve espionagem de ativistas independentes. Embora a participação direta das empresas ainda não tenha sido comprovada, é fato que do Estado e através do software – ou malware – Pegasus se espionou pessoas-chave na luta pelos impostos sobre bebidas açucaradas, em 2014. Luis Manuel Encarnación, então coordenador da coalizão Contrapesos, foi espionado; Alejandro Calvillo, diretor da organização El Poder del Consumidor; e Simón Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública. Calvillo e Barquera agora enfrentam ataques de associações de refrigerantes por promover os octógonos e falar sobre evidências científicas dos danos causados por tais bebidas.  

Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é)

Muitos alimentos que se vendiam como saudáveis agora estão marcados com os selos

Um problema de todos

O México é o maior consumidor de comida-porcaria da América Latina, o primeiro em obesidade infantil (e o segundo em adultos). Esse tipo de produto é encontrado em todos os lugares: na fila de caixas de supermercado, em todas as lojas dos bairros, nas escolas e até nas farmácias. Compre US$ 9 de gasolina e ganhe um saco de lanches”, “Por apenas 50 centavos a mais seu refrigerante cresce duas vezes mais”, são algumas das promoções que nos bombardeiam diariamente. O consumo desses produtos é tão normalizado que é inimaginável ter uma reunião sem ter três ou quatro garrafas de 3 litros de refrigerante e sacos gigantes de fritura.

O México tem um grande problema de alimentação. Agora, a partir de outubro, em teoria, todos os produtos que se encaixarem nos critérios devem ter selos em forma de octógono que alertam para o excesso de açúcar, gordura e sódio, mas também alertam sobre os riscos de crianças comerem produtos com cafeína e adoçantes. Um rótulo mais poderoso que seu antecessor, que começou no Chile em 2016. 

A gravidade do problema fez com que dois estados proibissem a venda de ultraprocessados e bebidas para menores; e a regulação pode se multiplicar em breve porque 17 legislativos locais, de províncias, estão estudando iniciativas semelhantes. Seria um avanço importantíssimo para os defensores da saúde pública, mas colocaria a indústria no mesmo nível de dano que o tabaco e o álcool.

Na América Latina, parece que foi necessário sofrer a pior pandemia da era moderna para que uma parte da população ouvisse avisos que já têm anos de história. Parece que agora, nos tempos de Covid, muitos ouvem o que há anos vêm alertando profissionais de saúde, ativistas e acadêmicos. Parece que só agora entendemos que a má dieta mata.

A Organização Pan-Americana da Saúde há muito alerta que a alta incidência de diabetes, hipertensão e doença renal coloca uma em cada três pessoas no continente – cerca de 186 milhões de latino-americanos – em risco de ficar gravemente doente por Covid-19. Outra grande comorbidade, o excesso de peso, que afeta 8% das crianças menores de 5 anos, 28% adolescentes, 53% dos homens e 61% das mulheres, deve figurar na lista. 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) informou que 82% das mortes na América Latina e no Caribe foram resultado de doenças cardiovasculares e câncer. Estima-se que existam 41 milhões de adultos com diabetes na região e metade não o conhece e, por isso, não pode ser adequadamente cuidado. Os óbitos atribuíveis aos altos níveis de glicemia aumentaram 8% na região entre 2010 e 2019.

Antes do SARS-CoV-2 colocar os sistemas de saúde do mundo em xeque, previa-se o que causaria o colapso seriam as doenças não transmissíveis. Mas foi a coexistência das pandemias que causou uma urgência ainda maior. 

O Chile foi o primeiro país latino-americano a definir alertas na rotulagem, em 2016. Três anos depois o consumo de bebidas açucaradas foi reduzido em 25%. O Peru foi o segundo. Um estudo indica que 37% dos habitantes de Lima deixaram de consumir produtos com octógonos. Em meio à quarentena, o Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Proteção da Propriedade Intelectual declarou como barreiras burocráticas ilegais os selos estabelecidos pelo Ministério da Saúde – com um claro dedo da indústria. 

O Uruguai está indo na mesma direção, embora com dificuldades. Os selos deveriam ser adotados em 1º de março, mas a mudança de governo adiou para fevereiro de 2021. Uma das razões é esperar que as normas de rotulagem sejam “harmonizadas” com outros países do Mercosul, embora ativistas denunciem que é uma prática dilatória, porque tais definições podem levar muitos anos.

Argentina e Brasil são dois países que tentam há anos adotar os rótulos. Assim como no Uruguai, a adesão ao Mercosul também serviu de pretexto na Argentina para não discutir a medida. Por que tanto esforço para frear essa decisão? “A rotulagem é uma porta de entrada, uma vez que você tem, você define quais produtos são saudáveis e quais não são”, explica Luciana Castronuovo, coordenadora da Fundação Interamericana do Coração da Argentina. Atualmente no país há 45 iniciativas em discussão em diversas áreas do governo.

O Brasil, um importante ator da região, trabalha há 6 anos no assunto. Lá atrás, também tentou aumentar o imposto sobre bebidas açucaradas, seguindo o exemplo do México, e regulamentar a publicidade, mas “a interferência da indústria impede o progresso sobre o tema”, lamenta Ana Paula Bortoletto, membro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Mas ainda tem esperanças: “Que mais países estejam trabalhando nisso pode ajudar a acelerar essas medidas na região, por exemplo, quando a rotulagem entra em vigor no Uruguai, é necessário discutir essas políticas porque isso ajudaria a reduzir as barreiras comerciais, as empresas são as mesmas que trabalham em nossos países.”

 

É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro

Um projeto de lei com a rotulagem chilena já foi apresentado na Costa Rica. Na República Dominicana, durante a campanha eleitoral, a Aliança pela Alimentação Saudável convocou os candidatos presidenciais a assumir o Compromisso com a Alimentação Saudável, que inclui, entre outras medidas, rotulagem correta. Na Colômbia, a Rede PaPaz pediu ao Estado uma rotulagem frontal e clara de advertência, iniciativa que está sendo analisada pelo Ministério da Saúde. A diretora da organização não governamental, Carolina Piñeiros, vê um interesse crescente dos colombianos em saber o que estão consumindo e há gradualmente mais legisladores que apoiam essas iniciativas. Além disso, a cidade de Bogotá está discutindo a proibição da venda de ultraprocessados e bebidas açucaradas nas escolas.

Como em um jogo de estratégia, a indústria pressiona. No entanto, a América Latina se move. Quando a rotulagem foi implementada no Chile, os fabricantes “pensaram que essa é a exceção, não será a regra”, lembra Enrique Jacoby, ex-vice-ministro da saúde do Peru. E em todos os países onde o assunto foi discutido, eles encontraram resistência. A indústria tem tentado evitar rótulos claros. É por isso que a batalha mexicana é fundamental: “A importância e a expectativa que a região tem com o México é que ela ajude a pender a balança. É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro.”

E a indústria luta contra tudo: durante o confinamento, aproveitou para comercializar a “doação” de seus produtos, materiais de higiene e equipamentos médicos. Pelo menos cem doações foram contabilizadas apenas no México. Enquanto tentam restringir impostos, rotulagem e quaisquer medidas de saúde, apresentam-se como empresas supostamente comprometidas com a saúde. Mais distópico do que a pandemia em si, as imagens de hoje em dia: Coca-Cola dando refrigerantes para médicos que cuidam de portadores de Covid, em estado grave por sofrer de diabetes, sobrepeso e obesidade.

Mas também há boas notícias de uma frente: as mídias sociais. Porque lá, aparentemente, a indústria está perdendo uma batalha. Até hoje não vi uma única mensagem de alguém lamentando que os selos tenham tirado a venda de seus olhos, e vi muitos comemorando que eles agora serão capazes de exercer seu direito de saber.