Boi, boiada e o fim da Amazônia

Soja, mineração e, acima de tudo, vacas. O agronegócio avança pelo Brasil como lava que devora a vida e ameaça não deixar nada em pé, a terminar pelo Amazonas. O matrimônio de interesses entre religião e política forja um projeto de poder rumo ao Brasil do século 19. Não é por acaso que o bolsonarismo tenha florescido a partir das zonas agropecuárias, arrebatando homens brancos de classe média

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México e Peru avançam na batalha contra o milho transgênico – e seus venenos

Por: Redação Bocado

2020 legou recordações sombrias para o mundo inteiro, mas no México terminou com gosto de esperança. No último dia do ano, o presidente do país, Andrés Manuel López Obrador, proibiu a plantação e o cultivo de milho transgênico e o herbicida que os acompanha – o glifosato.

Com isso, concretizou um dos avanços mais importantes da luta contra os transgênicos e estabeleceu que, desde a entrada em vigor do decreto até o último dia do seu mandato (em 31 de janeiro de 2024), se realizará um período de transição com o objetivo de “alcançar a substituição total do glifosato por alternativas mais sustentáveis e adequadas”. E colocou um ponto final às autorizações de plantios experimentais e plantações piloto, concedidas em 2009 pelo governo do ex-presidente Felipe Calderón.

Para ativistas rurais, indígenas, intelectuais e cozinheiros reunidos desde 2007 na campanha Sin Maíz No Hay País (Sem milho, o país não existe), as medidas são um grande passo para a preservação da soberania alimentar.

“O México produz 24,1 milhões de toneladas de milho branco em grão, destinadas à elaboração do principal alimento dos mexicanos, as tortillas”, explica ao Bocado o presidente da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade, Alejandro Espinoza Calderón.

“Dentro desse panorama, o decreto em questão é de suma importância, porque incide na produção do alimento a ser consumido pelo povo mexicano”, afirma o especialista, que vêm acompanhando de perto todo esse processo.

Em versão transgênica e em contato com o glifosato, o milho implica riscos. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, catalogou o glifosato como um provável carcinogênico em humanos e, após receber 125 mil processos, a Bayer-Monsanto teve que indenizar as vítimas dessa substância em 10 bilhões de dólares.

“No México, o glifosato é utilizado em uma grande variedade e quantidade de cultivos. Em grãos e cereais como milho, sorgo, arroz, trigo; oleaginosas como cártamo, girassol, soja; frutas como abacate, manga, goiaba, mamão, maçã, banana, laranja e vinhedos, só para mencionar alguns casos”, conta Calderón.

O decreto de López Obrador estabelece textualmente que, além de proibir, propõe-se buscar alternativas que “permitam manter a produção e que sejam seguras para a saúde humana e para a biodiversidade cultural do país e do ambiente”. Na seção “Desenvolvimento Sustentável” do Plano Nacional de Desenvolvimento 2019-2024 mexicano, existe um projeto que busca “alcançar a autossuficiência e a soberania alimentar”.

O México é um país com ampla biodiversidade, especialmente em relação ao teocintle – espécie mais popularmente conhecida como o antepassado do milho, a forma que o grão tinha há milhares de anos.

De acordo com a Comissão Nacional para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade, estima-se que haja no país 59 variedades nativas de milho.

Para o Greenpeace México, o decreto presidencial paga uma dívida histórica com a diversidade genética. Mas o Conselho Nacional Agropecuário do México expressou seu desagrado com a medida ao mencionar, em sua opinião, a desvantagem produtiva que a medida implica em comparação com outros países.

A decisão será implementada pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que vai coordenar e promover pesquisas científicas com objetivo de encontrar alternativas ao uso do glifosato, além de emitir recomendações anuais. Também vai impulsionar reformas constitucionais ao lado das secretarias de Meio Ambiente e Recursos Naturais, Saúde, e Agricultura e Desenvolvimento Rural.

Peru

A batalha pela defesa do milho nativo, e com ele da cultura do campo e da cultura alimentar em todo o país, também teve um grande triunfo no Peru em dezembro do ano passado: foi ampliada a moratória implementada em 2011, que impede o plantio de sementes modificadas geneticamente. Assim, se mantém a proibição de entrada no país e da produção de organismos vivos modificado (OVM) com o fim de “fortalecer as capacidades nacionais, desenvolver a infraestrutura e gerar linhas de base em relação à biodiversidade nativa, que permita uma avaliação adequada das atividades de liberação de OVM ao ambiente”.

Com isso, também ganhou 15 anos uma luta que parecia perdida em meados do ano passado, quando em plena pandemia o agronegócio quis aproveitar a conjuntura para derrubar a moratória.

“A estratégia do lobby Monsanto-Bayer foi dirigida ao interior do Estado, com a colocação, em cargos públicos, de especialistas próximos a eles. Por exemplo, na direção do Ministério de Agricultura e Riego, no Ministério do Ambiente e na Comissão Nacional para a Inovação e Capacitação no Agro, liderada por Alexander Grobman, presidente da PeruBiotech, uma empresa próxima do lobby pró-transgênico”, enumera Karla Gabaldoni, integrante da rede Slow Food no Peru e membro do Consórcio Agroecológico Peruano, à reportagem.

Gabaldoni elenca outras interferências: “A participação ativa da Bayer aconteceu por meio da intervenção direta no Regulamento Interno Setorial sobre Segurança da Biotecnologia, para o desenvolvimento de atividades com organismos vivos modificados no setor agrário, conhecido como Ribsa”. Também menciona a presença da empresa em entrevistas com outros órgãos públicos e meios de comunicação.

O Peru também é um país com uma tradição agrícola de mais de 10 mil anos e ampla biodiversidade. Só de batatas, conta com 4 mil variedades. A entrada de cultivos transgênicos põe em risco seu sistema alimentar, por isso encontra resistência maior no interior do país e nas cozinhas dos lares peruanos. “No Peru, 50% das crianças padecem de anemia e desnutrição”, afirma Gabaldoni. “O acesso a uma alimentação saudável e nutritiva com produção diversa local é necessária e urgente.”

Hoje a ampliação da moratória permite que o país continue a se desfazer, de forma paulatina, do uso de sementes geneticamente modificadas com o fim de preservar uma das culturas alimentares mais valiosas da humanidade.

Essas conquistas não significam que a ameaça desapareça – com a moratória em plena vigência, soube-se que em lugares como na província de Piura 63,1% dos cultivos haviam sido contaminados com genética da Monsanto e algo semelhante aconteceu ao longo dos anos em Estados mexicanos, apesar da vigência, desde 2013, de uma medida cautelar.

No entanto, decreto e moratória são um grande impulso aos ativismos em prol do bem viver e da soberania alimentar, que tanta falta fazem em todo o continente.

Rotulagem contra as doenças que nos matam

Em documento, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) cataloga a rotulagem frontal de advertências como um instrumento de política capaz de prevenir doenças não transmissíveis. Assim, o maior fator de invalidez e morte da região poderia encontrar na informação um antídoto seguro e de baixo custo. Se o lobby permitir, claro.

Por: Redação Bocado

Nas Américas, 44% das mortes têm como causa enfermidades que possuem relação com dietas pouco saudáveis, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas – organismo especializado no tema para o continente, e que é parte da Organização Mundial de Saúde – OMS – desde 1949). Ou seja, 4 em cada 10 latino-americanos morrem devido a doenças causadas por sua própria alimentação. “Se as pessoas não consumissem nenhum produto processado ou ultraprocessado, a alimentação seria muito melhor do que a que existe hoje em dia”, disse o médico e pesquisador Carlos Monteiro, integrante do Grupo Assessor de Especialistas em Recomendações de Nutrição da OMS, durante o evento organizado pela Opas.

No início deste mês, a organização realizou virtualmente o lançamento do documento “A rotulagem frontal como instrumento de política para prevenir doenças não transmissíveis na Região das Américas”. O evento teve duração de duas horas e foi dividido em cinco partes: as boas-vindas do diretor, a apresentação do documento, diálogo entre os expositores convidados, respostas às perguntas que surgiram durante a transmissão e palavras de encerramento.

O público foi muito ativo, tanto no fórum de comentários como no de perguntas e respostas. Foram enviadas 68 perguntas, cujas respostas haviam sido contempladas no completo documento elaborado pela instituição.

Durante o fórum virtual, a Opas apresentou um documento de 36 páginas, em que explica os sistemas de rotulagem existentes e o melhor perfil de nutrientes possível. O material também contém uma série de 13 prováveis perguntas frequentes, com possíveis argumentos contrários aos postulados da entidade e respostas. 

Carlos Monteiro assinalou, em várias ocasiões, que o sistema de rotulagem proposto pela Opas está diretamente associado com os critérios da OMS e corresponde à evidência científica mais sólida atualmente. Isso significa também que qualquer mudança feita pela OMS em suas recomendações de dieta em relação a nutrientes e níveis críticos geraria mudanças imediatas nos parâmetros de rotulagem da Opas.

Benn McGrady, oficial técnico legal do Departamento de Doenças Não Transmissíveis da OMS, insistiu em uma mensagem direta: move forward, ou seja, sigamos em frente, avancemos. De acordo com McGrady, devido à lentidão do processo (aproveitada por lobistas para tornar mais lenta também a aplicação de políticas públicas), é preciso prescindir do Codex Alimentarius (órgão da OMS que propõe uma coleção de normas, diretrizes e recomendações relacionadas com alimentos, produção e inocuidade). O técnico considera também que a harmonização muitas vezes exigida, por parte dos participantes de blocos – como o Mercosul -, não requer o diálogo de todos com todos, e que são suficientes as individualidades de cada país.

Após duas horas de exposições, debates e perguntas, os especialistas da Opas terminaram o evento enfatizando três pontos-chave: harmonização, direitos humanos e sustentação científica. Harmonização que aconteceria através de decisões individuais de cada país; inação por parte de alguns países, o que a entidade considera uma violação aos direitos humanos; e lei de rotulagem como expressão da evidência científica mais forte no momento.

A lei de rotulagem frontal de advertência, medida à qual se aventuraram vários países – Chile, Peru, Uruguai, mas que foi aplicada de forma mais aprofundada no México -, salva vidas. É uma garantia de direitos humanos e se baseia na melhor evidência científica disponível até agora, o que a leva a ter o aval da Organização Mundial da Saúde. Funciona. Por isso gera tanta resistência entre os que buscam defender os interesses das marcas e que baseiam grande parte do seu negócio em vender produtos desnecessários, que afetam a saúde – e sobre os quais seus consumidores são pouco ou nada informados.

Esse material espera ser uma ferramenta de consulta para divulgar por que é preciso avançar em políticas públicas de rotulagem frontal nos países onde elas não existem.

Veja o documento completo neste link: https://iris.paho.org/handle/10665.2/52740

Pão de mentira

Depende do Brasil o início de um experimento a céu aberto que poderia chegar em breve às nossas mesas. Já liberado na Argentina, o cultivo e a comercialização do trigo transgênico HB4 espera apenas o sinal verde da administração Bolsonaro para se tornar realidade. O experimento tem financiamento público, mas garante puro lucro para os mesmos de sempre.
Pode ser um marco na história da alimentação mundial: com o cereal modificado geneticamente, pela primeira vez seria produzida a farinha a alimentar milhões de pessoas. Farinha que faz o pão, ou o macarrão que tantos comem sem muitas outras alternativas para saciar a fome. Também ingrediente sutil, discretamente acrescentado na maioria dos produtos ultraprocessados.

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Fim do recreio para os ultraprocessados nas escolas de Yucatán

O México é o país que mais sofre os estragos do sistema alimentar, com uma população cada vez mais doente por conta do que come (e do que não come). Mas também é onde estão sendo aprovadas mais e melhores políticas públicas. Desde uma rotulagem clara em território nacional até a proibição de vender comidas e bebidas a crianças em sete Estados. A última medida é a “expulsão” dos ultraprocessados nas instituições de ensino de Yucatán.

Por: Redação Bocado

Os dados são alarmantes. Em Yucatán foram registrados casos de hipertensão arterial em crianças entre 6 e 12 anos, uma situação assustadora que fica ainda pior ao estar associada à taxa de obesidade. Porque, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o México é um dos países com maior índice de sobrepeso e obesidade no mundo — o sobrepeso atinge 70% da sua população —, e Yucatán, um dos 32 Estados mexicanos, é uma das regiões onde as estatísticas geram maior preocupação.

Para combater a obesidade, indica a OMS, é preciso começar desde cedo, porque as crianças com sobrepeso possuem maiores probabilidades de se tornarem adultos obesos. E no México a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição registrou um crescimento que oscila entre 7,8% e 9,7% em relação à prevalência de sobrepeso e obesidade em menores de cinco anos, entre 1988 e 2012.

A esse panorama inquietante somam-se outros dados: 1,2 milhão dos menores de 5 anos que moram no México apresentam anemia crônica, e 12,7% dessa população padece desnutrição crônica, segundo informações dos Serviços de Saúde de Yucatán (SSY) referentes ao período entre 2012 e 2018.

Desnutrição, anemia, hipertensão, obesidade e sobrepeso são fatores preocupantes, ainda mais no universo dos pré-escolares. Tanto que as autoridades aprovaram medidas importantes. Assim como deram luz verde a um sistema de rotulagem de alimentos em território nacional — e que aperfeiçoou seu antecedente chileno —, governantes de vários Estados mexicanos estão dando novos passos.

Em Yucatán, o congresso local reagiu frente aos dados. Em 26 de novembro, modificou sua Lei de Nutrição e Combate à Obesidade com um adendo taxativo: proibiu a distribuição, venda, oferecimento e abastecimento de alimentos e bebidas não alcoólicas com excesso de sódio, gorduras e açúcares nas escolas de nível pré-escolar e fundamental. Ou seja, proibiu que sejam entregues ultraprocessados a crianças menores de 12 anos.

A medida é importante porque a escola é a segunda casa de uma criança. É o que diz o Instituto Nacional de Saúde Pública, ao indicar que estudantes menores de idade consomem 50% das suas calorias diárias dentro do ambiente escolar.

Mas as mudanças impulsionadas pelo governo de Yucatán vão além: ordenam que as escolas de educação básica fomentem competições esportivas e bons hábitos alimentares; e que promovam o consumo de água potável ou a ingestão de produtos orgânicos cultivados pelos mesmos alunos (apesar de ser conhecida a realidade de que são poucas as escolas com bebedouros e ainda menos as que vendem frutas ou verduras). Outra nova regra determinada pela administração local é que os alunos do curso de nutrição possam colocar seus serviços à disposição da educação básica, com a possibilidade de realizar um acompanhamento pessoal dos alunos. O fim é prevenir casos de obesidade ou desnutrição e, se preciso for, tratá-los em tempo e forma.

Yucatán está deixando claro qual é o foco. Constatados seus altíssimos índices de obesidade, o combate a essa realidade com medidas concretas. Os objetivos são claros: conscientizar e proibir alimentos prejudiciais ao corpo desde cedo. Ou seja: formar pessoas saudáveis.

Ministério da Justiça exonera missionário da coordenação de índios isolados da Funai

O missionário Ricardo Lopes Dias foi exonerado hoje (27) da Coordenação de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), cargo que ocupou por apenas nove meses. Ligado à pastora Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, teve a gestão foi marcada por críticas de entidades indígenas e funcionários da Funai, e por disputas judiciais. 

Dias representava os interesses dos evangélicos que defendem uma mudança na política de proteção aos isolados, como mostra a série de reportagens publicadas por Bocado. O missionário atuou por 10 anos junto à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), no Vale do Javari, no Amazonas, que abriga a maior concentração de povos isolados do mundo. Para seu lugar, foi nomeado Marcelo Fernando Batista Torres, servidor de carreira que atuou no Acre com essas populações. 

Os servidores da Funai comemoram a queda de Dias. “Estamos felizes, temos expectativa de melhorar a situação, de que se componha uma equipe com experiência no ramo”, relatou um servidor. 

A queda do missionário, segundo fontes indigenistas ouvidas e que aceitaram falar sob condição de anonimato, está relacionada à pressão internacional em relação à Amazônia e à inépcia do governo brasileiro para lidar com os povos isolados e proteger os indígenas em meio à pandemia do Covid-19. “Ele virou um espantalho, odiado pela equipe da própria Funai”, afirma uma fonte do setor.

Fui obrigado a entrar na terra indígena com um missionário

“Fui obrigado a entrar na terra indígena com um missionário”, diz servidor da Funai

por Tatiana Merlino Brasil
Foto: Mário Vilela/Funai
Publicado em 27 novembro 2020

Após a eleição de Bolsonaro, biólogo encarregado de proteger isolados relata pressão de Funai, Magno Malta e Damares Alves para levar missionários a terra indígena: “Disseram que, se eu não quisesse, iriam providenciar alguém para fazer”

Entre 2010 e 2019, o biólogo Daniel Cangussu trabalhou como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Fundação Nacional do Índio (Funai), atuando na localização, proteção e monitoramento de povos isolados e de recente contato da região dos rios Madeira e Purus, no sul do estado do Amazonas, no Brasil. Trabalhou junto aos povos de recente contato Suruwahás e em ações de localização dos isolados do Hi-Merimã e de todos os demais isolados não identificados da região. 

A Funai é o órgão encarregado de toda a política indigenista no Brasil. A política de não contato com os indígenas e respeito ao isolamento voluntário foi instituída pelo governo brasileiro em 1987, em meio à elaboração da nova Constituição, que reconheceu uma série de direitos antes negados.

Embora Cangussu avalie que a Funai tivesse uma vigilância eficiente, o monitoramento do território Hi-Merimã sempre foi um desafio, porque a população é grande e se movimenta por uma área extensa. “E no entorno há muitos missionários vivendo e que querem evangelizar os isolados”, conta. “Nós tínhamos um controle grande da saúde dos funcionários quando atuávamos com os Suruwahás ou no território Hi-Merimã. Mas essa não é uma preocupação dos missionários.”

Acampamento Hi-Merimã | Foto: Daniel Cangussu

Cantos evangélicos

A coordenação da Funai encarregada dos povos isolados foi criada com o objetivo de garantir a proteção dos indígenas e das terras onde vivem, impedindo invasões. Atualmente, há o registro de 114 grupos de isolados, dos quais 28 estão confirmados — os demais estão sob investigação.

Quando Daniel começou a trabalhar na região, em 2010, anos antes havia sido feita uma retirada de missionários da terra onde vivem os Suruwahás. “A ausência da Funai fez com que essas pessoas se mantivessem lá. Até hoje os indígenas conhecem cantos evangélicos, falam sobre ‘jeshua’, referindo-se a Jesus.”

Em 2018, ele expulsou um missionário que havia entrado ilegalmente na terra Hi-Merimã. “Ele se sentiu confiante com a nova conjuntura [eleição de Bolsonaro] para fazer essa expedição.” A entrada ocorreu após Daniel organizar, a pedido dos próprios índios Jamamadi, uma ida até a terra indígena do povo vizinho. Logo depois, o missionário organizou outra expedição exatamente à mesma área. “Organizamos uma viagem oficial emergencial e o convidamos a sair. Foram instaurados um processo de acompanhamento do Ministério Público Federal e um processo administrativo interno da Funai”, conta. 

O missionário que entrou na terra, Steve Campbell, convive com os Jamamadi desde criança, quando chegou à região, em 1963, levado pelos pais, também missionários.   

Mapa do Complexo Territorial Médio Purus | Elaboração: CTI/Funai

Expedição com missionário

O servidor da Funai conta que o momento de maior tensão da sua vida profissional ocorreu um mês após Jair Bolsonaro vencer as eleições presidenciais de outubro de 2018. 

Daniel foi designado pelo presidente da Funai a organizar uma visita à terra indígena dos Suruwahá. O pedido era para que a comunidade recebesse uma visita de Muwaji Suruwahá, indígena que havia sido retirada da terra indígena pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) anos antes com o intuito de levar a filha para Brasília onde teria tratamento de saúde. Muwaji e sua filha nunca mais voltaram.

A visita, no entanto, não seria feita só por ela — já convertida em evangélica e integrante da Jovens com uma Missão (Jocum) — mas também por seus filhos e na companhia de um missionário da Jocum, Darci Azevedo Cunha. Anos antes, Darci havia morado na mesma terra indígena, antes de ser retirado por decisão do Ministério Público. 

A solicitação para a visita havia sido feita pelo então senador e pastor evangélico Magno Malta, que à época tinha como assessora a hoje ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. “Fui obrigado pelo presidente da Funai, por meio do assédio de Magno e Damares, a entrar na terra indígena com um missionário”, lamenta Daniel. Damares é fundadora da ONG Atini, investigada pelo Ministério Público Federal por tráfico e sequestro de crianças.

Ele conta que num primeiro momento se resistiu a organizar a visita. “Eu disse que estava há quase 10 anos fazendo o contrário [impedir a entrada de missionários nas terras indígenas]. E o que me disseram foi que, se eu não quisesse, iriam providenciar alguém para fazer.” 

A visita durou uma semana e foi tensa, na avaliação de Daniel. O missionário, que fala a língua dos Suruwahá, tinha conversas isoladamente com alguns deles. “Ficou um clima ruim. Foi ruim ter que usar a logística da Funai em prol dos missionários, por eu saber o que ele representava. Foi uma espécie de prenúncio do que iria acontecer depois”, diz, referindo-se à nomeação de Ricardo Dias para o cargo de chefe da coordenação responsável pelos povos isolados – o pastor assumiu a função no início de 2020, e foi exonerado no último dia 27. 

Presidente da Funai, Marcelo Xavier, em audiência com a Ministra Damares Alves | Foto: Willian Meira/MMFDH/Funai

Casa de conversão em Brasília

Muwaji vive hoje em Brasília com dois filhos, onde também moram outros indígenas retirados pela Sesai de outras terras e que nunca mais retornaram aos seus lares de origem. “Nessa casa moram indígenas formados para serem pastores”, explica o servidor. “A estratégia deles é: se não conseguem entrar nas terras com os missionários, entram com indígenas que se converteram, já que não se pode impedir a entrada de indígenas nas aldeias.”

Muwaji Suruwaha | Foto: Reprodução/Atini

O biólogo conta que teve conflitos com Damares e missionários durante nove anos, por conta das investidas em áreas de índios isolados ou de recente contato. E que ter de acompanhar um grupo dentro das malocas um mês após a eleição “foi um recado imediato”. 

Pouco após a expedição, no começo de 2019, Daniel pediu para ser transferido da sua função no sul do Amazonas. “Meu presidente [da Funai] é um delegado da Polícia Federal que nomeou um missionário para assumir a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. Nosso chefe é nosso principal rival. Essa é a única forma de eu explicar o que é ter um missionário chefiando essa política. É muito triste, coloca a gente na lama em todos os sentidos”, diz. “Se meia dúzia de índios for evangelizada, para eles valeu o preço, caso muitos morram.”