A China chegou

A China chegou

por Fermín Koop Montevideo y Buenos Aires, 2020
Publicado em 13 outubro 2020

Com 23% da população población mundial e só 7% das terras disponíveis para produzir alimentos, fome de carne e cada vez mais dinheiro, a China zarpou com destino a nós. Uma neoconquista que seduz com dólares, mas deixa territórios destruídos e povos cada vez mais pobres

Um labirinto de contêineres empilhados. Contêineres de muitas cores, formando uma espécie de mosaico, sem que se possa ver o que estão carregando. Barcos tão altos que não permitem avistar o rio. Tripulações de todo o mundo falando em línguas diferentes. Cheiro de peixe que invade tudo e chega ao terminal de cruzeiros próximo, onde os turistas estão. Acesso controlado, segurança e olhos que monitoram cada passo. Um terreno tão grande que, para cobrir tudo, é necessário usar o carro. O porto de Montevidéu, no Uruguai, está cheio de surpresas. 

Porque este pequeno país, com menos de quatro milhões de habitantes, tem um porto que poderia ser comparado ao Port Royal da Jamaica nos tempos dos piratas. Porque o porto de Montevidéu é hoje considerado o segundo em todo o mundo em transbordo de peixes suspeitos de serem obtidos ilegalmente. 

São toneladas de peixes e mariscos, mas também milhares de quilos de cocaína e até membros da tripulação mortos. Os dados, que soam como uma grande produção de ficção ao estilo de Hollywood, são na verdade informações verdadeiras e oficiais reveladas pelo governo uruguaio. Muita coisa acontece dentro deste porto com mais de 100 hectares e que funciona 24 horas por dia.

Aqui ancoram centenas de barcos pescando onde não deveriam, em travessias ilegais à procura de lulas, tubarões e outras espécies ameaçadas pela pesca excessiva.

Quais são esses barcos que viajam pelos mares da América Latina para pescar o que está proibido? Barcos chineses. 

Porque a China – um país com mais de um bilhão de habitantes – tem o dobro da média global de consumo de peixe per capita e já esgotou a maior parte dos recursos em seu território. Então, para encher os pratos, aproxima-se do Pacífico e do Atlântico com centenas de navios que se aproveitam dos abundantes recursos e da falta de controle nas águas latino-americanas. Não usam apenas o porto uruguaio, como muitos outros na região.

Mas pescar é apenas parte dessa história. Com um apetite voraz, a China vem aqui em busca de todos os tipos de alimentos para seus cidadãos, que representam 23% da população total do mundo. Porque não consegue produzir o que precisa, com apenas 14% de seu território adequado para a agricultura. Porque precisa alimentar sua classe média em expansão, que está mudando a dieta e quer cada vez mais carnes.

Além das centenas de barcos à procura de peixes ilegais, há milhares de outros navios chineses cruzando nossos mares legalmente. Milhares de barcos carregados com soja em todas as suas formas, carne bovina e suína, frutas, legumes, vinho e muitos outros produtos que viajam em enormes contêineres de um lado do mundo para o outro. 

É uma pequena lista do que vem e vai regularmente, porque nas últimas duas décadas a China tornou-se o principal parceiro comercial da maioria dos países da região.

“A China está procurando o melhor para sua população, mas aqui encontra alguém que abre a porta para isso”, diz Ariel Slipak, economista e professor da Universidade de Buenos Aires.

É que, à medida que a potência chega, atraída por abundantes recursos naturais e alimentares, os governos da região veem nela um credor e um investidor que moveu os já conhecidos Estados Unidos e a Europa. Independentemente da orientação política, todos os governos tornaram-se dependentes da China. 

E essa relação comercial não envolve apenas negócios: também mudou nossos modelos de produção. Consolidou a visão agroalimentar e extrativista que hoje caracteriza nossos países. Os preços recordes de alimentos, matérias-primas e uma rentabilidade extraordinária se encontraram com a reprimarização da economia e com conflitos ambientais e sociais, instalando uma dinâmica desigual. Ariel Slipak adverte: “A China está externalizando questões ambientais e sociais para países terceiros. Não estamos exportando apenas soja e carne para eles, mas também água e recursos naturais.” 

Este país pequeno, com menos de quatro milhões de habitantes, tem um porto que poderia ser comparado ao Port Royal, da Jamaica, nos tempos dos piratas

Segurança alimentar

A China sabe que não pode se alimentar sozinha. Tentou, mas acabou resignando seus planos à realidade. Em 1996, pretendia produzir 95% de todos os grãos e leguminosas necessários, mas, com sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, e uma relação comercial mais aberta, acabou repensando suas metas, abrindo-se para o comércio internacional de alimentos. Hoje essa meta de 95% passou a ser 80%, ciente de suas próprias limitações. 

“Gradualmente, a China começou a prover-se de um grande número de produtos agrícolas através do comércio internacional. Eles passaram por várias questões de eficiência, meio ambiente e produtividade”, explica Pablo Elverdin, coordenador de estratégia do Grupo de Países Produtores do Sul (GPS). 

É um país de grandes dimensões, bem como de grandes problemas. Tem apenas 7% da terra arável globalmente. E desse percentual menor, além disso, um terço está contaminado pelo uso excessivo de agrotóxicos.

É um país com produtividade agrícola muito baixa, com uma média de 60% de mecanização quando a Europa e os Estados Unidos estão em torno de 90%.

É um país que sofre com a falta de recursos hídricos para produzir alimentos. A quantidade de água disponível por pessoa por dia é inferior a 2 litros, e um quarto do que tem vai para a agricultura. 

Mas isso não é tudo. Entre o que pode produzir, a China também tem problemas. Especialmente doenças e pragas em seus animais e plantas. Um exemplo, o recente surto de peste suína africana que os levou a abater milhões de suínos desde 2019, com imagens que provocaram indignação global.

“A produção de gado moderno em larga escala é ambientalmente intensiva, e a China tem um ambiente vulnerável devido à sua alta densidade populacional, mesmo no ambiente rural, porque unidades industriais de menor escala não têm as instalações certas para proteger os animais contra doenças”, explica Holly Wang, pesquisadora da Universidade Purdue, nos Estados Unidos. 

Condições que se transformam em problemas, e grandes escândalos de segurança alimentar também atingiram o país. Em 2015, carne contrabandeada ilegalmente foi apreendida, algumas das quais com mais de 40 anos, em quantias no valor de US$ 483 milhões. Também foram detectados em restaurantes muitos casos de “óleo de esgoto”, ou seja, óleo ilegalmente usado e reciclado. Tais escândalos afetaram a confiança dos consumidores chineses em produtos alimentícios produzidos em seu próprio país; por isso, preferem os importados.

E assim a China tornou-se dependente das importações de alimentos, de US$ 14 bilhões em 2003 para US$ 104,6 bilhões em 2017. 642 vezes.  

A nova China e sua expansão

Entre os mais de um bilhão de pessoas da China, o consumo de cereais, grãos e leguminosas começou a diminuir, enquanto o consumo de carne, leite e outros produtos alimentícios não essenciais aumentou. Em 1980, 80% da dieta era à base de cereais, com 10% de consumo de carne e 10% de hortaliças e frutas. Mas hoje o cenário é muito diferente: apenas 40% da dieta é cereal, seguido por carne (30%) frutas e hortaliças (30%). 

O caso da soja é talvez o mais relevante. De 2000 a 2018, as importações passaram de US$ 2,3 bilhões para US$ 38 bilhões, tornando-a o maior importador mundial de soja por uma ampla margem. Comprando principalmente da América Latina e por uma razão que parece ilógica: a China compra soja para comer carne.

A especialista Margeret Myers explica: “A China tem uma quantidade limitada de terra e uma população em expansão. A classe média prefere comer carne, especialmente carne de porco e vaca. Isso desencadeou a demanda por soja, não para consumo direto, mas para o consumo animal, que a China reconhece que não pode atender nacionais”, diz a diretora do programa Ásia-América Latina do think tank Diálogo Interamericano. 

Mas a China não é apenas um comprador de alimentos da América Latina, é também um player muito forte em toda a cadeia agroalimentar da região. Aqui, as empresas agrícolas chinesas estão presentes há mais de duas décadas e, de várias maneiras, competindo lado a lado com os grandes dos Estados Unidos e da Europa, conhecidos como ABCD (Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company), que vendem todo o pacote para trabalhar a terra, de sementes a pesticidas. 

O governo do atual presidente chinês Xi Xinping encorajou empresas de seu país, muitas estatais, a expandir globalmente para garantir o fornecimento de soja (e outros produtos agrícolas) e também melhorar sua capacidade de controlar os preços dos alimentos. Um plano de investimento conhecido como “going out” ou “going global”. 

O primeiro caminho escolhido para o agronegócio latino-americano foi a compra de terras, como já haviam feito na África sem grandes problemas. Mas aqui a maioria das compras terminou em fracasso. Os investimentos foram rejeitados por organizações socioambientais porque os projetos violavam as leis de propriedade da terra. A quantidade de terra comprada por investidores chineses é incerta, com estimativas variando de 70 mil a 800 mil hectares. 

“A China precisa expandir sua capacidade de produção para além de suas fronteiras e opta por fazê-lo na América Latina e na África”, diz Ignacio Bartesaghi, especialista da Universidade Católica do Uruguai. “Enquanto na África entrou na terra, na América Latina está em toda a cadeia de produção e comercialização com grandes empresas, muitas empresas estatais.”

A China faz numerosos investimentos em sementes e na indústria agroquímica

O caso mais representativo foi a compra da Nidera, empresa transnacional doagronegócio, e da Noble, produtora latino-americana de soja, pela estatal chinesa COFCO em 2014 e 2016, respectivamente. 

A compra não foi coisa pouca. A Noble está presente no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai nos setores de soja, café, cana-de-açúcar, biodiesel e algodão, com uma infraestrutura logística bem desenvolvida. Enquanto a Nidera está principalmente na Argentina e no Brasil com grande capacidade de armazenamento e portos próprios para transportar grãos, fertilizantes.

Isso não é tudo. A China continua comprando empresas de processamento, bem como transporte, logística e marketing. Entre os destaques estão negócios da Estatal chinesa CGC com empresas brasileiras e argentinas como Molino Cañuelas (soja) e investimentos na região pelo Chongqing Grain Group, Sanhe e China National Heavy Machinery Corporation (infraestrutura agrícola). Também inúmeras compras e investimentos em sementes e na indústria de agroquímicos, um mercado-chave porque a China produz 40% do glifosato usado globalmente. A compra da Syngenta, uma das maiores empresas de agroquímicos do mundo, pela estatal ChemChina em 2017 foi fundamental nesse sentido.

“As empresas chinesas estão surgindo na cadeia de suprimentos agroindustriais da América Latina como players competitivos com empresas multinacionais”, diz a pesquisadora Holly Wang. “Soma-se a isso o investimento chinês no transporte de produtos agrícolas na região, o que reduz o custo comercial e retorna aos produtos mais competitivos do mercado global.” 

No sólo están comprando nuestros alimentos, también nuestros recursos hídricos, nutrientes de los suelos y bosques nativos

A marca

Além de ser comprador, na América Latina a China também se tornou a que empresta dinheiro. Seu papel como fonte de empréstimos e financiamentos aumentou significativamente, totalizando US $ 113 bilhões de 2003 até o presente. Os bancos chineses financiaram, por exemplo, redes rodoviárias e ferroviárias em toda a região: trens da Belgrano Cargas na Argentina; inúmeros projetos de máquinas agrícolas na Bolívia; hidrovias na Amazônia hoje controladas por empresas chinesas.

E suas compras trazem divisas, mas também pressionam o território, abrindo as portas para diversos conflitos sociais e ambientais. Porque eles não estão apenas comprando nossos alimentos, mas também nossos recursos hídricos, nutrientes de solos nativos e florestas. Mesmo produzindo o que precisa aqui para consumir lá, a China está gerando maiores emissões de gases de efeito estufa nos países da região. Contamina com as fábricas aqui e com a transferência transatlântica.

Para a Slipak, especialista em relações China-América Latina, a região precisa discutir outro modelo de desenvolvimento, que não significa necessariamente o agronegócio. “A indústria não importa, é tudo sobre ser os celeiros ou o supermercados do mundo.” 

A soja é, sem dúvida, a coisa mais importante para a China e também um dos pontos de maior conflito. As compras de produtores da nossa região têm crescido sem parar desde 1996 e agora representam uma média de quase 60% de todas as importações chinesas dessa oleaginosa. Milhares de toneladas de soja viajam pelo mar para o leste. E sete em cada dez quilos saíram do Brasil, em quantidades menores da Argentina e uruguaia. 

Vão-se os barcos com grãos, ficam os problemas. No Brasil, a organização Trase revelou que as importações chinesas de soja brasileira causaram desmatamento de 223 mil hectares entre 2013 e 2017, o equivalente a uma área com o dobro do tamanho da cidade de Nova York. Centenas de empresas participam da cadeia produtiva brasileira da soja, mas apenas seis concentram 70% do volume exportado da região do Matopiba: Agrex, Amaggi, LD Commodities, Multigrain, Cargill, Bunge e ADM. Quer dizer, multinacionais. Dinheiro que não fica no país. Mesmo entre os maiores exportadores de soja para a China, com uma participação de 7%, há uma empresa… chinesa! (COFCO).

“A soja é o principal produto agrícola que a região exporta para a China e, portanto, há quase uma ‘dependência mútua’ entre o país asiático e os países da América do Sul”, diz Maria Eugenia Giraudo, pesquisadora da Universidade de Durham, na Inglaterra. “Uma maior presença na região permite aumentar a interdependência entre os dois e ter maior acesso aos recursos produzidos na região.” Ou seja, uma espiral que parece não ter fim: cresce e cresce.

E no mesmo caminho da soja vai a carne brasileira. Porque 44% da carne bovina que a China compra vem do Brasil. Bifes, cortes e milanesas que saem principalmente, em 70%, de duas regiões, Amazonas e Cerrado, onde a expansão agrícola envolve cada vez mais desmatamento. Árvores são cortadas para colocar vacas. A biodiversidade é perdida e as emissões de gases de efeito estufa aumentam.

Em 2017, o Brasil exportou 1,4 milhão de toneladas de carne para diversos países. A carne produzida, segundo estimativas da ONG Trase, causou o desmatamento de 65 mil a 75 mil hectares de florestas nativas, das quais 22 mil correspondem exclusivamente aos embarques para a China. Para que a população chinesa desfrute de pratos com bons bifes, o Brasil sacrifica suas florestas. E a maior perda foi na região amazônica, onde funcionam dezenas de matadouros. 

Os problemas se repetem em outros países. Na Argentina, organizações sociais e ambientais alertam para um projeto de acordo comercial com a China que dobraria a produção de carne suína. O plano é instalar 25 plantas de produção no norte da Argentina para gerar 900 mil toneladas de carne por ano. Isso dobraria as emissões de gases de efeito estufa do setor, demandaria 12 bilhões de litros de água potável e, certamente, como no Brasil, significaria desmatamento de florestas nativas. 

“A instalação dessas fazendas de suínos nas províncias que mais desmataram nas últimas décadas gerará ainda mais pressão sobre as florestas, pois aumentará significativamente a demanda por milho e soja para alimentá-las”, diz Hernán Giardini, especialista florestal e membro do Greenpeace. “Vai na contramão das medidas necessárias para lidar com a crise sanitária e climática.”

Em 1980, 80% da dieta estava baseada em cereais. Mas, hoje, as carnes são 30%

À espreita

A água é a outra fronteira extrativista para a China na América Latina, e muito importante. Nas últimas décadas, a atividade pesqueira da China expandiu-se globalmente: sua frota de barcos aquáticos distantes passou de 1.830 em 2012 para quase 3.000 hoje. 

A China vê a pesca como uma indústria estratégica e, portanto, subsidia o combustível de seus barcos de água distante, que estão ficando maiores e funcionam virtualmente como fábricas flutuantes.

Pelos mares do mundo, nestas chamadas “águas distantes”, os navios de bandeira vermelha buscam acima de tudo a lula, que é então consumida na China, mas também exportada para os Estados Unidos e europa. 

Milko Schvartzman, especialista em conservação marinha, estima que existam mais de 300 barcos no Pacífico Sul, todos chineses, em picos da temporada de pesca, enquanto há mais de 500, a maioria chineses, no Atlântico Sul. Os governos da região não lhes concedem licenças de pesca, mas tampouco colocam qualquer freio. Por isso, os barcos muitas vezes se movem fora das fronteiras nacionais. Mesmo quando a vigilância é baixa, eles quebram essas fronteiras imaginárias sobre a água e competem com as frotas nacionais.

“É impossível controlar navios remotamente, mesmo através de satélites, à medida que desconectam seus sistemas de rastreamento. Você tem que estar no local e isso custa milhões aos governos”, explica Schvartzman. É por isso que os navios chineses “não respeitam a área permitida ou a época certa. Eles começam a trabalhar em dezembro, quando a frota argentina é autorizada a partir de janeiro.”

Em 2019, a empresa chinesa Shandong BaoMa aumentou as apostas. Tentou instalar um porto privado no Uruguai, um lugar onde poderia receber mais de 500 navios fora do controle do governo local. O projeto, que custaria cerca de US$ 200 milhões, previa o desenvolvimento de uma zona livre com porto, estaleiro e planta para processamento e peixes congelados. Não foi concretizado, está suspenso por alegações de organizações socioambientais. Suspenso… pelo menos por enquanto.

Ao longo da costa do Equador, 340 navios chineses atualmente circundam as Ilhas Galápagos principalmente em busca de lulas. Eles cercam o arquipélago de 12 ilhas que é mundialmente famosa por sua importância ecológica: a segunda reserva marinha mais importante do planeta, declarada Patrimônio Mundial pela Unesco. Mas na visão dos pescadores chineses há apenas uma área de recursos abundantes para a confluência das correntes marítimas. Uma área onde você pode capturar muitas lulas para que se transformem em pratos diversos a milhares de quilômetros de distância. 

Em 2017, um navio chinês foi capturado dentro da zona de proteção marítima de Galápagos. Dentro de seu congelador havia 7.200 tubarões e outras espécies ameaçadas de extinção. Enquanto a frota chinesa agora parece não estar pescando dentro dos limites do Equador, sua mera presença e atividade impactam a área, já que a lula é uma parte vital da cadeia alimentar marinha. 

“Há mais controles no hemisfério norte e é por isso que os navios chineses não estão lá”, diz o especialista Milko Schvartzman. “Eles vêm para a América Latina por falta de vontade política dos governos, por menos controles e por limitação de recursos.” 

Navios chineses espreitam, como se esperassem para atacar. Parecem dormindo ou distraídos, mas não estão. Eles perseguem o tempo todo, aproveitando-se das regras ou controles sem regras. Enquanto isso, os recursos estão acabando. 

Não só o peixe. Os nutrientes do solo, a pureza dos rios e a beleza das florestas nativas da América Latina também estão acabando. 

A indústria de comida-porcaria é uma ameaça à democracia?

Por João Peres, de Bocado

Um documento lançado pelo Colectivo de Abogados José Alvear Restrepo, da Colômbia, e pela organização El Poder del Consumidor, do México, não tem dúvidas em afirmar: sim, as fabricantes de ultraprocessados ameaçam a democracia ao frear a ação do Estado em políticas públicas que podem salvar vidas. 

“La interferencia de la industria es nociva para la salud” é um estudo no qual as organizações passam a limpo as estratégias adotadas por corporações como Coca-Cola, Nestlé, Pepsico, Bimbo e Danone nos países que criaram sistemas de alerta sobre o excesso de nutrientes críticos, como sal, gorduras e açúcar. 

Não é acaso que esse modelo tenha sido criado no Chile e desde então sido analisado por outros países da América Latina: a região tem uma das situações mais graves no que diz respeito ao avanço das doenças crônicas (diabetes, doenças cardiovasculares, câncer) desde os anos 1990. Desde a última década, os governos têm buscado medidas para desencorajar o consumo de ultraprocessados e incentivar culinárias tradicionais, com base em alimentos frescos. 

O documento estabelece um pressuposto importante: “A indústria, apoiada em seu poder econômico e sua influência social e política, passou de ser um ator econômico a um interlocutor autorizado, apesar de sua ausência de credenciais confiáveis, em matéria de saúde pública.” Disso decorrem dilemas éticos e políticas públicas incoerentes, como a que está sendo adotada esta semana no Brasil. 

No es casualidad que ese modelo haya sido creado en Chile y desde entonces haya sido analizado por otros países de América Latina (Foto: Miguel Tovar. Bocado)

Desde o início da discussão sobre a criação de um novo sistema de rotulagem frontal, em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) colocou na mesma mesa pesquisadores em saúde pública, organizações não governamentais e fabricantes de ultraprocessados. O perigo dessa igualdade hierárquica ficou mais e mais evidente ao longo dos anos, quando a Anvisa acabou se posicionando no meio do caminho entre as pressões privadas e a saúde pública. Ao final, tudo indica que o país terá um sistema de rotulagem que não está baseado nas melhores evidências científicas, e que não sabemos se funcionará na prática.

Mas o documento lançado esta semana fala sobre quem conseguiu levar adiante a medida, e não sobre quem falhou na implementação – esse, aliás, seria um ótimo desdobramento, analisando países como Argentina e Brasil. Olhando para Chile, Peru, Uruguai e México, o estudo lista onze estratégias utilizadas para frear, retardar ou enfraquecer a ação do poder público no que diz respeito à rotulagem. 

Não valeria a pena ser exaustivo nas práticas adotadas, que podem ser conferidas em resumo entre as páginas 72 e 75. Destaco aqui alguns dos casos mais interessantes.

  • Na Colômbia, o projeto de lei voltado à adoção do sistema de alertas já está na terceira tentativa de tramitação. Os parlamentares simplesmente não permitem que a proposta avance. O documento mostra como a indústria de bebidas açucaradas se tornou a principal financiadora eleitoral dos maiores partidos políticos.
  • Fale com o presidente. Na Colômbia, destaca o estudo, o acesso da indústria a Ivan Duque foi fundamental. No Uruguai, Luis Lacalle firmou um decreto no qual retarda a adoção dos selos, que deveria ter sido iniciada em março. Acréscimo por minha conta: em 2018, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) acionou diretamente Michel Temer, e conseguiu duas reuniões em dois dias, o que é um feito notável em se tratando de um presidente da República. Na época, Temer ameaçou intervir, o que afeta a autonomia administrativa garantida à Anvisa.
  • No Peru, houve uma tentativa de aprovar uma nova lei, derrubando a adoção de alertas em prol de um sistema mais fraco, de interesse da indústria. A ofensiva foi coordenada por Keiko Fujimori, do partido majoritário Congreso Fuerza Popular, que foi diretamente ao presidente Martin Vizcarra. Uma situação autoexplicativa: se Fujimori é a líder do seu braço de lobby, isso diz muito sobre quem você é. 
  • “Coca-Cola é uma das empresas mais ativas no bloqueio das políticas de saúde que podem afetar os interesses da indústria de comestíveis ultraprocessados e as bebidas açucaradas. No caso do México, é sumamente ativa e suas ações se potencializam em sua aliança com FEMSA, a engarrafadora de Coca-Cola maior no mundo.”
  • O uso de ameaças econômicas é um eixo comum a todos os países analisados. Argumenta-se que a medida viola as regras de livre comércio previstas pela Organização Mundial de Comércio, mesmo que esta já tenha dito que cada país tem autonomia para definir a própria rotulagem. O uso do Mercosul para pressionar o Uruguai é narrado em uma série de vídeos que publicamos em nosso canal no YouTube.

Para além do relato sobre interferências, o documento postula uma agenda concreta para prevenir o problema. E essa é uma das partes mais interessantes, sem dúvida, porque responde à questão inicial: trata-se de um conjunto de medidas que recolocam a indústria no papel de setor regulado, e não de formulador das próprias regras. 

“A falta de controle sobre as atividades de lobby para favorecer o lucro privado, a possibilidade de levar a cabo reuniões a portas fechadas e sem registro, a possibilidade de financiar campanhas políticas, a falta de regulação às portas giratórias, ou a contratação de grandes empresas de advogados com estratégias legais em grande escala contribuem a gerar ambientes propícios para que as más práticas da indústria fiquem na impunidade ou sejam desconhecidas para o grosso da população.” 

O documento apresenta medidas que deveriam ser tomadas por deputados e senadores; ministros, secretários e presidente da República; juízes e promotores, na tentativa de evitar a ação indevida da indústria. Uma das recomendações mais interessantes é a adoção de um protocolo de relacionamento com os fabricantes de ultraprocessados que dê transparência a essa questão. Entre outras, prevê que:

  • ex-funcionários privados que agora ocupam cargos públicos não se envolvam na discussão de medidas de interesse do setor
  • não se compareça a eventos promovidos pela indústria para discutir políticas públicas
  • exista registro escrito de qualquer integração com agentes privados, deixando clara a intenção da conversa

É difícil encontrar, entre as recomendações, um ponto no qual a Anvisa, do Brasil, não tenha falhado. Diretores e integrantes da Gerência-Geral de Alimentos participaram de uma série de eventos promovidos pelo setor privado. Tiveram reuniões a portas fechadas cujo teor só foi revelado porque conseguimos acesso às atas – em uma delas, um ex-diretor acenava com a possibilidade de adotar um sistema de preferência das corporações, algo que nunca havia dito em público. 

Por trás de toda a agenda de recomendações existe um passo simbólico que parece difícil de dar em boa parte dos países da América Latina: desnaturalizar o poder das corporações de moldar a ação do Estado. Vários de nossos governos estão repletos de agentes que migraram diretamente de empresas a cargos estratégicos de interesse do setor para o qual trabalhavam. A lógica de que essas forças privadas são espontaneamente benéficas e de que todos temos de atuar em conjunto para sair do atoleiro está profundamente arraigada em nossas sociedades.  

As batalhas do octógono

As batalhas do octógono

por Kennia Velázquez México
fotos Kennia Velázquez
Publicado em 29 setembro 2020

Nos corredores dos supermercados, selos pretos começam a ser vistos em alguns alimentos. Selos que são adesivos colados, mas também são muito mais, uma marca inocultável. As pessoas olham, analisam. Há espanto e decepção ao ver que seus produtos favoritos têm um, dois, três, quatro octógonos que alertam para o excesso de açúcares, gorduras ou sódio! Rapidamente seu olhar se move para outra parte da prateleira, procurando opções.

A descoberta de conteúdo oculto em alimentos ultraprocessados, os chamados nutrientes críticos, provocou centenas ou talvez milhares de mensagens nas redes sociais. “Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é), e eu simplesmente troquei de opções, imediatamente. É fundamental que se advirta para a nocividade dos produtos”, diz um tweet de um pai, acompanhado de imagens de fritura marcadas com o novo padrão de rotulagem frontal adotado para alimentos no México.

E ele não é o único. Pessoas surpreendidas, não só por selos de comida-porcaria, mas por aqueles encontrados em produtos que, antes de terem rótulos, eram considerados saudáveis: barrinhas que geralmente são consumidas como merenda ou amaranto com chocolate, molhos de salada, produtos oferecidos para pessoas com diabetes que não contêm açúcar, mas são ricos em gorduras saturadas. Muitos alimentos que pareciam – ou eram vendidos como – saudáveis agora são marcados com octógonos.

Desde que teve início o confinamento pela pandemia, o subsecretário de Saúde, Hugo López Gatell, realiza conferências de imprensa diárias. Não há dia em que não mencione os efeitos adversos do consumo de ultraprocessados e refrigerantes – que chamou de “veneno engarrafado” – e como eles se relacionam com o novo coronavírus, que já levou à morte de mais de 75.000 mexicanos.

Suas declarações diárias levaram a debates raivosos nas redes sociais; colunistas criticaram a posição do subsecretário, a quem descrevem como “ideológico”. As câmaras empresariais disseram que seus produtos são estigmatizados e pediram que a medida que entrará em vigor em outubro seja restringida. Dizem que os rótulos causarão uma grande crise econômica, e ignoram a crise de saúde que já está no meio de nós. 

Os mexicanos estão discutindo o que comem e bebem. Debatem seu direito de conhecer e o papel do Estado na alimentação, questões que pelo menos até o início de 2020 não pareciam ter relevância, até a chegada tanto da Covid-19 quanto dos selos.

Mas o caminho até aqui não foi fácil. Em 2000, o chamado governo de alternância foi liderado pelo então presidente de direita Vicente Fox, ex-CEO da Coca-Cola, que, agradecido pelo apoio a sua campanha presidencial, retribuiu à corporação, e essa cresceu como nunca. Na administração do ex-presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018), a indústria de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas sentou-se na mesma mesa que os altos funcionários. E com isso impediram qualquer medida que abordasse a grave situação de obesidade e doenças crônicas, como um imposto mais forte sobre bebidas de alta caloria ou uma rotulagem clara.

Não só restringiram qualquer regulamentação, como investiram grandes somas no financiamento de “estudos científicos” que fizeram seus produtos parecerem inofensivos, e subsidiaram associações médicas que promovem esses itens, confundindo o consumidor que depende das recomendações de seu nutricionista. 

Eles foram mais longe, muito mais longe. Houve espionagem de ativistas independentes. Embora a participação direta das empresas ainda não tenha sido comprovada, é fato que do Estado e através do software – ou malware – Pegasus se espionou pessoas-chave na luta pelos impostos sobre bebidas açucaradas, em 2014. Luis Manuel Encarnación, então coordenador da coalizão Contrapesos, foi espionado; Alejandro Calvillo, diretor da organização El Poder del Consumidor; e Simón Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública. Calvillo e Barquera agora enfrentam ataques de associações de refrigerantes por promover os octógonos e falar sobre evidências científicas dos danos causados por tais bebidas.  

Esse aviso me fez reagir como se fosse veneno para minha garota (que na verdade é)

Muitos alimentos que se vendiam como saudáveis agora estão marcados com os selos

Um problema de todos

O México é o maior consumidor de comida-porcaria da América Latina, o primeiro em obesidade infantil (e o segundo em adultos). Esse tipo de produto é encontrado em todos os lugares: na fila de caixas de supermercado, em todas as lojas dos bairros, nas escolas e até nas farmácias. Compre US$ 9 de gasolina e ganhe um saco de lanches”, “Por apenas 50 centavos a mais seu refrigerante cresce duas vezes mais”, são algumas das promoções que nos bombardeiam diariamente. O consumo desses produtos é tão normalizado que é inimaginável ter uma reunião sem ter três ou quatro garrafas de 3 litros de refrigerante e sacos gigantes de fritura.

O México tem um grande problema de alimentação. Agora, a partir de outubro, em teoria, todos os produtos que se encaixarem nos critérios devem ter selos em forma de octógono que alertam para o excesso de açúcar, gordura e sódio, mas também alertam sobre os riscos de crianças comerem produtos com cafeína e adoçantes. Um rótulo mais poderoso que seu antecessor, que começou no Chile em 2016. 

A gravidade do problema fez com que dois estados proibissem a venda de ultraprocessados e bebidas para menores; e a regulação pode se multiplicar em breve porque 17 legislativos locais, de províncias, estão estudando iniciativas semelhantes. Seria um avanço importantíssimo para os defensores da saúde pública, mas colocaria a indústria no mesmo nível de dano que o tabaco e o álcool.

Na América Latina, parece que foi necessário sofrer a pior pandemia da era moderna para que uma parte da população ouvisse avisos que já têm anos de história. Parece que agora, nos tempos de Covid, muitos ouvem o que há anos vêm alertando profissionais de saúde, ativistas e acadêmicos. Parece que só agora entendemos que a má dieta mata.

A Organização Pan-Americana da Saúde há muito alerta que a alta incidência de diabetes, hipertensão e doença renal coloca uma em cada três pessoas no continente – cerca de 186 milhões de latino-americanos – em risco de ficar gravemente doente por Covid-19. Outra grande comorbidade, o excesso de peso, que afeta 8% das crianças menores de 5 anos, 28% adolescentes, 53% dos homens e 61% das mulheres, deve figurar na lista. 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) informou que 82% das mortes na América Latina e no Caribe foram resultado de doenças cardiovasculares e câncer. Estima-se que existam 41 milhões de adultos com diabetes na região e metade não o conhece e, por isso, não pode ser adequadamente cuidado. Os óbitos atribuíveis aos altos níveis de glicemia aumentaram 8% na região entre 2010 e 2019.

Antes do SARS-CoV-2 colocar os sistemas de saúde do mundo em xeque, previa-se o que causaria o colapso seriam as doenças não transmissíveis. Mas foi a coexistência das pandemias que causou uma urgência ainda maior. 

O Chile foi o primeiro país latino-americano a definir alertas na rotulagem, em 2016. Três anos depois o consumo de bebidas açucaradas foi reduzido em 25%. O Peru foi o segundo. Um estudo indica que 37% dos habitantes de Lima deixaram de consumir produtos com octógonos. Em meio à quarentena, o Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Proteção da Propriedade Intelectual declarou como barreiras burocráticas ilegais os selos estabelecidos pelo Ministério da Saúde – com um claro dedo da indústria. 

O Uruguai está indo na mesma direção, embora com dificuldades. Os selos deveriam ser adotados em 1º de março, mas a mudança de governo adiou para fevereiro de 2021. Uma das razões é esperar que as normas de rotulagem sejam “harmonizadas” com outros países do Mercosul, embora ativistas denunciem que é uma prática dilatória, porque tais definições podem levar muitos anos.

Argentina e Brasil são dois países que tentam há anos adotar os rótulos. Assim como no Uruguai, a adesão ao Mercosul também serviu de pretexto na Argentina para não discutir a medida. Por que tanto esforço para frear essa decisão? “A rotulagem é uma porta de entrada, uma vez que você tem, você define quais produtos são saudáveis e quais não são”, explica Luciana Castronuovo, coordenadora da Fundação Interamericana do Coração da Argentina. Atualmente no país há 45 iniciativas em discussão em diversas áreas do governo.

O Brasil, um importante ator da região, trabalha há 6 anos no assunto. Lá atrás, também tentou aumentar o imposto sobre bebidas açucaradas, seguindo o exemplo do México, e regulamentar a publicidade, mas “a interferência da indústria impede o progresso sobre o tema”, lamenta Ana Paula Bortoletto, membro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Mas ainda tem esperanças: “Que mais países estejam trabalhando nisso pode ajudar a acelerar essas medidas na região, por exemplo, quando a rotulagem entra em vigor no Uruguai, é necessário discutir essas políticas porque isso ajudaria a reduzir as barreiras comerciais, as empresas são as mesmas que trabalham em nossos países.”

 

É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro

Um projeto de lei com a rotulagem chilena já foi apresentado na Costa Rica. Na República Dominicana, durante a campanha eleitoral, a Aliança pela Alimentação Saudável convocou os candidatos presidenciais a assumir o Compromisso com a Alimentação Saudável, que inclui, entre outras medidas, rotulagem correta. Na Colômbia, a Rede PaPaz pediu ao Estado uma rotulagem frontal e clara de advertência, iniciativa que está sendo analisada pelo Ministério da Saúde. A diretora da organização não governamental, Carolina Piñeiros, vê um interesse crescente dos colombianos em saber o que estão consumindo e há gradualmente mais legisladores que apoiam essas iniciativas. Além disso, a cidade de Bogotá está discutindo a proibição da venda de ultraprocessados e bebidas açucaradas nas escolas.

Como em um jogo de estratégia, a indústria pressiona. No entanto, a América Latina se move. Quando a rotulagem foi implementada no Chile, os fabricantes “pensaram que essa é a exceção, não será a regra”, lembra Enrique Jacoby, ex-vice-ministro da saúde do Peru. E em todos os países onde o assunto foi discutido, eles encontraram resistência. A indústria tem tentado evitar rótulos claros. É por isso que a batalha mexicana é fundamental: “A importância e a expectativa que a região tem com o México é que ela ajude a pender a balança. É uma batalha muito grande para a indústria mundial, se a América Latina adota essa estratégia é algo muito sério para o mundo inteiro.”

E a indústria luta contra tudo: durante o confinamento, aproveitou para comercializar a “doação” de seus produtos, materiais de higiene e equipamentos médicos. Pelo menos cem doações foram contabilizadas apenas no México. Enquanto tentam restringir impostos, rotulagem e quaisquer medidas de saúde, apresentam-se como empresas supostamente comprometidas com a saúde. Mais distópico do que a pandemia em si, as imagens de hoje em dia: Coca-Cola dando refrigerantes para médicos que cuidam de portadores de Covid, em estado grave por sofrer de diabetes, sobrepeso e obesidade.

Mas também há boas notícias de uma frente: as mídias sociais. Porque lá, aparentemente, a indústria está perdendo uma batalha. Até hoje não vi uma única mensagem de alguém lamentando que os selos tenham tirado a venda de seus olhos, e vi muitos comemorando que eles agora serão capazes de exercer seu direito de saber.

 

O iogurte, essa coisa capaz de extinguir tudo

O iogurte, essa coisa capaz de extinguir tudo

por Marina Ayzen Argentina
Publicado em 9 setembro 2020

Nutrientes agregados, doações de milhões de produtos, expansão dos negócios com o Estado: a indústria láctea se reorganizou na pandemia fantasiando os negócios de ação social, enquanto esconde como os métodos produtivos destroem territórios e armam o cenário para a produção de novas pandemias 

“Um iogurte todo dia é saúde-saúde. Alimente-se com vontade de viver”. Esse é um jingle dos anos 1980 da La Serenísima, a maior indústria láctea da Argentina, cuja divisão de iogurtes, queijos e sobremesas está hoje nas mãos da multinacional Danone. 

O jingle é pegajoso. Não só pela música, mas pelo conteúdo, que faz pensar que, se você não ingere algum de seus produtos – Actimel, Activia, Yogurísimo – estará no caminho exatamente oposto àquele que sugere o comercial: doente-doente. 

Entre a distância social e o silêncio imposto pelas máscaras, o supermercado parece um templo: um antigo edifício industrial convertido em um autêntico centro comercial dos ultraprocessados.

Vou direto ao que vim fazer. No último andar há oito gôndolas refrigeradas destinadas a produtos lácteos e metade delas são para iogurtes. Não há nem mesmo um mínimo desabastecimento causado pela pandemia. Em meados do século passado, os lácteos foram ungidos a um grupo alimentar autônomo. A partir daí, acompanhando a produtividade cada vez mais intensa do leite, tornaram-se obrigatórios na alimentação, com um mínimo de três porções por dia. Em um país pode estar faltando tudo, mas, se falta leite, o assunto é sério. Aqui, os lácteos sobram.

Nem todos são iguais. Cada geladeira tem um público diferente e uma organização estruturada para cada um deles. Todos, no entanto, são capazes de incitar nossos centros de recompensa cerebral à medida que os percorremos de ponta a ponta. Morangos, cremes, doces: imagens fazem água na boca.

Conto vinte passos de uma extremidade da geladeira à outra: são francamente enormes. Não posso deixar de imaginar uma criança pulando ao lado do carrinho que a mãe empurra – uma situação praticamente proibida pela pandemia – enquanto um mundo imaginário de cores e sabores se abre na frente dela. 

O dia é frio e ainda é cedo, as pessoas caminham lentamente neste mundo brilhante e bem iluminado, cheio de recipientes com animais e cereais francamente psicodélicos. São as mães que parecem se colocar na cabeça de seus filhos, escolher. 

Para as mais inseguras, os iogurtes destinados a bebês. “Primeiros sabores”, da Sancor: leite e açúcar e aditivos. Nada diferente do iogurte da Danone para crianças de seis? Oito? Doze? Ou o Activia que recomendam para prisão de ventre. 

No entanto, a frente das embalagens diz outra coisa: cálcio extra, zinco, vitamina A, D, fibras, Ômega 3.

Nos últimos 50 anos, a indústria leiteira tem sido capaz de aperfeiçoar uma arte: destacar diferentes nutrientes intrínsecos ou incorporados em seus produtos, e vendê-los de tal forma que eles parecem estar fazendo, mais do que um negócio, uma contribuição para a imunidade da humanidade. Tanto que a adição de vitaminas e probióticos está entre suas tarefas de “sustentabilidade” e “responsabilidade empresarial”, como se dessa forma pudessem fugir dessa realidade: em todos os casos são produtos ultraprocessados com quantidades excessivas de açúcar ou com adoçantes e aditivos como estabilizadores, emulsificantes, conservantes, corantes, aromatizantes e perfumes.

Os iogurtes podem estar em embalagens brancas, verdes ou violetas. Oferecem saúde e, sem constrangimento, despem um universo de doces, cereais com açúcar e pílulas de chocolate. 

Qualquer preocupação encontra resposta nesta gôndola: divirta-se, aproveite, perca peso, ganhe músculo, evacue. Produtos comercializados para quem quer se livrar do excesso de gordura corporal têm nomes ontológicos, que se referem à existência: “Ser” (Danone), “Life” (Sancor). “Agora sem conservantes”, “sem xarope de milho de alta frutose”, “com probióticos”, “multivitamínicos para combater vírus e bactérias”. 

Em meio à pandemia, a estratégia de venda de nutrientes foi redobrada, e os benefícios também. Em tempos de Covid-19, as pessoas se lançaram a comprar produtos lácteos maciçamente. Apenas nos três primeiros meses de pandemia, a Danone aumentou suas vendas globais em 3,7%. Em dinheiro: 6,2 bilhões de euros.

Os produtos adquirem características ontológicas na busca por convencer os consumidores
Foto: Miguel Tovar

É a geleia, estúpido

O primeiro iogurte da Danone, que divide com a Nestlé a primazia global do mercado de lácteos, foi vendido em uma farmácia. Isac Carasso, o fundador, foi quem descobriu que saúde e iogurte eram duas ideias que vendiam bem juntas. Um judeu sefardita que havia fugido a Barcelona em 1919 enquanto o continente rachava com a 1ª Guerra Mundial, e revelou o poder de uma comida até então pertencente aos povos do Cáucaso, do Oriente Médio e do Mediterrâneo. 

Carasso fundou uma pequena empresa a que deu o nome de Danon, o diminutivo em catalão para Daniel, o nome de seu filho. Daniel deu sequência ao trabalho do pai e decidiu estudar marketing para profissionalizar o comércio. Em 1942, instalado nos Estados Unidos para escapar da 2ª Guerra, comprou uma fábrica de iogurte que pertencia a gregos. Foi ali onde teve a ideia: agregar geleia de morangos. Então, conquistou o céu: havia inventado um snack supostamente saudável e que agradava muito ao paladar americano, tão voraz por coisas doces. Foi um boom.

Hoje as geladeiras dos supermercados são cada vez mais exageradas e têm uma oferta tão grande de iogurtes que ficamos desorientados, ainda mais em meio à promessa de panaceia contida em cada pote. 

A evidência mais recente mostra que os produtos ultraprocessados, caso de muitos iogurtes, estão relacionados com doenças crônicas como diabetes tipo 2 e problemas cardiovasculares. São produtos que diminuem a imunidade, e não aumentam. Quanto aos lácteos, a ciência tampouco tem sido generosa. Não se conseguiu comprovar a promessa de redução de risco de osteoporose. E, talvez, na verdade a fomente. Está associado ao câncer de ovário e de próstata pelo alto conteúdo de hormônios. E sabemos que há otras fontes de cálcio mais seguras, como as folhas verdes, legumes, frutas, peixes. 

O problema é que nenhum desses alimentos conseguiu vender US$ 85,5 bilhões em 2019, nem chegarão a US$ 106,6 bi em 2024 só nos Estados Unidos, como se projeta.    

Os guias alimentares de um país produtor de leite como a Argentina – no top 4 dos maiores exportadores – seguem bancando que é necessário consumir três porções de lácteos ao dia. E a cada Dia Mundial do Leite, em 1º de junho, divulga-se, com pesar, que a sociedade não está acompanhando o ritmo de compras que as marcas desejam. 

Os programas sociais destinados à infância estão baseados nos lácteos como garantidores de boa nutrição. As corporações são fornecedoras do Estado para escolas e refeitórios em todo o território. 

“Brindar saúde”, “produtos saudáveis e balanceados”, “impacto positivo no mundo”, diz a apresentação de Danone. Algo similar ao que diz a Nestlé, que promete “melhorar a qualidade de vida e contribuir a um futuro mais saudável”. 

Na província de Mendoza, no extremo oeste argentino, a Danone realizou uma campanha junto a várias secretarias – Direitos Humanos incluído – chamada “Mendoza é supersaudável”. Na teoria, o objetivo era ajudar a desenvolver o “pensamento crítico” na hora da alimentação. Será que ensinaram a ler a tabela de informação nutricional de seus próprios produtos?

Em Córdoba, na região central, fizeram uma campanha similar, chamada “Mais nutrição, mais sorrisos”. 

Aproveitando a pandemia, a Danone propagandeou uma doação de 4,5 milhões de iogurtes. A Nestlé entregou dinheiro à Cruz Vermelha e produtos aos bancos de alimentos. E ambas se comprometeram a garantir o abastecimento dos supermercados. 

"Mendoza es supersaludable" se apresentava como um "projeto educativo que busca melhorar a qualidade de vida"

A verdade é um gás

Mas, enquanto a indústria láctea distrai os consumidores oferecendo fortes campanhas de marketing disfarçadas de responsabilidade social, expande seu negócio em direção oposta à sustentabilidade.

As vacas de criação intensiva se tornaram sinônimo de contaminação, desmatamento e mudanças climáticas. Mantidas em currais de engorda, são alimentadas com grãos que vêm de extensos monocultivos. As unidades industriais contaminam bacias hidrográficas. E os ruminantes são uma fábrica biológica de gases causadores do efeito estufa: devido ao complicado processo digestivo, que transita por quatro estômagos, a cada três minutos a vaca solta pelo nariz enormes quantidades de metano, e a bosta e a urina em contato com o solo geram óxido nitroso. Ambos são gases invisíveis, mas, na atmosfera, prendem o calor do sol e evitam que os raios saiam ao exterior. Não há maneira de que esses gases sejam reabsorvidos pela natureza. 

O gado é um produto humano. As vacas se dedicaram a esquentar a terra e a extinguir as possibilidades de uma natureza autóctone. Seja porque transmitem doenças que fulminam os animais locais, como aconteceu com o huemul, um veado da Patagônia, seja porque os fazendeiros limpam com queimadas enormes quantidades de bosques ou pântanos. Quem se apresente pelo caminho, como os pumas, recebe como resposta uma bala, veneno ou armadilhas. 

Os ambientes são tramas complexas, desenvolvidas ao longo de milhões de anos pela interação do mundo físico e biológico. Ao tirar peças dos ecossistemas, estamos operando contra os elementos fundamentais que precisamos para a vida: água, solo, ar. 

Um milhão de espécies estão em risco de desaparecer da lista da vida. E os iogurtes, o que têm a ver com isso? Sim, eles estão ajudando com a sexta extinção massiva de maneira muito direta. Nossa forma de produzir e consumir é o meteorito da vez. E isso, entre outras coisas, é outro ponto contra nossa saúde: a perda de biodiversidade é a responsável pela aparição de novas pandemias. 

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Ordenhando o planeta

Com os arrotos e os rejeitos das vacas, as emissões de metano e de óxido nitroso bateram recorde em 2020. Segundo um estudo do Institute for Agriculture and Trade Policy (IATP), chamado “Ordenhando o planeta”, as 13 maiores corporações lácteas do mundo emitiram tantos gases e substâncias contaminantes como a petroleira multinacional Conoco Phillips, que está entre as 25 maiores do planeta. 

A indústria láctea sabe que tem um problema estratégico. Porque as emissões seguem aumentando, na contramão do estabelecido pelo Acordo de Paris, de 2015, que busca zerar as emissões até 2050. 

As emissões desse setor aumentaram 11% no último registro disponível, e o número atual é seguramente maior, porque os dados são de 2017.

O logotipo da Danone é acompanhado do slogan “Um planeta, uma saúde”. Diz ser una companhia que se propõe a diminuir a pegada ambiental, mas, se olhamos a seu discurso com atenção, não se fala das emissões totais da empresa, mas de baixar a intensidade das emissões, ou seja, da quantidade de gases que se desprendem à atmosfera por quilo de leite produzido. Pode ser um truque de contabilidade, porque, ainda que baixando a intensidade de emissão por vaca, o aumento da produção fará com que o total nunca chegue a zero. 

Em sistemas menores, aqueles nos quais as vacas estão integradas a processos de rotação de pastagem que permitem o sequestro e o armazenamento de carbono nos solos, é possível uma pecuária mais correta. Mas, claro, essa atividade leiteira jamais poderia sustentar recomendações de três lácteos ao dia para toda a humanidade.

Socialwashing. Ou o marketing disfarçado de filantropia. Versão Covid

Social washing. Ou o marketing disfarçado de filantropia. Versão Covid

por Tatiana Merlino Brasil

Como a pandemia abrevia o caminho para que corporações da área de alimentos se apropriem de pautas antiopressão e se aproximem de movimentos sociais. Da comunidade LGBTQI+ a movimentos de periferia, passando por sustentabilidade e machismo, um guia de como um dos piores episódios da humanidade se transforma em oportunidade de lucro e publicidade

Publicado em 8 setembro 2020

14 de junho de 2020, avenida Paulista, região central de São Paulo. Durante três horas, uma projeção de luzes nas cores do arco-íris ilumina a avenida mais famosa da cidade. A instalação, feita a partir de um dos seus prédios, teve visibilidade de até 60 quilômetros de distância, garantiram os organizadores da iniciativa. 

O show de luzes fez parte da comemoração da Parada do Orgulho LGBT, que este ano foi toda feita online por conta da pandemia. Mas tem mais: foi parte de uma campanha da marca de salgadinhos Doritos Rainbow, da empresa de produtos alimentícios PepsiCo.

A corporação também anunciou uma doação de R$ 1 milhão (em torno de US$ 200 mil) para entidades que apoiam a causa LGBTQI+. Lançados pela primeira vez em 2017, a embalagem e os salgadinhos Doritos Rainbow levam as cores do arco-íris, em referência à pauta LGBT. 

Este ano, a empresa de produtos ultraprocessados também lançou a campanha #1Kiss1Donation, criada especialmente para o contexto da pandemia. Uma plataforma foi desenvolvida para que pessoas enviem um “beijo virtual”, com o objetivo de “criar uma corrente de amor”. A cada beijo virtual enviado, a Doritos doou R$ 1 a instituições LGBT+, até atingir mais R$ 1 milhão. Para a iniciativa, contratou as cantoras Pablo Vittar, Ludmilla e Luiza Sonza.

A campanha também ocorreu no México, com uma doação de 1 milhão de pesos. 

“O objetivo maior é manter o compromisso em apoiar a comunidade LGBT+ e promover a igualdade, o respeito e o apoio à diversidade, missão que Doritos, marca da PepsiCo, vem fazendo no Brasil desde 2017”, diz o material de divulgação da campanha. Durante a pandemia, a Doritos Rainbow ainda fez uma parceria com a Rede Filantropia para capacitação de associações e projetos relacionados à comunidade LGBTQI+.

Reprodução

Social washing

Assim como a Pepsico, dezenas de corporações da indústria de produtos alimentícios estão aproveitando o período da pandemia para se aproximar de movimentos sociais, de periferia e de pautas antiopressão. Um dos problemas é que muitas são fabricantes de ultraprocessados marcados pelo excesso de sal, açúcar e gorduras que, por sua vez, estão ligados a doenças crônicas (diabetes, hipertensão, câncer) que agravam os casos de Covid-19. Outra questão é que muitas das empresas têm histórico de desrespeito às leis trabalhistas. 

São doações, postagens nas redes sociais, campanhas online, lives, webinares, muitos deles incluindo figuras públicas e influenciadores. “Na nutrição, há o health washing, quando as empresas tentam dar uma cara de saudável para algum produto. O social washing também acontece. É a tentativa de mostrar que a empresa está incluindo nas suas pautas ações em relação à questão da superação, do enfrentamento racial, empoderamento feminino, questão LGBT”, afirma a nutricionista Camila Maranha, consultora da ACT Promoção da Saúde, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A estratégia de aproximação de movimentos de periferia e que debatem racismo não é nova. Quando a Coca-Cola revelou a lista de doações feitas ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos, havia uma série de aportes de pequenos valores a organizações locais. Associações de bairro, movimentos de luta contra o racismo, organizações de latinos. Justamente os grupos sociais que mais sofrem com doenças crônicas e que mais consomem refrigerantes e outras bebidas adoçadas. Um estudo recém-publicado calcula que, no país-sede da empresa, o grupo mais pobre da população toma 2,5 vezes mais refrigerantes que o grupo mais rico.  

Durante a pandemia, diz Maranha, o social washing se intensificou. “Há muitas empresas distribuindo seus fast foods e chocolates, doações para profissionais de saúde, caminhoneiros, e isso com divulgação nas redes sociais, na mídia.” Sem mencionar o Solidariedade S.A., quadro fixo que passou a ser exibido diariamente pelo Jornal Nacional, o maior telejornal do país, valorizando doações feitas por essas empresas, sempre de maneira acrítica e sem relativizar o montante doado frente ao faturamento da empresa. 

Para Maranha, o que se vê, “infelizmente, é que as empresas estão muito mais engajadas na promoção da imagem pública do que de fato em fazer ações concretas, na cadeia de produção desses alimentos, e alcançar esses objetivos, que seriam muito legítimos. Cada vez mais consumidores querem produtos de empresas que sejam limpas, sustentáveis, não discriminatórias”.

Da periferia ao centro

Em 18 de junho, o Carrefour realizou o lançamento do relatório de sustentabilidade de 2019. Em vez de um simples documento de PDF escondido em algum canto da página corporativa, a rede de supermercados optou por reunir o CEO e alguns dos principais diretores para uma transmissão online. Não estavam sozinhos: apresentaram agricultores-modelo e o coordenador de um projeto voltado a áreas de classe baixa. 

O representante de relações institucionais, Stephane Engelhart, disse que a empresa tem a missão de levar comida de qualidade a todos os brasileiros e que é a maior compradora de carne do Brasil – com ênfase na garantia de que a origem não é de fazendas desmatadoras. 

Em meio a preocupações dos consumidores sobre a qualidade e o rastro ambiental de legumes, frutas e verduras oferecidos nos supermercados, o Carrefour parecia querer se vacinar. Apresentou agricultores que moram próximos ao maior centro consumidor, a cidade de São Paulo, e que teceram juras de amor à empresa, em particular ao Atacadão, o braço de atacado, justamente onde é mais difícil encontrar alimentos frescos de qualidade. 

Roberto Mussnich, CEO do Atacadão, falou sobre o propósito de “levar produtos de qualidade a preços baixos para todo o país”. Disse, ainda: “Procuramos fornecedores locais e buscamos incentivar a indústria local para gerar emprego e sustentabilidade. Amor pelo negócio, pela causa e pela maneira de fazer.”

Quando o encontro completou uma hora, os diretores não esconderam a empolgação ao apresentar Edson Leite, chef de cozinha e idealizador do projeto Gastronomia Periférica. Além de atuar nas franjas da capital paulista, onde se multiplicam as lojas do Atacadão, o projeto trabalha sobre uma agenda sensível do setor: o desperdício de alimentos, além de oferecer formação em culinária e oferecer refeições. 

“Precisamos mostrar o universo periférico, que é gigantesco. É importante quando conseguimos ter esse espaço, fechar parcerias”, como a com o Carrefour. De acordo com ele, há um projeto de invisibilização da periferia, e o poder público não age para que isso seja diferente. “Sempre fizeram a gente acreditar que nossa comida, tudo nosso era ruim.”

O grupo de supermercados anunciou a doação de R$ 15 milhões em cestas básicas para ajudar famílias carentes diante da pandemia do novo coronavírus – boa parte garantida pelos fornecedores ou por doações de clientes. Enquanto bateu recorde de faturamento nas primeiras semanas da pandemia, a rede fez segredo sobre quantos funcionários se infectaram por Sars-Cov-2 no ambiente de trabalho.

Toda essa “preocupação” da rede supermercadista rendeu até uma reportagem num dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo, com o sugestivo título “Carrefour reduz impacto ambiental e apoia democratização da alimentação saudável”.

“Tais investidas estão sendo feitas claramente para se melhorar a imagem das marcas na sociedade, como se estivessem preocupadas com questões sociais”, avalia Ana Paula Bortoletto, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Mas na verdade elas representam uma grande contradição quando vamos ver o que de fato investem e comercializam em relação a produtos não saudáveis.”

Bortoletto também afirma que “o cruel é que essas marcas ampliam seus mercados junto a camadas mais vulneráveis e isso acaba aumentando o risco de desenvolvimento de doenças crônicas na população”.

Além da intensificação das ações virtuais, patrocínios de lives e estratégias com influenciadores, Bortoletto afirma que se aprofundou a pressão política dessas empresas para aprovação de leis. Isso se traduziu na recente aprovação da lei que flexibiliza a doação de alimentos, sancionada em 23 de junho (Lei 14.016/20), que pretende evitar o desperdício e incentivar a doação de alimentos e refeições. 

Embora pareça positiva diante do contexto, na prática facilita o aumento de doações de alimentos processados e ultraprocessados. “Ao se oferecer alimentação de baixa qualidade à população, está se aumentando o problema, e não ajudando.”

Maquiagem

A tentativa de manter uma boa imagem por meio de ações de responsabilidade social corporativa não é novidade. Nos anos 1980 e 1990, popularizou-se a expressão greenwashing, ou maquiagem verde, para se referir a empresas que destroem a natureza, mas vendem a tese da sustentabilidade em seus discursos. 

O movimento feminista cunhou a expressão maquiagem lilás, purple washing, para as empresas que se apropriam do discurso do empoderamento e diversidade em suas campanhas. “Chamamos assim quando as empresas adotam argumentos, as lutas do movimento feminista, para encobrir outros tipos de práticas. E aí a primeira coisa que a gente olha é como é o funcionamento da empresa, a relação de trabalho interna que eles têm”, afirma Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista. 

“Essas mesmas empresas que usam esse discurso enriquecem com base na exploração do trabalho feminino por meio da terceirização e no trabalho precário realizado pelas mulheres na condição de trabalhadoras por conta própria ou no trabalho a domicílio, no controle dos territórios e da água”, aponta a Marcha Mundial das Mulheres.

Orgulho que multiplica?

“Nada deve impedir o orgulho de ser quem somos, né? #SeuOrgulhoNinguémPara #TodoMundoÉBemVindo.” Dá para adivinhar de qual empresa é essa campanha? Chega a ser irônico, mas é a frase de uma campanha da Uber Eats para o mês do orgulho LGBTQIA+. Em parceria com o Burger King, a Uber Eats anunciou que de 22 a 28 de junho parte do lucro das vendas de dois combos seria doada para ONGs que apoiam a comunidade. 

Irônico porque, juntamente com outras empresas de aplicativos de entrega de alimentos, como Rappi e iFood, a UberEats se recusa a reconhecer os direitos trabalhistas dos entregadores. Mas todas vêm realizando uma série de iniciativas de suposta responsabilidade social, enquanto os trabalhadores em vários países organizam paralisações por melhores condições. Motoboys e ciclistas reivindicam mais segurança, taxas justas nos pagamento de corridas, alimentação durante a jornada e licença remunerada em casos de acidentes.

“Essa relação ambígua e tensa com o mercado marca o movimento desde sua origem. Há setores do movimento que criticam esse tipo de mercantilização e o esvaziamento da pauta”, diz  Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ativista de direitos humanos e diversidade sexual.

A Rappi também promoveu uma campanha no mês do orgulho LGBTQIA+. Em suas redes, anunciou que, até 30 de junho, na compra de qualquer produto Skol Beats em seu aplicativo, o usuário receberia uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo do movimento, para estender na sua janela. E que parte do faturamento da Rappi, 20%, seria doado à ONG Casa Chama, espaço coletivo de cuidados LGBTQIA+.

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Compromisso efetivo

A partir do início das paradas do orgulho LGBT na década de 1970 em várias cidades dos Estados Unidos e de todo o mundo, “empresas passaram a ter uma postura mais agressiva para ter visibilidade e colocar suas marcas [nos eventos]”, complementa Quinalha. “O problema é que elas somem durante o ano inteiro, e, mais que isso, fazem campanhas para ajudar em determinado momento e, quando passa, há episódios de LGBTfobia dentro das empresas, em relação a funcionários, prestadores, no caso da Uber, ou com terceiros, e a empresa não responde adequadamente e de forma rápida.”

Para Quinalha, essas empresas precisam ser cobradas por campanhas não só para destinarem parte do que estão lucrando, mas também para assumirem um compromisso efetivo. “Que tipo de política interna há para LGBTS, onde estão, em qual posição de liderança na empresa, tem possibilidade de inserção, tem pessoas trans trabalhando nas empresas? Elas [empresas] precisam se posicionar muito além de colocar um carro, pagar uma conta. Precisam se comprometer com uma mudança que é cultural e isso precisa começar dentro das empresas e perante a sociedade. Essa é uma maneira de buscar coerência que muitas vezes tem faltado para essas empresas que aparecem só no mês de junho.”

O professor da Unifesp também avalia que é preciso considerar outras pautas, pois “o movimento LGBT não é só uma agenda pela libertação sexual e pelo direito à identidade de gênero e livre orientação sexual. É um movimento que busca inclusão, acesso à educação, saúde, e renda, que toque em questões de desigualdade econômica, de relações de trabalho. Então, é muito problemático que empresas que precarizam trabalho, que não respeitam o meio ambiente, questões alimentares, apropriem-se disso. São pautas que estão cruzadas, a pauta LGBT não está descolada de todas essas agendas”.

Toddynho e Cheetos para comunidades vulneráveis

A PepsiCo aproveitou o amplo portfólio de marcas de ultraprocessados para se aproximar de diferentes bandeiras. A corporação é dona das linhas eQlibri, Quaker, Toddy, Toddynho, Ruffles, Doritos, Cheetos, Fandangos e Pepsi. Além da doação de produtos com excesso de sal e açúcar para governos e organizações da sociedade, apoiou um projeto de valorização da música brasileira.

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Em outra frente, a linha de salgadinhos eQlibri, que “traduz externamente a sua proposta de valorização e reconhecimento da força das mulheres”, doou mais de 1.200 cestas básicas de alimentos para famílias carentes chefiadas por mulheres e doou produtos para a Associação de Mulheres de Paraisópolis, uma das maiores comunidades pobres de São Paulo.

Já a Nestlé investiu forte na substituição do aleitamento materno. No México, a empresa se associou à FEMSA, fabricante da Coca-Cola, para fazer publicidade sugerindo a doação de fórmulas infantis, uma prática proibida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). 

No Brasil, a estratégia foi semelhante. A corporação chegou a anunciar a live “A vida não para”, direcionada a profissionais de saúde, para o lançamento da fórmula infantil para NAN Supreme. O evento teria a presença da cantora Maria Rita, o que, de novo, é proibido pela OMS por se tratar de uma estratégia publicitária. Organizações se reuniram nas redes sociais para um tuitaço com a hashtag #DesisteMariaRita. A artista decidiu não participar, mas a live foi realizada. 

A empresa também estreitou laços com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) num programa “para capacitar residentes” em um curso no qual projeta chegar a 1.700 profissionais. Os participantes foram selecionados de acordo com indicações de médicos e professores experientes. A corporação prometeu ainda uma residência em Boston, nos Estados Unidos, e pagar a anuidade dos profissionais na SBP.

Em carta enviada à SBP, a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar – IBFAN-Brasil criticou a parceria, afirmando que o único objetivo é beneficiar uma corporação em detrimento da proteção do aleitamento materno. “A estreita relação que se pretende estabelecer entre médicos em formação e a mencionada indústria, que lança no mercado produtos que serão alvo da prescrição desses profissionais aos seus futuros pacientes, não pode ser vista como ética.”

Ética. Uma palavra tão relevante quanto desgastada em tempos nos quais corporações se apropriam até mesmo de uma tragédia ímpar na história da humanidade. A pandemia acelerou o processo de captura de bandeiras legítimas da sociedade. Acelerará, também, a resistência por parte de movimentos e dos cidadãos? 

Leite de morte, leite de vida

Leite de morte, leite de vida

por Fabián Mauricio Martínez G Colômbia

Na Colômbia, a pandemia dificulta o aleitamento materno e separa recém-nascidos de suas mães. De outro lado, abre caminho a estratégias de promoção de fórmulas infantis. Rappi e Mead Johnson dão as mãos em um combo que ignora as recomendações médicas, as leis e as realidades locais

Publicado em 8 setembro 2020

Alguns dias após o nascimento, os exames de Covid-19 deram positivo para a mãe e a criança. O bebê nasceu às 10h27 do dia 14 de julho de 2020 no Hospital San José, no centro de Bogotá. Pesou 2.830 gramas e mediu 50 centímetros. Seus gritos, como anunciando ao planeta que tinha acabado de chegar, foram ouvidos na sala de parto antes que seus batimentos cardíacos, respiração e reflexos fossem medidos. Antes de cortarem seu cordão umbilical e que os braços se dobrassem sobre o peito. Cor da pele e tônus muscular mostraram que o bebê estava bem de saúde. No entanto, ele tinha Covid-19.

A mãe do bebê não apresentou nenhum sintoma (febre, tosse seca, cansaço, dor de cabeça), mas, pelo protocolo de saúde colombiano, ela e o filho foram testados. Ambos positivos, embora a mãe — 17 anos, magra, cabelo preto — não tivesse saído de casa nos últimos meses. A garota, que vamos chamar de Johana, manteve uma quarentena rigorosa, preocupada com sua gravidez. Mas o pai do garoto — 19 anos, alto, moreno — teve que sair de casa para percorrer a cidade vendendo sacos de lixo, flores, frutas ou o que quer que estivesse à mão. A situação de John Freddy não é única.

Na Colômbia, embora cerca de 11.000 casos positivos de coronavírus estejam sendo relatados diariamente, para centenas de cidadãos não é possível ficar em casa. Seus trabalhos são informais e devem ser feitos na rua, andando pela cidade, empurrando carrinhos com abacates, mangas ou bananas. Cerca de 15.000 pessoas já morreram no país por causa da pandemia. E só em Bogotá, os infectados estão se aproximando de 160.000. Este paradoxo é muito bem definido por John Freddy, o pai do bebê: “Ou o vírus nos mata ou morremos de fome, mas não podemos ficar em casa com os braços cruzados.” 

O bebê está na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), isolado da mãe. Johana, assintomática, espera em casa. Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomende que a mãe e a criança não sejam separadas, mesmo que ambos tenham Covid-19, esse isolamento é feito para garantir a saúde do bebê. Segundo o neonatologista Carlos Alberto Acosta, “sendo menor que 6 meses há um alto risco de deterioração clínica, para este caso de ordem respiratória por Covid. Então, não há outra maneira, a criança deve ser observada”. Além disso, deve-se ressaltar que o isolamento também é feito para quebrar a cadeia de contágio e exercer maior controle epidemiológico.  

Johana, a mãe, espera confinada por 14 dias antes de receber um novo teste. A equipe do hospital a visita para coletar o leite — que ela extrai — e levá-la à clínica onde está o bebê. Eles armazenam no banco de leite e a cada três horas tiram um pouco para alimentar a criança. “Pensei que tínhamos que comprar leite artificial por causa do vírus, mas os médicos insistiram que eu lhe desse leite materno.” 


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Coberto com uma roupa que lembra astronautas em missões espaciais, o neonatólogo Acosta examina o bebê três vezes ao dia. Cuida dele na Fundação Cardiovascular de Soacha, para onde a criança foi transferida por falta de vagas na UTI do Hospital São José. Verifica sinais respiratórios e cardíacos; mede a temperatura e liga para a jovem mãe para dizer como a luta de seu filho pequeno está indo contra o vírus que tem o mundo nas mãos. Até agora, a criança está ganhando. 

“A melhor coisa para o bebê é o leite materno”, diz Acosta. “Não há nada melhor para esta criança do que o leite de sua mãe”, ele continua, através de seu escafrandro, que também lembra a proteção que os bombeiros usavam em Chernobyl, após a explosão nuclear em 1986. De acordo com a Pesquisa Nacional de Situação Nutricional, o aleitamento materno exclusivo em bebês menores de seis meses de idade diminuiu para 36,1%, contra 42,8% em 2010. E de acordo com a página de Aleitamento Materno e Nutricional do Ministério da Saúde, “de cada 100 crianças nascidas na Colômbia, apenas 56 começam a amamentar na primeira hora de nascimento”.

O médico explica que os recém-nascidos têm um sistema imunológico fraco e a melhor substância para elevar a imunidade é o leite materno. “Mesmo que a mamãe tenha coronavírus?”, eu pergunto. “Não importa”, ele responde, “a única contraindicação ao leite materno é o HIV ou que a mãe decida não amamentar. Não há nada que beneficie seu bebê mais do que o leite materno porque fortalece seu sistema imunológico e é precisamente isso que você precisa para vencer o vírus.”

Em um relatório de 27 de maio de 2020, a OMS e a Unicef enfatizam que as mulheres devem continuar amamentando durante a pandemia, mesmo que tenham a suspeita ou confirmação de que estão infectadas. Os dados atuais, diz o relatório, indicam que é improvável que a Covid-19 possa ser transmitida através da amamentação ou do leite materno extraído de uma mulher com vírus. Os muitos benefícios do aleitamento materno superam em muito os riscos potenciais. Mas essa verdade anunciada por organizações internacionais é inquietante para empresas que se esforçam para promover leites de fórmula como alimento ideal para recém-nascidos.

María Eugenia Delgado, nutricionista e consultora internacional de aleitamento materno, tem travado uma luta contra as imposições, às quais seus pacientes são frequentemente submetidos, pela promoção publicitária de leites de fórmula. “O leite materno é um fluido vivo cujas células fornecem os macronutrientes necessários para o bebê, e eles também lhe dão a carga imunológica que os leites de jarra não têm”, diz a especialista – cabelo castanho e sorriso largo – e continua: “O fato de o leite materno estar vivo significa que ele tem células dinâmicas e mutáveis, ou seja, tem a capacidade de criar uma relação única e próxima com o bebê que está se alimentando.” 

No entanto, a consultora reconhece que, em alguns casos, o aleitamento materno é contraindicado. “Em nosso país, se a mãe for HIV positivo, a Empresa Promotora de Saúde deve fornecer a fórmula para o bebê. Ou se a mãe está em processo de quimioterapia, o leite materno não deve ser dado.” Por sua vez, ela explica que em certos casos médicos, atípicos e de baixa prevalência na população, o bebê nasce com erros inatos do metabolismo, como galactosemia e fenilcetonúria. “No caso do primeiro acontece que o bebê não tolera galactose, um monossacarídeo de leite materno, ou seja, seu corpo não tem enzima para metabolizá-lo e começa a ocorrer um acúmulo que pode causar insuficiência hepática ou alterações neurológicas. Nestes casos, nenhum leite materno pode ser dado.” 

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Negócio disfarçado

Federico García Lorca escreveu Yerma em 1934. Uma obra teatral de ambiente rural que expressa, em vários de seus diálogos, a poesia da sabedoria popular. No Ato III, a protagonista diz: “Imagino que as recém-paridas estão como iluminadas por dentro – e as crianças dormem horas e horas em cima delas ouvindo esse arroio de leite morno que lhes vai enchendo os peitos, para que mamem, para que brinquem, até não quererem mais.”

Quase cem anos depois, a cena mágica de García Lorca sobrevive, e a ciência soma certezas. 

Tedros Adhanom, diretor da OMS, disse que: “O aleitamento materno oferece aos bebês o melhor começo possível na vida porque o leite materno atua como a primeira vacina do bebê, já que protege contra doenças potencialmente fatais e oferece todo o alimento de que precisam para prosperar.” E essa potente vacina natural, um arroio de leite morno, mantém com vida o bebê de Johana e John Freddy. 

É por isso que é difícil aceitar que, neste momento de pandemia, as marcas promovam doações disfarçadas de filantropia, a fim de se favorecer economicamente em meio à emergência sanitária global. Essa situação foi denunciada pela Red PaPaz, uma organização sem fins lucrativos composta por pais colombianos que zelam pelo bem-estar integral das crianças. 

Imagino que as recém-paridas estão como iluminadas por dentro - e as crianças dormem horas e horas em cima delas ouvindo esse arroio de leite morno que lhes vai enchendo os peitos, para que mamem, para que brinquem, até não quererem mais.”

 

Em carta enviada ao Instituto Nacional de Vigilância de Medicamentos e Alimentos da Colômbia), a Red PaPaz denunciou uma promoção lançada pela Rappi Colombia, chamada “Sementes de Apego”, para apoiar um programa de mesmo nome da United Way Foundation. De acordo com a promoção, a corporação das entregas prometeu doar uma lata de 180g de Premium Enfagrow para a United Way Foundation para cada ordem completa dos produtos Enfagrow da Mead Johnson. As doações foram para as crianças mais vulneráveis do município de Tumaco, Nariño, no sul do país.  

Os produtos Enfagrow Premium, explica a carta enviada pela Red PaPaz, são fórmulas para crianças menores de dois anos, feitas a partir de leite de vaca integral com a adição de nutrientes declarados em seu rótulo nutricional. Por se tratar de um produto processado de origem animal com a adição de nutrientes, corresponde à definição de “alimento de fórmula para bebês”, segundo o artigo 2º do Decreto 1.397, de 1992. Um tipo de produto para o qual não pode haver publicidade por meio de doação; atividades de publicidade e promoção em nível público em geral; e entrega de amostras grátis às mães.

A proibição da lei colombiana é muito clara. E, apesar da clareza na denúncia, a resposta do órgão público “parece ser redigida pela Enfragrow”, diz Carolina Piñeros, representante legal da Red PaPaz. A posição oficial, assinada por Carlos Robles Cocuyame, diretor de Alimentos e Bebidas da INVIMA, conclui que: “O produto não corresponde a uma fórmula infantil ou a um alimento complementar do aleitamento materno” e que “A atividade realizada na plataforma não corresponde a um anúncio, mas a uma atividade promocional”. 

Para além das formas e da discussão sobre publicidade, o caso se agrava ao conhecer o contexto da população de Tumaco. 

Leite de morte, leite de vida

Lorena Muñoz, nutricionista, membro do Observatório de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade Nacional da Colômbia, conhece bem a situação de Tumaco porque trabalhou lá em 2019 na recuperação da memória alimentar do território. 

“A primeira coisa que devo salientar é que essas fórmulas, como as da promoção da Rappi Colômbia e da United Way, exigem água potável para preparação, bem como para esterilização das mamadeiras em que é dada”, diz Muñoz. 

Em Tumaco, segundo dados divulgados pelo censo de 2018, a cobertura de aquedutos atinge apenas 31,7% da população, e apenas 5,5% da população possui sistema de esgoto. Isso significa que naquela cidade, habitada por 212 mil pessoas, apenas 11 mil possuem serviços de coleta e transporte de águas residuais. “Isso torna a doença diarreica aguda muito alta, assim como a infecção respiratória aguda. Ambas as doenças são as principais causas de morte em crianças menores de 5 anos em Tumaco.” 

Se há sérios problemas de água potável, por que oferecer doações de leite artificial quando não há sequer garantia de acesso à água para prepará-los? “Se realmente quiséssemos ajudar, uma boa dieta para as mães teria que ser promovida”, reflete Muñoz, que conclui, “o que realmente está sendo feito através dessas doações é a ação política corporativa a fim de promover interesses econômicos corporativos no direito das crianças ao aleitamento materno e à alimentação adequada das crianças”.  

Tumaco | Foto: Adobe Stock y Colombia Reports

Jennifer Preciado tem 28 anos, é líder social e gerente em segurança alimentar e nutricional em Tumaco. Ela mora no Barrio Obrero, um subúrbio com sujeira e ruas de paralelepípedos, onde as crianças se divertem correndo com cães magros. Jennifer – pele castanha e cabelo preto – está grávida pela terceira vez, uma menina que nascerá em agosto. Seu primeiro filho tem onze anos e o segundo, cinco. “O primeiro eu dei leite materno até os dois anos de idade. O segundo, por razões de trabalho, eu não pude amamentá-lo. Tive que dar fórmula. Eu tive que ir trabalhar e fiquei longe de casa por vários dias.”

Deitado em uma cadeira, usa o leque para espantar o calor das três da tarde com a mão direita; com a esquerda, segura o celular. “Aqui não temos água potável. Você abre a torneira e a água desce turva, às vezes com cheiros. Temos que ferver. Com meu segundo filho eu tinha que fazer isso o tempo todo.” Preciosamente conta que seu segundo filho – aquele que tomou fórmula – ficou constipado, sofreu com febres e cólicas durante os primeiros meses de vida, o que não aconteceu com seu primeiro, a quem amamentou. “Meu primogênito está em ótima saúde, mas meu segundo filho adoece muitas vezes.”

A revista britânica The Lancet, uma das mais prestigiadas do mundo, em sua edição de fevereiro de 2016, sobre aleitamento materno, oferece um estudo abrangente sobre os benefícios. Diz, entre outras coisas: “Crianças amamentadas por períodos mais longos têm menor morbidade e mortalidade infecciosa (…) e inteligência superior às que são amamentadas por períodos mais curtos ou não são amamentadas. Essa desigualdade persiste ao longo da vida. Há evidências crescentes de que o aleitamento materno pode proteger contra o excesso de peso e diabetes no futuro.” Benefícios e desvantagens que se tornam evidentes nos filhos de Jennifer Preciado.

É por isso que ela tem muito claro que sua filha será amamentada exclusivamente por pelo menos seis meses. É uma escolha que ela faz a partir de seu conhecimento como gerente em segurança alimentar e nutricional, mas também usando o conhecimento ancestral da área. “Veja, aqui em Tumaco a melhor dieta que uma mãe pode fazer para produzir um bom leite é tomar como base a água de panela [uma infusão]. Você tem que tomar várias vezes por dia, almoçar com um bom frango e jantar com peixe fresco, além de comer boas frutas e legumes durante o dia”, diz a mulher, com dentes brancos e alegria transbordante. 

Mas nem todas as mulheres têm a mesma disposição da Jennifer. Além das contraindicações médicas descritas, há outro fator que afeta o aleitamento materno. Lorena Muñoz, nutricionista, explica assim: “O desejo de amamentar é algo a se considerar. Nem todas as mulheres querem fazer isso e é respeitável. Há mulheres que simplesmente não estão interessadas em amamentar seus filhos. Nesse caso, devemos encontrar a fórmula que melhor se adapte ao bebê e respeite a retirada da mãe. No entanto, não é muito comum. O aleitamento materno hoje é uma tendência na maioria das mulheres.” 

Na costa do Pacífico da Colômbia, Jennifer planeja um futuro de peito e saúde para sua filha. Em Bogotá, o bebê de Johana e John Freddy já venceu a Covid-19 após 14 dias de uma odisseia para garantir a amamentação. O bebê nascido em 14 de julho agora conhece sua mãe. Crescendo e colado no peito.