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Não existe uma porção adequada para produtos que podem causar câncer

por Delfina Torres Cabreros
Foto: Nacho Yuchark
Publicado em 8 agosto 2021

A evidência publicada é esmagadora: a indústria de alimentos tem sido e é especialmente ativa no boicote às leis de rotulagem na América Latina. As estratégias utilizadas pelas marcas são instrumentais e discursivas: desde o financiamento de políticos e a apresentação de políticas alternativas até a deslegitimação dos profissionais de saúde e pesquisadores que apoiam as políticas públicas.

Mélissa Mialon é engenheira de alimentos, doutora em nutrição e referência acadêmica mundial em pesquisa sobre interferência corporativa em políticas públicas. Ao longo dos anos, pesquisou as estratégias de grandes grupos até desvendar com rigor como eles operam. Lobby, influência nas comunidades, doações, financiamento de eventos e organizações acadêmicas, captação de cientistas e profissionais, construção de “evidências” a favor dos seus objetivos. Ocorre em todo o mundo, mas na América Latina, terra prometida para a expansão dos seus negócios, “a indústria é especialmente agressiva”, diz Mailon.

Existem evidências suficientes para afirmar que as empresas interferem nas políticas públicas de saúde?

Sim, existem muitas evidências na América Latina, especificamente em matéria de rotulagem. Mas é algo global: temos provas na França, na Bélgica, na Espanha e na Itália. Igualmente na Austrália, onde fiz meu doutorado, a indústria se opôs a um sistema de rotulagem voluntário. Também temos evidências no Uruguai, no Chile, na Guatemala, na Colômbia, onde ela foi superagressiva contra modelos de alerta.

Quais são as estratégias usadas para interferir?

Existem dois grandes grupos de estratégias: a instrumental (as ações da indústria) e a discursiva (seus argumentos). Entre as instrumentais, a primeira que menciono é a criação de grupos de apoio à indústria. As empresas formam grupos de lobby porque têm mais poder quando estão juntas e apoiam grupos da sociedade civil ou diretamente comunidades – por meio de esportes ou atividades infantis, por exemplo – para obter seu apoio.

A indústria também paga por estudos científicos e documentos de diversos tipos para dizer que seus produtos são bons para a saúde e que as empresas têm um papel econômico central na sociedade. Ou seja, a ciência é usada para fins políticos. Também há influência direta nas políticas públicas por meio de lobby ou quando se sentam à mesa de decisão junto aos governos, mas também com doações a partidos políticos e parlamentares.

 

Essas estratégias são semelhantes às usadas por outras indústrias em conflito com a saúde pública, como tabaco ou álcool?

Sim, claro. Com as de tabaco, jogos de azar, álcool, produtos farmacêuticos… porque um lobista ou profissional de marketing não está preocupado com o produto, mas em aplicar o conhecimento que tem de como passar sua mensagem, falar com políticos, afetar decisões que podem ser negativas para seu objetivo. Não se trata de tabaco, álcool ou comida, mas de práticas que as empresas usam quando são contra uma norma que ameaça sua posição, seja em um país, seja no mundo todo.

O modo de operação do setor varia de acordo com a região? Você vê alguma particularidade na América Latina?

Em países de alta renda, essas estratégias são um pouco mais transparentes porque os próprios governos são mais transparentes. Existem registros de lobistas, tetos para doações a políticos e medidas desse tipo. A imagem nesses países é mais importante para a indústria porque a população está um pouco mais atenta à saúde. Já em países de renda baixa e média é mais complicado, pois não há tanta transparência e é mais difícil saber o que o setor está fazendo a portas fechadas. A diferença também é que o setor é muito mais agressivo na América Latina. Você vê ataques diretos a defensores da saúde pública, por exemplo na Colômbia, e uma captura de cientistas da academia que não é tão explícita em outros lugares.

Na Argentina, há casos muito claros de pessoas que têm que tomar decisões sobre a lei de rotulagem e que vêm justamente de posições relevantes na indústria. É algo a que prestar atenção?

Sim, são conflitos de interesses, e muitas vezes quando há denúncias, essas pessoas entendem como um ataque pessoal, e não que são problemas éticos e que causam danos à saúde da população. Os lobistas acreditam que isso se limita a um assunto da sua imagem. Muitas vezes nem mesmo registram que quando recebem dinheiro ou são convidados para comer por uma marca é um problema, acreditam que apesar disso são independentes. É mais fácil ver que seus colegas têm um conflito de interesses do que você mesmo. Além disso, às vezes eles fazem parte da mesma classe política. Pessoas que cresceram nos mesmos ambientes e se conhecem ou vão juntas ao parque no fim de semana.

Um dos argumentos mais frequentes no setor é que a lei de rotulagem “demoniza” os alimentos, quando o fundamental seria moderar a ingestão e fazer atividade física. O que você acha?

Que eles são muito inteligentes para mudar a conversa e capturar conceitos. Quando falamos em moderação e balanceamento da alimentação, nós da nutrição e da saúde pública sempre pensamos entre opções que são saudáveis. Eles aplicam esse conceito aos ultraprocessados, mas é diferente: não existe uma porção adequada para produtos que podem causar câncer.

Quando pensamos em ultraprocessados, o problema são os nutrientes críticos em excesso ou você também deve considerar o processamento em si?

Há evidência de que o problema não é somente nos nutrientes, mas no nível de processamento dos produtos, porque a empresa pode diminuir o nível de açúcar, mas adicionar alguma outra coisa para que a textura e o sabor sejam iguais, sendo que muitas vezes não se sabe qual o efeito que isso vai ter no corpo. Anos atrás, na França, foi descoberto que o plástico da mamadeira continha bisfenol, que migra para o leite e é prejudicial à saúde dos bebês. Aí a indústria mudou para outro plástico, que dez anos depois entendemos que não é melhor. A mesma coisa acontece com a comida. Inclusive, a indústria muitas vezes sabe que o que ela adiciona em substituição não é melhor, mas como a pesquisa para provar isso leva dez anos, ela acha que ganhou dez anos para vender seu produto.

Existem mecanismos para detectar e tentar neutralizar a interferência?

Sim, nós compilamos 49 mecanismos diferentes usados ​​em diferentes países, como registro de lobistas, limitação de doações a políticos ou maquiagem de financiadores para universidades e pesquisadores. São coisas concretas que outros países podem adotar.