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No Uruguai, a saúde da indústria vem primeiro

por Stephanie Galliazzi Uruguai
Publicado em 10 fevereiro 2021

Foi pioneiro no Mercosul ao propor uma política de rotulagem frontal. Mas, depois de quase três anos de adiamentos, entra em vigor no país uma normativa mais frágil em suas exigências aos fabricantes de ultraprocessados. Diálogos a portas fechadas na Presidência marcaram grande parte das regras do jogo.

Já faz um ano que as gôndolas dos supermercados do Uruguai confundem. Bolachas com os três rótulos em formato de octógono posaram por meses ao lado de outras, igualmente hiperaçucaradas, sem advertência alguma. Iogurtes de todo tipo e cor; sucos à base de xarope de milho de alta frutose, corantes e perfumes que tentam imitar uma fruta; legumes enlatados com excesso de sódio; cereais diversos: produtos que foram vendidos sem nenhum octógono. E, enquanto há meses as marcas disputam uma competição desleal entre aquelas que acataram em tempo e forma as medidas de rotulagem octogonal e as que se apoiaram nos adiamentos do governo, os consumidores ficaram totalmente desorientados.

Todo esse cenário ficaria mais nítido a partir de 1º de fevereiro, quando entraria em vigor o Decreto 246 de 2020. Mas isso não aconteceu. Porque, menos de uma semana antes, o governo uruguaio aprovou outra normativa (Nº 34/0210) que flexibilizou os valores-limite dos alimentos com excesso de açúcar, gorduras e sódio. Paradoxalmente, o novo decreto foi publicado sob o logo do Ministério da Indústria, Energia e Mineração (MIEM) e não – como correspondia e conforme foram publicados os decretos anteriores – sob a insígnia do Ministério da Saúde Pública (MSP). Portanto, sim, o Uruguai tem um sistema de rotulagem obrigatória vigente, mas não há tantos motivos para comemorar.

Pois o Uruguai tem um decreto de rotulagem de alimentos desde 2018, foi pioneiro em relação à rotulagem no Mercosul e é destacado internacionalmente por ter proposto há mais de dois anos um sistema que estabelece que os produtos comestíveis altos em sódio, açúcar e gorduras devem conter um octógono preto de advertência. Mas, durante mais de dois anos e meio, o decreto original – o 272 de 2018 – repousou em tinta e papel. O que o sucedeu, o 246, alimentou expectativas, mas nunca entrou em vigor. E, agora, rege um decreto que, além de ser mais flexível, não vem sendo fiscalizado. Ficou evidente que a saúde não está em primeiro lugar.

Chama a atenção a maneira como se postergou uma iniciativa que busca contribuir para a redução dos índices de doenças crônicas não transmissíveis. O Uruguai está entre os países latino-americanos que, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), registram o maior aumento no consumo de ultraprocessados: entre 2000 e 2013, foi de 146%. Paralelamente, cresceram os índices de obesidade e sobrepeso: atualmente, 37,2% da população adulta apresenta sobrepeso e 27,6%, obesidade; 4 de cada 10 crianças maiores de cinco anos sofrem de algum de esses problemas. Trata-se de um país cujo principal problema em matéria de segurança alimentar não é a fome, mas sim a má nutrição, que afeta 34% das crianças em idade escolar.

Até 26 de janeiro, o sistema de rotulagem que se esperava no Uruguai era um. A partir desse dia, soube-se que as regras do jogo seriam outras. As alterações deram aval para que os produtos de má qualidade nutricional ficassem sem advertência. Entre os grandes beneficiados, entram os iogurtes e as sobremesas lácteas.

Sob os novos parâmetros, o valor-limite por cada 100 gramas de produtos sólidos aumentou de 400 para 500 miligramas para o sódio, de 10 para 13 gramas para o açúcar, de 9 para 13 gramas para as gorduras totais, e de 4 para 6 gramas para as gorduras saturadas. Ou seja: em relação ao decreto de 2020, os produtos sólidos poderão conter 25% a mais de sódio, 30% mais açúcar, cerca de 45% a mais de gorduras totais e 50% a mais de gorduras saturadas. No caso dos alimentos líquidos, mantêm-se os valores-limites para cada 100 mililitros que estavam estabelecidos no decreto de 2020. Mas, como a nova normativa excluiu a lactose do cálculo de açúcares, o limite de vários produtos líquidos também foi afetado em favor dos ultraprocessados.

“Defesa da indústria”

“Muitos iogurtes, sobremesas lácteas e queijos foram beneficiados. Também podem se safar sucos, refrigerantes, barrinhas de cereais e algumas bolachas”, exemplifica Miguel Kazarez, nutricionista e autor do livro Saber comer. O profissional entende que a flexibilização dos limites é “uma clara defesa da indústria em detrimento da saúde dos cidadãos”. Por isso, questiona: “Quais estudos científicos basearam essas modificações? Porque a proposta inicial estava baseada em evidência científica”.

No Uruguai, a indústria operou sob as mesmas diretrizes com as quais incidiu nos demais países em que a rotulagem foi discutida. Como explica Kazarez, a estratégia sempre tem a extensão dos tempos como eixo central, juntamente com a negação e a proposta de alternativas sem evidência científica. “Justificam com argumentos banais e simplistas. Tudo isso responde a um interesse econômico. Deveríamos conhecer qual foi o critério que o governo utilizou agora, porque duvido que alguma literatura estabeleça as recomendações que acabam de dar”.

Gastón Ares, engenheiro de alimentos e doutor em Química que integra o Núcleo Interdisciplinar Alimentação e Bem-Estar da Universidad de la República, participou da redação do projeto de 2018 e foi um dos acadêmicos mais envolvidos em todo o processo de rotulagem no Uruguai. Para o especialista, o mais preocupante no novo decreto é que implica outra prorrogação mais. Porque, embora tenha entrado em vigência, ainda não se começará a fiscalizar. Além disso, já há atores da indústria – como o presidente da Câmara Industrial de Alimentos, Fernando Pache – que manifestaram na imprensa que até meados do ano haverá produtos que não conterão os octógonos correspondentes. 

Segundo disseram publicamente diretores do MIEM, o novo decreto retoma as diretrizes de 2018. No entanto, embora em sódio e gorduras os limites sejam bastante similares, em açúcares não. “Nos laticínios, a quantidade de açúcar permitida é quase o dobro. É uma mudança muito importante, especialmente porque são consumidos pela população infantil e porque possuem um marketing muito intenso que os vende como produtos saudáveis”, explica Ares. Ele questiona: “Se a ideia era voltar ao decreto 272, por que tivemos um ano de postergação?”.

Eleições e marcha à ré

As postergações e marchas à ré que o processo teve deixaram em evidência o poder da indústria sobre a saúde. De 2018 a fevereiro deste ano, aconteceu de tudo. Houve prorrogações sobre a vigência do decreto ao gosto das empresas de ultraprocessados, foram apresentados cerca de dez recursos de revogação, criou-se toda uma ofensiva midiática protagonizada principalmente por representantes da indústria que apresentaram seus argumentos contra a rotulagem e houve – e este é um dos pontos mais importantes para compreender as estratégias empresariais e políticas – uma mudança de governo.

Os primeiros passos foram dados em 2016, quando se formou um grupo interdisciplinar para trabalhar na redação do decreto. Participaram dele representantes dos ministérios de Pecuária, Agricultura e Pesca; Indústria, Energia e Mineração; Economia e Finanças; Educação e Cultura; e Desenvolvimento Social e Saúde Pública. Também se somaram a Comissão Honorária de Saúde Cardiovascular, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Opas e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Em 2017, o governo abriu um período de consulta pública de mais de dois meses para quem quisesse dar sua opinião e, claro, a indústria opinou.

“Isso fez o decreto ser flexibilizado. Foram alterados os perfis dos nutrientes, e o prazo para que as empresas se adaptassem à norma, que seria de 12 meses, foi estipulado em 18 meses”, recorda a nutricionista Ráquel Sánchez. Ela integra a Aliança da Sociedade Civil para o Controle das Doenças Não Transmissíveis (ETN) – organização que liderou a campanha em defesa da rotulagem no Uruguai – e a organização Consumidores e Usuários Associados. Dessa forma, em 29 de agosto de 2018 foi aprovado o decreto Nº 272/18.

Coincidência ou intenção pura e simples, a entrada em vigor e fiscalização dessa norma foi marcada para 1º de março de 2020, no mesmo dia em que assumiria o novo governo. Essa decisão foi definida pela Frente Ampla, a coalizão de esquerda que comandava o país naquele momento. Era época de campanha eleitoral, na qual todos os partidos políticos recebem doações de empresas privadas.

A Frente Ampla perdeu a eleição para o Partido Nacional e houve uma mudança de viés político no país. Em fevereiro de 2020, a menos de duas semanas de o decreto entrar em vigência, o jornal El Observador revelou que o governo eleito, liderado pelo presidente Luis Lacalle Pou, não priorizaria sua fiscalização. E, 11 dias depois de assumir o governo, o hierarca que sucedeu a Tabaré Vázquez assinou outro decreto mediante o qual concedeu uma prorrogação de 120 dias para a implementação do decreto 272. O que aconteceu quando esse prazo venceu, em 28 de junho? Absolutamente nada. Em 2 de setembro do ano passado, o governo aprovou outro decreto (Nº 246/020) com o qual empurrou a data de entrada em vigor da rotulagem obrigatória para fevereiro de 2021 e determinou modificações à norma anterior.

Em vez de estabelecer o excesso de sódio, gordura e açúcar com base no sistema recomendado pela Opas, que se baseia na proporção de calorias por produtos, o decreto 246 foi mais exigente e fixou o cálculo em função da quantidade de nutrientes a cada 100 gramas ou 100 mililitros do produto. Mas esses exigentes limites foram apenas diversionismo. Aqueles estabelecidos meses depois com o decreto que enfim entrou em vigor este ano são mais satisfatórios para a indústria.

“Os 18 meses não foram arbitrários. Oh, que coincidência! A obrigatoriedade começava no primeiro dia de março. E depois veio a Covid, e o presidente saiu dizendo que ‘é preciso ativar os motores da economia’ e foi criado o Fundo Covid”, comenta o sociólogo Diego Rodríguez, membro da Aliança. Esse fundo foi criado para financiar as situações causadas pela emergência sanitária e recebe, entre outros aportes, contribuições de empresas privadas. O jornal uruguaio La Diaria solicitou, via um pedido de acesso à informação pública, o detalhamento das empresas que doaram dinheiro ao fundo, mas o governo se negou a fornecer tais dados.

Embora a Covid não tenha sido planejada, certamente o foram as táticas utilizadas pela indústria em seu favor. Serviu para que certas empresas pudessem fazer publicidade e exercer pressão “colaborando”. A Coca-Cola, por exemplo, doou uma ambulância ao Ministério da Saúde Pública e o McDonald’s ofereceu seus produtos comestíveis de graça aos profissionais de saúde.

Desde o começo da pandemia, o governo se apoiou no discurso da “saúde em primeiro lugar”. Mas permitiu que a indústria modificasse um decreto que pretendia ser uma ferramenta mais para lutar contra as doenças não transmissíveis, a principal causa de morte no Uruguai e no mundo. Doenças que, além disso, geram custos milionários para o sistema de saúde pública anualmente. Mas, sim, “a saúde em primeiro lugar”.

Uma ambulância bastou à Coca-Cola para ter foto e conversas com o presidente. Foto: gobierno Uruguay

Com a Presidência, a portas fechadas

Poucos dias antes de o decreto entrar em vigor, o hermetismo por parte do governo aturdia. Não se sabia quais seriam as modificações à norma anterior – mudança anunciada em dezembro – nem como seria fiscalizada. O Bocado tentou entrar em contato, sem sucesso, com autoridades do MSP, do MIEM e da Presidência. Mas nenhuma autoridade quis dar entrevistas sobre o tema. 

Embora durante boa parte do processo que começou em 2018 o MSP e o MIEM tenham sido os responsáveis por controlar os fios que movimentaram de um lado para o outro o rumo da rotulagem, diferentes fontes do âmbito da saúde e de organizações da sociedade civil envolvidas contaram ao Bocado que as últimas pressões para contemplar as reivindicações da indústria e estabelecer limites mais permissivos vieram da Presidência.

Enquanto isso, a atitude da atual gestão do MSP, comandado pelo ministro Daniel Salinas, foi a de respeitar as regras do jogo que haviam sido pautadas em 2018 e defender a rotulagem obrigatória como ferramenta de luta contra o avanço das doenças não transmissíveis. Ainda que o ministério tenha sido o único dentro do governo a travar essa batalha. Isso ficou demonstrado com a prolongação das negociações interministeriais que, por fim, culminaram no decreto que começou a vigorar este mês e que concede a liderança do processo ao MIEM.

Cabe recordar, também, que o atual diretor-nacional de Saúde, Miguel Asqueta, participou ativamente na defesa da rotulagem quando era membro da Aliança ENT, antes de assumir seu cargo atual.

Em uma discussão que supostamente diz respeito à saúde pública, em mais de uma ocasião a indústria assumiu as rédeas do assunto e deixou em evidência o quão naturalizado está o lobby no Uruguai. Desde as modificações que conseguiram com o primeiro decreto de 2018 até os últimos diálogos a portas fechadas com o atual governo – gestão na qual encontram maior receptividade –, a indústria demonstrou que pode embaralhar as cartas do poder político.

Especialistas patrocinados

Desde que começou a discussão sobre a possível rotulagem frontal, em 2016, até a entrada em vigor do decreto 34 no primeiro dia de fevereiro de 2021, as idas e vindas políticas estiveram fortemente determinadas pela interferência incisiva e constante da indústria. Esse setor contou com mais minutos e caracteres nos meios de comunicação locais do que os representantes da sociedade civil que militaram em favor da rotulagem. Como afirma o sociólogo Rodríguez, “houve um acesso diferenciado na imprensa, porque eles têm as portas e o poder econômico”.

Os atores que protagonizaram a batalha contra a rotulagem foram a Câmara Industrial de Alimentos (CIALI) – que possui 78 companhias associadas, entre elas, Coca-Cola, PepsiCo, Grupo Bimbo e Nestlé (empresa que inaugurou em 2018 sua segunda fábrica no Uruguai) –, com seu presidente Fernando Pache como principal porta-voz; e a Associação de Importadores e Atacadistas de Armazém (AIMA), com o advogado Martín Montoro, do escritório Dentons Jiménez de Aréchaga, como seu representante legal. Outros empresários também manifestaram sua postura crítica sobre a rotulagem em notas pontuais.

Os interesses das marcas de ultraprocessados também foram defendidos por meio de outros mecanismos não tão explícitos. A indústria também os colocou em funcionamento para falar através de “especialistas em” que se manifestaram em diferentes meios contra o decreto em momentos-chave da discussão. Então, somaram-se à discussão acadêmicos que – sem declarar seu conflito de interesses nem explicitar que por trás de suas avaliações técnicas poderiam estar ocultos os interesses das marcas – explicaram por que o decreto 272 não era adequado.

O Grupo Disco – proprietário das cadeias de supermercados Disco, Devoto e Geant –, por exemplo, é cliente da Espina Consultores. Essa agência de comunicação organizou um tour midiático tendo à frente duas engenheiras químicas da Faculdade de Química da Universidad de la República (instituição pública), que manifestaram seu desacordo com o decreto de rotulagem. Ambas docentes, Alejandra Medrano e Adriana Gámbaro deram entrevistas e apresentaram argumentos críticos sobre a rotulagem elaborados pelo departamento de Ciência e Tecnologia dos Alimentos (CYTAL) da faculdade.

Na voz de diferentes docentes, o CYTAL fez reparos ao decreto em entrevistas, mas, também, em instâncias acadêmicas, como um debate aberto para discutir a questão organizado em 11 de outubro de 2018 no auditório da Faculdade de Química. Algumas das críticas dos representantes desse departamento eram que as medidas de rotulagem não eram as mais adequadas para modificar os hábitos alimentares nem para reduzir a prevalência de doenças não transmissíveis como o sobrepeso e a obesidade. Também criticaram o perfil de nutrientes estabelecido na primeira norma. Outro argumento, que também foi um dos cavalos de batalha de representantes da indústria como a CIALI e a AIMA, foi que o decreto contrariava os compromissos assumidos pelo Uruguai no âmbito do Mercosul.

Durante o primeiro período de discussão, o CYTAL foi a única área acadêmica da Universidad de la República (UdelaR) que se opôs ao decreto. Em contrapartida, setores das universidade como o Núcleo Interdisciplinar Alimentação e Bem-Estar, e o Observatório do Direito à Alimentação, apoiaram fervorosamente o projeto.

Por sua parte, Medrano concedeu uma série de entrevistas em 2017 e 2018 nas quais declarou, entre outros pontos, que a rotulagem dos alimentos embalados (e criticou a utilização do termo “ultraprocessados” para estes) não era suficiente para reduzir os índices de obesidade e sobrepeso, ao contrário da educação. A doutora em Química também fez a ressalva de que a rotulagem exclui os excessos de alimentos que naturalmente contêm certos nutrientes, e exemplificou afirmando que o açúcar do mel é igualmente prejudicial ao que é incorporado a uma marmelada.

Além de docente da Faculdade de Química, a especialista é presidenta da Associação Latino-Americana e do Caribe de Ciência e Tecnologia de Alimentos (ALACCTA) – patrocinada, em suas revistas e congressos, por empresas como Coca-Cola e Danone. Mas Medrano não declarou seu conflito de interesse em nenhuma de suas intervenções públicas contrárias ao sistema de rotulagem.

Consultada pelo Bocado sobre o assunto, a docente respondeu que o que a levou a opinar sobre temas como o da rotulagem foi seu “compromisso com a sociedade e a possibilidade de levar a voz da ciência”. Ela disse também que não se sentiu pressionada. “Não tenho nenhum tipo de vínculo com a indústria, pois meu perfil é totalmente científico, como é o caso da doutora Gámbaro”.

Sobre os profissionais que integram a ALACCTA, ela afirmou que “no momento de dar nossa opinião, expressamos e relacionamos fatos baseados na ciência, informamos o fundamento de nossas opiniões com dados precisos e damos exemplos claros”. E acrescentou: “Baseamos nossos pareceres nas regulações internacionais. E em relação a esse caso a Codex já está tratando do tema e seria desejável que as normas dos países respeitassem suas diretrizes”.

Segundo a engenheira de alimentos, “o patrocínio de empresas do setor agroalimentar a eventos e congressos de ciência e tecnologia não envolve nenhum requisito e de modo algum implica que os membros da ALACCTA e suas associações-membros transmitam o parecer da indústria”.

Também consultamos Medrano sobre o vínculo com a Espina Consultores durante as entrevistas que ela e Gámbaro concederam em diferentes meios de comunicação, mas a profissional não respondeu nada a respeito.

Os eventos da Alaccta são um desfile de corporações afetadas por políticas públicas. E uma trincheira em defesa delas

Em uma entrevista no programa de rádio “No Toquen Nada”, Medrano participou juntamente com Alejandro Cattivelli. Na ocasião, o engenheiro, que participou como membro da Associação de Engenheiros de Alimentos do Uruguai (AIALU) para manifestar o posicionamento crítico da associação em relação à rotulagem, declarou seu conflito de interesse. É que seu sobrenome é familiar para os uruguaios: é parte da Cattivelli Hnos, uma das empresas mais importantes do país em matéria de carnes e embutidos, que claramente se vê afetada pela norma que estabelece a advertência octogonal.

Em diálogo com o Bocado, Cattivelli justificou suas críticas à rotulagem nos meios de comunicação dizendo que “na verdade, houve somente uma entrevista em que falei sobre o assunto”. Segundo o empresário, o programa de rádio convidou a AIALU para falar sobre um documento que continha a posição da associação sobre o decreto. “O posicionamento que manifestamos foi da associação, e não tinha nenhuma relação com meu vínculo com a empresa”, acrescentou.

Outra engenheira de alimentos que visitou vários meios de comunicação locais foi a argentina Susana Socolovsky, que nos últimos anos dissertou contra os sistemas de rotulagem em diferentes países da América Latina. No Uruguai, a maioria dos meios que a entrevistaram a apresentaram como especialista em rotulagem e como consultora em inovação tecnológica de alimentos. Mas a doutora também é integrante da ALACCTA e da Associação Argentina de Tecnólogos Alimentares (era presidenta até alguns meses atrás), que tem entre seus principais sócios a Coca-Cola e a Arcor.

Uma das últimas aparições de Socolovsky no Uruguai foi em seu papel como conferencista no Simpósio Internacional de Inovação e Desenvolvimento de Alimentos (Innova), organizado pela Latitud – Fundación LATU. Um dos argumentos que ela utilizou em seu discurso contra a norma foi que “o consumidor não está preparado para o uso de rotulagem frontal”. Organizadores do evento afirmaram que a doutora em Química foi convidada pelo comitê científico do Innova, que tem entre seus membros alguns dos docentes locais que criticaram a rotulagem na imprensa.

Além de pertencer a associações como ALACCTA ou AIALU, o vínculo de alguns dos atores da academia que manifestaram críticas ao decreto com a indústria se dá através do financiamento de projetos de pesquisa.

O sobrenome de Alejandro é conhecido dos uruguaios: é da Cattivelli Hnos, uma das principais empresas nacionais de carnes e embutidos

Que não seja lei

O fato de a norma que regula a rotulagem de alimentos ser um decreto e não uma lei deu mais capacidade de ação às empresas, que, entre 2018 e 2020, apresentaram recursos de revogação, mecanismo que serve para postergar sua entrada em vigor.

Por meio de um pedido de acesso à informação pública, o Bocado analisou um conjunto desses recursos. Entre as empresas envolvidas, encontram-se marcas de embutidos como Schneck e Sarubbi, importadoras como Sebamar – que trabalha com fabricantes como Nestlé e Garoto – e Ponty, e fabricantes de massas como Avanti e 5 Estrellas.

O vaivém das modificações na normativa e a falta de clareza sobre as datas de entrada em vigor e fiscalização alimentaram ainda mais a diferença entre algumas empresas. Por exemplo: enquanto a marca uruguaia Portezuelo rotulou seus produtos de olho em 1º de março de 2020, El Trigal, do mesmo país e concorrente da última em vários produtos, não o fez em vários deles – embora, em sua grande maioria, possuíssem excesso de açúcares e gorduras.

É importante destacar que, embora Lacalle Pou tenha prorrogado a entrada em vigor do decreto semanas depois de assumir a Presidência do Uruguai, as empresas não tinham por que saber disso. Supunha-se que antes do primeiro dia de março deveriam ter tudo pronto para vender seus produtos com a rotulagem. Apenas algumas a respeitaram. As demais esperaram a consideração do novo governo. E tiveram sorte.

Desse modo, as modificações do decreto 246 de 2020 acabaram prejudicando as empresas que nos dois anos anteriores vinham alterando seus produtos com base no cálculo de nutrientes em relação às calorias, como estabelecia o decreto 272. Com efeito, entre as últimas empresas a apresentar um recurso de revogação contra a rotulagem obrigatória estiveram a Avanti Paysandú e a 5 Estrellas, ambas dedicadas à fabricação e comercialização de massas e produtos de confeitaria.

Tais empresas alegaram que durante dois anos se prepararam sob os parâmetros do decreto 272, investindo, por exemplo, em pesquisa e desenvolvimento para a elaboração de produtos entre 10% e 20% reduzidos em sódio, gordura e gorduras saturadas. Dessa forma, afirmam no recurso, diminuíram a quantidade de produtos que deveriam ser rotulados. Mas, com as modificações feitas em 2020, expressam, “fomos prejudicados não somente por causa da variação nos limites, mas também porque o desconto de componentes provenientes de ingredientes naturais foi eliminado”.

Talvez agora algumas das empresas que conseguiram reduzir os índices de gorduras, açúcares ou sódio de seus produtos voltem a aumentá-los. As novas regras permitem.

Constituição, Mercosul e efeitos econômicos

Outra queixa, em forma de recursos de revogação, chegou de parte das empresas Juan Sarubbi S.A e Sucesión Carlos Schnek S.A – ambas elaboram e exportam produtos de origem animal (em sua maioria, embutidos que deverão conter a advertência por excesso de gorduras e sódio). Em 2018, essas companhias apresentaram, separadamente, recursos com argumentos semelhantes. Sustentaram que o decreto limita o direito à propriedade, indústria, comércio e profissão, que, ao estarem garantidos na Constituição, deveriam ser limitados por meio de uma lei de “interesse geral”.

Mas esse argumento foi rebatido pela Divisão de Serviços Jurídicos do Estado que, em resposta ao recurso apresentado pela Schnek, manifestou: “O direito à saúde é um direito fundamental inerente à personalidade humana, sendo, inclusive, pré-existente à Constituição, e esse tipo de direitos não necessita de uma lei para sua aplicação efetiva e vigência”.

Em 2018 e 2020, um conjunto de empresas importadoras representadas legalmente por Martín Montoro apresentaram recursos de revogação contra os decretos de 2018 e 2020. O principal argumento em que se apoiam é que a rotulagem deve estar em harmonia com a normativa do Mercosul e ser discutida no âmbito dessa organização regional. O que isso implicaria? Anos de discussão, e mais adiamentos.

Mas, enquanto Montoro se agarra à existência da necessidade de harmonizar com o Mercosul, Brasil e Argentina – dois dos Estados-parte com mais peso – discutem suas próprias normativas de rotulagem. E o segundo país o faz com uma lei que em seu conteúdo é mais exigente do que o decreto uruguaio. Isso não muda o argumento defendido desde 2018 pela AIMA?

O advogado porta-voz da associação disse ao Bocado que o fato de os países vizinhos discutirem suas regras de rotulagem “é algo bom, porque nos permite avançar no diálogo regional”. Então, não seria também positivo o Uruguai avançar nesse sentido? Segundo o advogado que representa os importadores, “não convém ao Uruguai ser ponta-de-lança” no tema.

Outro argumento sustentado pela indústria desde que se começou a discutir a rotulagem obrigatória está relacionado com seus supostos efeitos econômicos: a iniciativa aumentaria os preços, causaria perda de empregos, faria reduzir as vendas do mercado local, afetaria o comércio exterior. Mas há evidências suficientes que demonstram o contrário. Por exemplo, um estudo realizado pelos pesquisadores chilenos Camila Corvalán e Guillhermo Paraje, contratados pela FAO, concluiu que no Chile não houve impacto no emprego nem nos salários das indústrias do setor alimentício um ano e meio depois de a lei de rotulagem ter sido implementada.

Para além dessa discussão e da possibilidade de que aumentem os preços de produtos de péssima qualidade nutricional – e caso isso ocorra, não seria uma oportunidade para que o mercado local fomentasse os produtos naturais? –, a questão de fundo é a dos custos para a saúde pública representados pelos tratamentos de doenças não transmissíveis.

A nutricionista Sánchez destaca que o custo para o Sistema Integrado de Saúde do tratamento e da reabilitação das doenças não transmissíveis é milionário. Com efeito, entre as respostas técnicas da área de Nutrição da Direção-Geral de Saúde elaboradas para os recursos de revogação apresentados detalha-se as informações a respeito: “Estima-se que somente as doenças não transmissíveis custam anualmente ao país mais de 775 milhões de dólares em custos diretos (consultas, estudos diagnósticos, tratamentos etc.) e indiretos (perda de jornadas laborais e produtividade etc.)”.

Afirma-se, ainda, que o tratamento da obesidade “também representa um enorme custo econômico para o país, uma vez que se estima que o custo atual do atendimento associado com a obesidade seria de 500 milhões de dólares para o ano de 2020, o que corresponde a 1% do Produto Interno Bruto”.

Acontece que o custo milionário dessas doenças é oculto, por ser um gasto assumido há décadas, e a quantidade de mortes que causam não é identificada em curto prazo. Enquanto isso, o lobby não espera, e a indústria se move sob as regras do imediatismo. Em um país pequeno como o Uruguai, onde coloquialmente se repete que “todos se conhecem”, os interesses cruzados ficam ainda mais em evidência. Por isso, Sánchez argumenta que “em relação a medidas que contribuam para a saúde, como a rotulagem, o MSP ficou sozinho, porque os motivos econômicos prevaleceram”. Claro, ela se refere aos motivos econômicos de um setor em particular: o da indústria alimentícia.