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O rio é gente

por Edna Martínez e Paula Mónaco Felipe Colômbia

Río Atrato. Foto: Produce1895/ CC-BY 2.0.​

Publicado em 14 de junho de 2021

O rio Atrato na Colômbia é uma corrente de vida e diversidade que parece acolher no seu curso toda uma história de 500 anos. Contaminado, saqueado e violentado, mas também abundante, belo e repleto de resistências. Com centenas de comunidades morando às suas margens, ele é também protagonista de uma sentença judicial pioneira na região: uma sentença que o declarou sujeito de direito.

É um dia quente em Quibdó. Um desses dias em que inclusive respirar exige um esforço extra de energia e resistência. É abril, mas não faz diferença, aqui não há estações, só calor, sempre calor. Hoje faz 30 graus e o ar, úmido e denso, lembra que você está no coração da floresta. Em uma floresta distante da capital – a mais de 500 quilômetros de Bogotá – onde nós, um grupo de mulheres, nos atrevemos a desafiar as inclemências do clima fazendo nosso treinamento de boxe no ‘malecón’, área na beira do rio, em Quibdó.

O malecón é um dos poucos espaços públicos planejados para o lazer nesta cidade. A área conta com uma ampla plataforma, uma sacada, para o rio Atrato, um dos três mais importantes rios da Colômbia. Um rio largo que serpenteia o departamento de Chocó, um dos lugares mais biodiversos do mundo. Aqui, 80% das pessoas são – somos – negros descendentes de população escravizada, 10% são mestiços e outros 10%, descendentes de povos originários como os Embera, os Wauná e os Tula, segundo dados oficiais

Eu, Edna, sou uma mulher afrocolombiana. Socióloga, doutora e pós-doutora pela Universidade Livre de Berlim. Vivo entre Chocó e a Alemanha, a Europa onde estão muitas das empresas que contaminam os leitos da América Latina. Enquanto conduzo  nosso treinamento de boxe em Quibdó tenho algumas fantasias, ou melhor dizendo, alucinações. Imagino que em meio ao malecón há fontes de água potável –como em muitos lugares do mundo– e que depois de suar tanto poderíamos usá-las para beber e nos refrescar. Brinco com a ideia que depois de treinar poderíamos nadar nesse rio majestoso que temos aí do lado. Atravessar de uma margem até a outra e boiar, nos deixando levar pela corrente e olhar para o céu.

Um rio e suas pessoas. Foto: Miguel Tovar

Como não fantasiar com fontes de água cristalina e pura para beber se Quibdó é um dos lugares mais chuvosos do mundo? Aqui não para de chover: há entre 28 e 30 dias de chuva por mês, e a umidade nunca é menor do que 85%. Como não sonhar em nadar se neste pedacinho do mundo há 17 rios que alimentam o Atrato? Aqui se vive em meio à água: a que cai do céu, a que produz o corpo que transpira sem parar, a que está no ar e faz tudo com que tudo tenha cheiro e fique úmido o tempo todo, a água que se acumula nas ruas por falta de canalização, a que corre pelos rios e riachos. Água! Abençoada água!

Mas não tem água para beber.

Para saciar a nossa sede precisamos comprar saquinhos d’água de 100 ml que custam $100 pesos colombianos, o equivalente a US$ 0,027 dólares. Saquinhos pequenos que só dão para um gole, mais ou menos meio copo. A outra opção são garrafas de meio litro que custam $3.000, ou US$ 0,82. Cristal é uma das marcas de empresas que engarrafam e vendem água e fazem parte de multinacionais como a Cola-Cola e dos consórcios de Carlos Ardila Lüle, um dos homens mais ricos do continente. A maioria de nós optamos por comprar dois ou três saquinhos d ‘água, equivalentes a um copo e meio, porque pagar 3 mil pesos por cada garrafa é um luxo numa das cidades de maior taxa de pobreza da Colômbia

Estamos exaustas depois de uma hora e meia de treinamento e tentamos buscar a sombra sob as poucas árvores no malecón. A roupa está grudada no corpo por causa do suor e sentimos uma sensação de sufocamento causada pelo sol intenso, a atividade física e a umidade, e ainda tem o sabor de plástico da água que a gente bebe. Deixa a boca amarga, mas não pensamos muito nisso, afinal, ter água com gosto de plástico é melhor que ter sede.

Às vezes chega uma brisa que acaricia e refresca. O clima parece clemente, mas não dura muito: com a brisa chegam vapores fétidos, nauseabundos, pela mistura de águas com rejeitos acumulados nas ruas desta cidade sem esgoto ou canalização. A brisa também faz com que muitos dos saquinhos d’água, já vazios, sejam arrastados até o rio. Flutuam junto com mais lixo: restos orgânicos, plásticos, eletrodomésticos e móveis.

Minha mãe é chocoana nascida nas margens do rio San Juan, mas visitava de forma esporádica Quibdó e me contou como era este rio antigamente: “O Atrato era cristalino e a gente entrava na água para se banhar. Usavam as suas águas para cozinhar e lavar. Quando se olhava a água, dava pra ver os peixes e muitas espécies de pássaros na superfície”.

Não se passaram tantos anos, apenas décadas. Eu olho o rio agora e custo a imaginar que este lugar de cor cinza-esverdeado, de águas espessas, onde vejo mais lixo que pássaros, tenha sido alguma vez o lugar mágico e paradisíaco que a minha mãe descreve.

Eu nasci em Bogotá, a capital da Colômbia, e aparentemente pertenço a uma geração que vai ver a morte dos rios. Que vai ver como um sistema irracional de exploração de recursos e criação de lixo acaba com eles. Em Bogotá, as empresas de couro, borracha e as agroindústrias de alimentos e flores mataram o rio que passava por ali. Para uma moradora da cidade como eu, era normal uma cidade sem outra fonte de água que não fosse o encanamento.

Quando vim a Quibdó pela primeira vez, tinha o sonho de me encontrar com o Atrato, o rio majestoso, um dos mais caudalosos da Colômbia, que se estende por 670 quilômetros e parece desafiar a própria natureza correndo para o norte, ao contrário dos outros rios da região. Imaginava que ao chegar a Quibdó ia tirar os sapatos e brincar na água. Sonhava com nadar, atirar água, brincar, mergulhar e chegar até onde as minhas forças pudessem. Enfim, imaginava fazer todas as coisas que não pude fazer no rio de Bogotá.

Meu primeiro encontro não foi assim.

Guardo duas imagens desse dia. Um homem sem pudor algum abaixou as calças e cagou no rio, enquanto uma mulher num movimento quase automático jogou uma fralda suja que acabava de trocar do seu bebé. E uma canoa, em que duas pessoas pescavam no meio do rio, entre fraldas sujas, garrafas, colchões, plásticos de todas as cores, roupa, pneus e outros rejeitos.

O rio tão desejado era um esgoto. Foi transformado num esgoto de onde saem muitos dos peixes que alimentam as pessoas na região. Tanto que existe até uma forma de nomear a simbiose fezes-peixes, conta Avelina, uma nativa da região do rio Atrato, uma ‘atratense’ de 55 anos: “Chamavam a gente, as pessoas que moram deste lado do Chocó, de ‘come canchino’. O canchino é um peixe que gosta muito de fezes humanas. Então, quando o pessoal do sul do Pacífico queria nos ofender, falavam ‘come canchino’, uma forma sutil de dizer “come merda”’.

Durante as minhas primeiras viagens, perguntei para algumas pessoas sobre a cor da água, os cheiros e o lixo. Me responderam que sempre tinha sido desse jeito. Um vendedor da praça do mercado me contou com naturalidade da água turva: “Desde que eu me lembre está desse jeito. Essa é a cor do rio, mas é porque é muito arenoso (…) é por causa da areia que tem essa cor que parece sujo, mas não está sujo. A gente vê desse jeito, mas não está sujo”.

Acho que pensar assim pode ser uma estratégia para mitigar a dor e a impotência. Uma forma de não se questionar sobre as causas nem as consequências e, principalmente, não ter que tomar providências.

Superada a primeira impressão ruim, minha relação com o rio Atrato se tornou mais distante. Aprendi a ignorá-lo como muitas pessoas parecem fazer. Evito olhar para ele, evito passar perto. Não tenho prazer em olhar o reflexo do sol no entardecer porque só vejo lixo, até a brisa do rio é pesada e fétida, uma mistura de águas de esgoto e animais em decomposição.

Do lado do malecón onde treinamos está a praça central. Alí as mulheres vendem peixes de rio que seus parentes –geralmente homens– pescaram. Um dos peixes típicos e mais consumidos da região do Atrato é o bocachico. É de tamanho médio, cinzento, com uma boca pequena da que sobressaem muitos dentes pequeninos em forma de serra.

O bocachico é o prato favorito da minha mãe, ela poderia comer isso todos os dias. Geralmente é preparado frito, e depois são adicionados molho de tomate, cebola, coentro, molho picante e coco. Quando era pequena, não gostava do prato, porque tem muitos espinhos e tinha que comer com muito cuidado e atenção. Depois, quando aprendi “o que é bom” como diz a minha mãe, o bocachico se tornou um dos meus pratos favoritos, mas o romance durou pouco. Quando vi que o habitat do bocachico era um depósito de lixo e veneno, parei de comer.

É como a canção de Chocquibtown: “Eu não como esse peixe, mesmo que seja de Chocó. Esse peixe envenenado, esse eu não como!

Bocachico. Foto: Adobe Stock

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– “Negro!” – grita um, com um sotaque característico.

– “Negro!”— respondem da outra lancha, com o mesmo sotaque.  

Os amigos se cumprimentam de uma costa a outra, de uma lancha a outra, sobre o rio Atrato. Eugenio desacelera para se aproximar devagar e não espantar os peixes com o seu motor. Ao chegar, o fundo da lancha do amigo mostra que a pesca foi fraca: só vinte animais, vários ainda pulando tentando resistir à asfixia por estar fora d’água. Entre as risadas dos dois homens –ambos negros, ambos chocoanos– negociam a venda e o preço. Se despedem com carinho, Eugenio vai continuar navegando e seu amigo pescador vai voltar a lançar a rede.

“Antes os peixes chegavam até Quibdó, agora para pegá-los é preciso ir mais longe”, conta Eugênio Valoyes Murillo. Um homem alto, forte e, pela primeira impressão, muito sério. Alguém que escuta com muita atenção, estuda os gestos do seu interlocutor em aparente desconfiança, mas depois solta umas gargalhadas estrondosas. Gosta de brincar e de bater-papo e, sem dúvida, navegar sobre o “majestoso Rio Atrato”, como ele frequentemente se refere ao rio, ressaltando o adjetivo.

Eu, Paula, sou jornalista argentina e vivo no México. Vim para a Colômbia a trabalho. É a minha primeira viagem ao Chocó. Assim conheço esse rio gigantesco e marrom onde aprendo que existe uma barreira invisível: não é muito clara para mim, mas muito evidente para os peixes, que já não entram onde a água está mais contaminada.

Passamos perto de uma espécie de montanha de areia, algo assim como um vulcão que parece surgir da própria água. Por trás há uma coisa que parece um maquinário velho, desmanchado, enferrujado. Isso que mais parece uma ruína na verdade é uma draga, uma instalação para extrair ouro, platina, prata e zinco, processando os materiais com uma série de produtos químicos que contaminam tudo com metais pesados como mercúrio.

“O ouro é uma maldição”, diz Eugênio e faz uma pausa dramática, silêncio que ressalta o paradoxo. Continua: “É uma maldição porque atrai tudo que é ruim. No lugar que eu moro temos a sorte de que já não há minérios. A sorte”, diz ele, ressaltando cada sílaba.

O canoeiro me alerta que não é permitido gravar nem tirar fotos da draga. Fala isso sem nem se virar. Evita até o mínimo gesto de olhar para esse ponto de mineração ilegal que está a poucos metros de Quibdó.

Assim como essa, há dezenas de mineradoras na bacia do Atrato. O Chocó já conta com 80 anos de exploração, e 99,2% das operações têm sido ilegais, segundo um estudo da Universidade dos Andes.

A extração manual ainda continua, uma prática antiga, familiar e mais rudimentar, mas, a partir da década de 90 se multiplicaram as jazidas mecanizadas para a extração de ouro e platina. Grandes e destrutivos negócios que, em sua maioria, caem nas mãos de empresas transnacionais. Anglo Gold Ashanti, Muriel Mining Corporation, Gold Plata Resources, Votorantim Metais Co. Há muitos nomes em inglês e alguns em português na lista dos beneficiários das concessões.

Tal é a quantidade de minérios que são retirados da bacia desse rio que o Chocó é o maior produtor nacional de platina, 95,48%, e representa 25,4% do total de ouro do país, segundo dados oficiais. Em 2014, o Sistema Nacional de Royalties informou que foram extraídos 8,06 toneladas de ouro nessa região. Em 2020, o Estado Colombiano informou uma produção recorde de ouro: 47,6 toneladas em todo o país, ou 29% a mais do que em 2019.

A febre do ouro, que em outros lugares do planeta ficou no passado, é muito presente na região. Dragas, escavadeiras e máquinas aparecem uma atrás da outra nas costas desse rio caudaloso. Pelo rio que no século XVI foi a porta de entrada da colonização espanhola, saem agora barcos com ouro e minerais, levando as riquezas, mas também destruindo tudo por onde passam: a flora, a fauna e a paz de suas comunidades. 

Navegando pelo rio adentro, a cidade de Quibdó fica distante, e a água e a floresta invadem tudo. A água tem um cheiro fresco, a brisa é suave, e os sons da natureza são harmoniosos. Nesse momento, Eugenio nos explica o que é a Champa MIA, a cooperativa de turismo da qual ele faz parte, fundada em 2015.

É uma associação que tem o objetivo de gerar emprego e, ao mesmo tempo, cuidar do rio e defender as identidades que habitam a região. “Champa” é como eles chamam as embarcações antigas, feitas de madeira, que avançam sem motor. E “MIA” é um acrônimo de Mestiço Indígena Afro. “Nossas origens”, resume Eugenio com um sorriso de satisfação e orgulho.

“Nós fazemos tours, passeios, com percursos curtos e com pernoite. No majestoso rio Atrato temos 12 comunidades, para onde levamos turistas ou pessoas que desejam sair para conhecer a natureza, viver essa experiência, ver um belo amanhecer. Levamos [os turistas] para as reservas, os pântanos, para olhar as aves, ver como mulheres e homens da região transformam a cana de açúcar.”

Passeios que podem durar algumas horas ou até quatro dias dormindo dentro da floresta, ao lado do rio que em alguns trechos é tóxico e em outros é um paraíso. Eugenio descreve os tesouros escondidos da floresta: os vinte pântanos de Beté e as águas do afluente Munguidó, para desfrutar da flora e fauna. Paraísos como Orosito onde há pelicanos, macacos, esquilos e preguiças. E a experiência de visitar as comunidades onde só se chega por água, como Tanguí e La Baudata, habitadas pela população indígena emberá.

São 32 pessoas que hoje integram a Champa MIA: 15 lancheiros e 17 habitantes de comunidades ribeirinhas. Por isso definem o seu empreendimento como turismo comunitário: porque não chegam como visitantes. Este modelo de turismo sustentável é construído junto às comunidades. E todos ganham, desde os lancheiros até quem compra seus produtos, desenvolvem propostas de acordo com as suas realidades e coordenam convênios educacionais com instituições.

Tanto em terra como navegando, Champa MIA tenta contribuir para o cuidado do rio. Colocam sacos de lixo ao redor do malecón para que as pessoas não joguem lixo nos rios e a cada dia recolhem os sacos cheios. Também deixaram de trocar o óleo das suas lanchas dentro da água, uma prática comum em Quibdó. “Recolhemos os garrafões, e quando não tem, a gente compra. Também as mulheres que fritam comida e jogam o óleo no rio, a gente fala pra elas ”não mais’”.

“Por que as pessoas jogam lixo no rio?”, pergunto. “Bom… “, diz ele, com uma pausa de quem busca paciência para organizar ideias. “Infelizmente temos que falar com clareza. Tem gente que não se conscientizou do que é o rio Atrato… é como se não lhe dessem importância. Isso o rio leva, falam, mas não foram até a foz para ver como está lá. Aqui no majestoso rio Atrato são 13 braços até sair no mar. E agora a gente só tem um, porque 12 estão fechados de tanto lixo, não dá pra passar, tudo enche de sedimento.

Enquanto o lancheiro explica isso, lembro de um livro de Joseph Conrad: “O rio parecia sair do nada e fluir para nenhuma parte. Fluia através de um vácuo”. No livro, Um Posto Avançado do Progresso, há uma dissociação homem-natureza, neste relato sobre comércio e extrativismo já em 1897.

“Infelizmente o povo chocoano se tornou indiferente ao rio”, Eugenio me traz de volta ao presente que é muito parecido com o passado.

Para Eugênio a saída está no que ele chama de “pedagogia”: sair para as ruas, buscar os meios de comunicação locais, divulgar em cada canto para conscientizar. E também sugere multas, “porque quando pesa no bolso das pessoas, aí sim”.

Pedagogia é uma palavra que Eugênio usa com frequência. Porque sem a ajuda do Estado – ele diz que nunca recebeu nem um saco de lixo–, a palavra é a sua principal ferramenta. Os funcionários permitem negócios transnacionais e não estão preocupados em limpar o rio. A corrupção também é outro problema.

“O majestoso rio Atrato tem os mesmos direitos que você e eu”, diz ele, levantando as sobrancelhas, com um sorriso provocador. “Você sabia?”

A defesa da pesca artesanal, o combate à mineração ilegal e a redução do desmatamento indiscriminado são desafios para os Guardiões do Atrato e para todos que sabem que o rio faz parte de sua identidade.

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O rio Atrato foi declarado sujeito de direito. Algo assim como uma pessoa que deve ser protegida, cuidada e curada. Em 2016, a Corte Constitucional da Colômbia, a máxima instância jurídica do país, deu uma sentença histórica (e única) no continente americano, a T-622.

Richard Moreno, de 48 anos, tem muito a ver com essa conquista. É advogado chocoano e ativista afrocolombiano, sua identidade é vinculada ao rio desde o primeiro minuto da sua vida: “Nasci numa canoa do rio Tangui, dentro do rio”. Sua mãe colhia milho com o avô de Richard quando sentiu as contrações. Seu avô a tirou do morro e subiu com ela numa canoa para levá-la para a cidade, mas “no trajeto teve que ajudar no parto porque eu nasci. Um 14 de setembro de 1972 ao meio-dia, numa canoa no rio. Minha afinidade com o rio é de nascença”.

Como ativista e advogado, tem acompanhado as batalhas legais em defesa do Atrato e seus afluentes. Um longo caminho “de construção coletiva”, destaca, porque começou em 2014 no Fórum Interétnico Solidariedade Chocó (Fisch) que reúne 120 organizações da região. Elas conseguiram a sentença inédita, “uma decisão que deixou até a gente surpreso”, porque tinham solicitado que o Estado descontaminasse e preservasse o rio, mas os magistrados foram além ao declará-lo sujeito de direitos, como se o considerassem como uma pessoa”. Um rio-ser.

Inédito, inusual, mas na realidade lógico. Se empresas como a Coca-Cola são consideradas sujeitos de direito, por que não os rios?

“O que a corte fez foi reconhecer a relação homem-natureza, a relação do povo étnico com o rio”, explica Moreno. Como os juízes que vivem na capital, nas cidades, puderam entender isso? Moreno e as organizações do Chocó os levaram para ver com seus próprios olhos, conhecer e escutar as comunidades do lugar, além de visitar mineradoras ilegais e sentir na própria pele o majestoso rio Atrato.

Moreno é agora Procurador do Departamento de Chocó. Fala com a formalidade de todo advogado, mas tentando traduzir tudo em narrativas compreensíveis. Enumera siglas e muitos esforços para defender a pesca artesanal, combater a mineração ilegal, reduzir a exploração florestal indiscriminada e uma infinidade de ações jurídicas de proteção do meio ambiente. Esta tem sido a sua vida: filho de um líder afrocolombiano, formado nas lutas camponesas, comunitárias e negras, escolheu se especializar em assuntos ambientais. Como advogado, “me formei no dia 6 de agosto de 1998. No dia 7 de agosto já estava em Quibdó e, no dia 8, tinha um escritório em Cocomacia (Conselho Comunitário Superior da Associação Camponesa Integral do Atrato).

Cinco anos depois da histórica sentença, o tempo de comemorações já ficou para trás. Agora é momento de fazer um balanço do que foi conquistado. Moreno admite que até agora as soluções têm sido “mornas” e os avanços, parciais: “Ainda que já tenham feito os estudos sobre a contaminação, ainda não iniciaram a dragagem. (Também) não conseguimos o fortalecimento da soberania alimentar das comunidades e dos sistemas tradicionais de produção”.

“Conseguimos diminuir a atividade mineradora em muitas comunidades com maior controle e maior pressão de organismos do Estado. Isso não significa que não continue a atividade ilegal, continua, mas foi possível retomar um pouco da atividade pesqueira”. Dentre os avanços, destaca uma crescente consciência entre os moradores, “porque antes até lixo hospitalar acabava no rio” e agora “foram criadas muitas organizações ambientalistas”. Também como ponto positivo ele destaca a interlocução permanente entre o Estado e as comunidades através do Guardiões do Atrato, um grupo de vigilância ambiental criado depois da sentença T-622. “Antes isso não existia, [para qualquer governo], praticamente tínhamos que pedir licença para Jesus Cristo. Colocamos a Colômbia, o país, para falar do rio Atrato. E não sei se ficou na moda, mas a partir da sentença muitos outros rios foram declarados como sujeitos de direitos: Cauca, Bogotá, Amazonas”.

Ele calcula que vai levar entre 10 a 15 anos para notar alguma melhoria e, para isso, não podemos desanimar. Banessa Rivas López é guardiã do Atrato, uma das 7 mulheres e 7 homens que integram o grupo. “O que nós fazemos é representar o rio, falamos por ele”, diz com o barulhento fundo chocoano, que sempre inclui música, vozes, buzinas de motos e todo tipo de som.

Seu modo de falar oscila entre o orgulho e o cansaço. Porque não se ofereceu para o cargo, ela foi eleita. Tinha dúvidas sobre aceitar, mas no final assumiu a responsabilidade: “Quero colocar meu grãozinho de areia neste sonho. Esperamos que possam recolher muito bons frutos para nossos filhos, nossos netos e para as pessoas do Atrato”.

Banessa também teve dúvidas sobre se tornar guardiã, porque isso significava multiplicar a sua carga de trabalho. Ela tem 33 anos, um filho de 12 e em breve será mãe pela segunda vez. Faz graduação de Trabalho Social e ajuda a mãe. Sua nova responsabilidade não lhe dá paz, nem salário: “os guardiões não têm salário do Estado. Fazemos o trabalho voluntariamente. Em algumas ocasiões, quando temos que fazer reuniões, os ministérios apoiam pagando o transporte, alimentação e, às vezes, também a hospedagem. Neste momento não tenho emprego. Para dizer a verdade, às vezes nem eu sei como sobrevivo”.

“É um trabalho voluntário que se faz por amor ao rio”, diz Vanessa sentada diante do rio e se preparando para parir o segundo filho. Hoje está em Quibdó, mas seu lugar natal é a Isla de los Rojas Negra, município de Murindó, no departamento de Antioquia. É uma mulher jovem e muito séria enquanto fala das suas responsabilidades, mas depois sua expressão se suaviza: “Que lindo seria se o rio estivesse limpo, sem contaminação. Que a gente pudesse beber água sem medo. Eu lembro que a água era clara. Principalmente no verão era de cor azul ou verde claro, mas principalmente azul. A gente ia nos barcos e de repente tocava na água, pegava com a mão, subia a água. Tinha um sabor… bom, de água gostosa.”

“Agora tem que ferver. Às vezes, quando tem assassinatos, os cadáveres descem pelo rio. Isso limita um pouco a tranquilidade, muda a nossa paz”. O som da sua voz diminui, endurecida outra vez, e conta que, pela insegurança, já não se pode navegar de noite.

Entardecer nas margens do rio Atrato. Foto: Andrés Varela / CC-BY 2.0.

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Não é só a mineração e a violência que dificultam tudo. Aqui entre 60 e 80% das pessoas não têm o básico para uma vida digna, segundo dados oficiais. Ainda que navegando pelo rio ou percorrendo as ruas estreitas de Quibdó seja difícil acreditar que a cifra real não seja 100%, porque não se vêem casas ou bairros ricos, não se vêem pessoas sem carências econômicas. Aqui a natureza é de uma riqueza exuberante, mas as populações são empobrecidas.

A expectativa de vida nacional é de 70,3 anos, mas em Chocó é de só 58,3, e a taxa de mortalidade materna é o triplo da média do país. A mortalidade de crianças menores de 5 anos também é maior na região, segundo dados das Nações Unidas.

Chocó é um estado rural –70% dos seus municípios estão nessa zona– e diverso: 74% da população se declara afrocolombiana, 11% indígena (povos Embera, Embera Katío, Embera Chamí, Tules ou Cunas e Waunaán) e uma minoria de brancos, ainda de acordo com dados da ONU.

Em condições de sobrevivência tão complexas, é difícil promover a ideia de cuidar do rio e mantê-lo limpo. Também é difícil implementar uma sentença judicial exemplar na jurisprudência, mas que não prevê boas ferramentas para aplicação. Tudo isso numa realidade onde os contaminadores são agentes transnacionais, e os defensores são guardiões e ambientalistas locais, sem orçamento nem para ligações telefônicas.

A comunidade internacional, que aplaudiu a sentença emblemática, tem feito pouco para apoiar projetos concretos na bacia do rio. Não fez nada, dizem as vozes consultadas para esta reportagem. Entretanto, os “atrateños” ainda têm esperança.

O procurador Richard Moreno confia que os interesses econômicos e políticos não serão mais fortes que os povos. “Somos uma cultura da água. Se você navegar pelo Atrato e outros rios da fonte do Pacífico e passar um homem cantando, imediatamente dá pra ver que tem um amor aí. Se passar uma mulher remando forte, dá pra ver que existe interesse. Os jovens se apaixonam nas canoas, nas praias. Essa relação entre os povos étnicos e as bacias do rio garante a sobrevivência das comunidades”.

O canoeiro Eugenio Valoyes conta: “Somos um povo que não gosta de viver na cidade, mas na margem do rio. A gente dormia com o barulho dos pássaros e acordava com o barulho dos pássaros”. Também havia grupos de “chigüiros” (capivaras), “a gente só vê esses animais na TV agora. Outros animais também estão passando dificuldades, porque não conseguem comer. Na natureza também ocorreram despejos, como com os seres humanos”. O cooperativista e ecologista fica bravo mas também confia: as suas esperanças são voltar para o passado. 

Enquanto isso, Edna anda por Quibdó. Passa pelo malecón, um porto vivo onde a cada manhã chegam carregamentos de banana e montanhas de peixe. Vai pelo bairro de San Vicente, onde as casas eram construídas olhando para o rio. Com o crescimento da cidade tudo mudou de sentido, agora as portas dos lares dão para um rio de motocicletas, e o Atrato se tornou um pátio traseiro, muitas vezes o seu lixão e privada. Sua conclusão: “Até parece que não só as casas, mas a sociedade de Quibdó dá as costas para o rio”.

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A lancha da Champa MIA chega em La Baudata, uma pequena comunidade de indígenas embera a poucos quilômetros de Quibdó. Homens e mulheres de sem camisa, saias coloridas, colares de continhas coloridas típicas e algumas tatuagens no rosto, os costumes da sua identidade ancestral. Há muitas crianças, nuas, com barrigas inchadas de parasitas. Sob as casas de madeira e telhado de folhas de palma, elevadas para escapar das inundações, há muito lixo plástico. Dá pra ver garrafas de bebidas açucaradas, sacos e embalagens de iogurte.

Recebem Eugênio com respeito. Conversam sobre um porco que comeu o cultivo, de opções para semear e datas para os próximos tours. Eugênio sugere que eles ofereçam o artesanato, mas apresentando a pessoa que fez os colares e pulseiras para que receba reconhecimento. É uma mulher baixinha, tímida e jovem. Se chama Estela, tem uma tatuagem em cima do nariz.

Antes de ir embora, Eugênio fala para eles sobre a importância de recolher o lixo. A lancha, com pintura nova, volta a navegar sobre o majestoso rio Atrato, que parece não ter fim com mil braços que aparecem em cada curva. Dá pra ouvir a floresta, as crianças comprimentam enquanto mergulham nus, e a brisa voa sobre a água marrom. Formam uma lembrança inesquecível.

É um dia de calor em Quibdó.