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Terra nossa

por Carla Gago Argentina
Publicado el 20 abril 2021

A América Latina é a região mais desigual do mundo em termos de acesso e distribuição da terra. Agronegócio, espoliação histórica e presença de corporações estrangeiras são a nossa realidade atual. Camponeses sem terra, forçados a arrendar terrenos para, no fim, pagar mais do que ganham. Países inteiros cobertos de monocultivos com rios de agrotóxicos.  Mas também há alternativas e campos que são trabalhados com justiça e saúde, campos soberanos. Tesouros de sementes. Reservas para preservar nossa alimentação.

I. Argentina: as mãos que alimentam

Desde criancinha, Virgínia Crispin Condori respirou o ar do campo. Seu pai cuidava de animais –500 lhamas, 300 ovelhas, 15 vacas e 8 burros– trabalhava produzindo queijo, cultivava verduras e transportava lenha. Em Oruro, um estado boliviano localizado a 200 quilômetros da capital La Paz e reconhecido mundialmente pelas riquezas minerais. Mas ali também se cria gado e plantam batata, quinoa, feijão-fava e cevada.

O pai de Virgínia cuidava de tudo isso, mas nada era dele. Virgínia nasceu e cresceu em terra alugada, em uma casa sem luz nem água potável. Para ter condições mínimas de higiene, ela e a família tinham que percorrer um caminho de 200 metros várias vezes por dia.

Junto ao seu pai, ela aprendeu a desidratar batata e carne para elaborar chuño e charque. Aprendeu também como cozinhar chairo, um prato típico feito com cordeiro e verduras: improvisando um forno no chão, cobrindo a superfície com torrões de terra sob os quais se acende o fogo. Depois a comida é colocada por cima, coberta com mais pedras, e tudo é tapado com sacos úmidos de cimento. Por cima de tudo isso, se coloca mais terra para criar um espaço no qual a comida ficará cozinhando durante 45 minutos.

Hoje, com 47 anos, Virgínia Crispin Condori continua ligada à terra à sua maneira: cozinhar e produzir alimentos sem agrotóxicos. “Junto com o meu pai, semeávamos respeitando o solo. Sem substâncias químicas, a verdura tem um sabor diferente e me lembra a minha infância. É como se eu estivesse lá”, diz ela. 

Virgínia tem o cabelo escuro e, enquanto trabalha, o deixa amarrado. Ela gosta de preparar comida que a lembrem da sua Bolívia natal. O caminho que trilhou não foi fácil. Primeiro mudou para Tarija, no norte da Bolívia, onde casou e teve seus três primeiros filhos (hoje com 27, 24 e 21 anos). Depois decidiu atravessar a fronteira para tentar a sorte na Argentina, onde mora desde 2005. Deixou os filhos sob os cuidados da avó. “Vim sem conhecer a Argentina. Aqui conheci o amor da minha vida, tive mais dois filhos e fiquei. Acho que vou ter que morrer aqui”.

Nos primeiros anos na Argentina, ela trabalhava produzindo verduras e hortaliças numa fazenda. Não tinha nenhum conforto além de um pequeno quarto. É a realidade habitacional dos trabalhadores rurais em toda a Argentina: precária. As instalações onde moram os agricultores, na sua maioria construídas com ripas de madeira e sacos plásticos, não cumprem com as condições mínimas de segurança e higiene. Muitos dormem no meio de seus pertences, materiais de trabalho ou tanques de agrotóxicos, o que representa um risco para a saúde. Virginia ainda não recebeu vários salários dessa época. 

Além disso, seus colegas de trabalho debochavam do seu sotaque boliviano. A experiência de Virgínia é igual à de muitos imigrantes bolivianos na Argentina que sofrem diariamente por causa da sua origem, jeito de falar ou cor da pele. Segundo o mais recente censo populacional, na Argentina moram mais de 345 mil bolivianos, é a segunda maior comunidade imigrante depois da paraguaia. A partir da década de 60, a chegada dos bolivianos foi aumentando e, segundo estimativas do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA), a comunidade boliviana produz 80% das frutas, verduras e hortaliças do país.

Depois das verduras, Virginia continuou trabalhando em outro tipo de campos. Em 2009 cultivava flores no bairro Las Banderitas da cidade de La Plata, vizinha de Buenos Aires, quando soube que o líder camponês Nahuel Levaggi organizava reuniões de agricultores da região. Ele exigia algo inusitado: dar alimento ao povo e ter terras próprias. Virgínia ainda não sabia, mas, esses primeiros encontros dariam início ao movimento nacional União de Trabalhadores da Terra (UTT). 

Hoje, doze anos depois, a UTT é a organização camponesa mais forte da Argentina na luta pela soberania alimentar, o comércio justo e a agroecologia. Um dos movimentos que mais claramente revelam as injustiças do campo. Na pandemia, os trabalhadores rurais não puderam se isolar ou parar: trabalharam ainda mais que antes nos cultivos. Distribuiram mais de duas mil toneladas de alimentos e também fizeram doações, uma Rede de Refeitórios por uma Alimentação Soberana e verdurazos, uma ação de protesto que consiste em vender produtos a um preço simbólico nas praças de todo o país. 

A desigualdade no acesso e distribuição de terras se estende a toda a América Latina. Segundo um relatório da OXFAM, 1% das propriedades rurais de maior tamanho, de mais de 2 mil hectares, concentram mais da metade das superfícies agrícolas produtivas da região. Por sua vez, as pequenas propriedades possuem menos de 13% da terra produtiva e ocupam uma superfície média de 9 hectares na América do Sul e 1,3 hectares na América Central. Na Argentina o despejo de terras –mais de 40% entre 1988 e 2018, implica que cada vez há mais pequenos produtores com menos terras para trabalhar. Enquanto isso, o agronegócio concentra grandes extensões com um modelo produtivo baseado na exploração e destruição da natureza.

Em 2014, a UTT realizou um bloqueio com camponeses que parou a rodovia Buenos Aires – La Plata, uma rota fundamental para o comércio no país. Exigiam crédito facilitado para a compra de terras, maquinário de uso coletivo e um circuito de comercialização próprio. Propunham colônias agroecológicas para produzir alimentos saudáveis, acessíveis e sem intermediários. Protestaram durante três dias entre ameaças de repressão da Polícia Nacional. A Virgínia estava lá.

Os camponeses estavam cercados pela polícia, lembra ela. “Sempre fui corajosa então disse para meus colegas: ‘Vou falar com eles’. Desse jeito fui virando a porta-voz da UTT. Eu ia nas rádios, nos canais de TV e dava entrevistas”. Houve negociações muito árduas e a UTT ganhou algumas batalhas: o Estado cedeu terrenos para o movimento. Fundaram então a Colônia 20 de Abril – Darío Santillán, nome de um manifestante assassinado pela polícia. Nessa comunidade moram atualmente 34 famílias, na sua maioria de ascendência boliviana, com um hectare para produção de frutas e verduras agroecológicas. A propriedade tem 84 hectares, mas só cultivam 54 e preservam o resto como reserva natural de mata.

Na sua colônia, seu novo mundo, a terra está dividida de acordo com o cultivo. As cores das frutas e verduras são vibrantes, e as plantas crescem fortes. Confluem aromas, toadas e projetos comuns. O cheiro de terra molhada entra pelas janelas das casas e se funde com os cheiros que escapam das panelas. Os pássaros cantam e acompanham o trabalho diário dos produtores.

A colônia tem uma escola especializada em agroecologia que teve seus primeiros diplomados em 2018 e abriu caminho para o próximo sonho: uma universidade camponesa. Na colônia, o trabalho é coletivo e solidário. Na assembleia, organizam os pedidos de cestas de alimentos, decidem o quanto vão produzir e o preço de venda de suas frutas e verduras. Há um ano somaram um novo ponto de comercialização e contam com o Armazém de Ramos Gerais. Dessa forma, quem quiser comprar seus produtos não precisa de intermediários. 

A Virgínia é parte dessa cooperativa. Já não é a empregada de uma fazenda, não tem mais um baixo salário nem é discriminada. Agora planta alho-poró, tomate, pimentão, berinjela, alface, repolho roxo, vagem, couve-flor, cenoura, rúcula, acelga, couve, erva-doce e beterraba. O que ela mais gosta é de ser independente, ter a própria casa, produzir sem ordens de ninguém. Fala da sua horta com emoção e orgulho. 

Seu novo mundo não está completo, tem também assuntos pendentes. Ainda falta que cada família consiga o título do seu hectare produtivo, porque não arrendam mas também não têm nenhuma comprovação de propriedade da terra. A UTT exige isso para a sanção de uma Lei de Acesso à Terra. Em outubro de 2020, apresentaram pela terceira vez –a primeira foi em 2016 e a segunda em 2018– um projeto que contempla a criação de um programa de crédito especial, de longo prazo, voltado a pequenos produtores para a compra de terras para trabalhar e uma moradia digna. 

“É importante que o Estado garanta o acesso à terra para todos os pequenos produtores. Se os agricultores trabalham em péssimas condições, o alimento que produzem não vai ser o melhor. Mas com trabalho digno é possível garantir alimento saudável para toda a população”, diz Agustin Suarez, representante da organização.

Conseguir o título da terra é particularmente difícil para mulheres rurais. Rosalia Pellegrini, Coordenadora Nacional da Secretaria de Género da UTT diz que ainda há muito para se fazer a esse respeito. As mulheres trabalham nas hortas e também nas tarefas domésticas, sem que isso lhes traga qualquer vantagem: “Nós, mulheres trabalhamos nos campos, mas as decisões sobre a propriedade da terra e os acordos com os donos continuam voltados aos homens das famílias”. 

Segundo dados da OXFAM, na América Latina as mulheres representam menos de 12% da população beneficiada pelas políticas de reforma agrária. “A violência que é exercida sobre o território é a mesma violência que vivemos, nós mulheres, em nossos corpos e nos rendimentos cada vez mais precários que recebemos pelo nosso trabalho”.

II. Paraguai: soja e grilagem

É fevereiro e as cigarras cantam sem parar. Pascual Figueiredo procura proteção na sombra, enxuga o suor do rosto e bebe um pouco de água fria. No Assentamento 3 de Julho, um terreno de 1.792 hectares no estado paraguaio de Canindeyú, no distrito de Maracaná, a temperatura ronda os 40 graus no verão. Pascual é agricultor e integrante da Organização de Luta pela Terra (OLT), nascida em 1993 para defender os direitos dos camponeses, promover a reforma agrária e a democratização da terra.

Nesse assentamento residem 130 famílias camponesas desde o ano de 2019. Ocupam a terra para exigir 600 hectares. Cultivam mandioca, abacaxi, gergelim, feijão, amendoim, frutas e hortaliças para consumo interno. Também constroem uma grande horta para todas as famílias.

A área está coberta de árvores de diferentes formas e alturas. O mato entra nas moradias que as famílias conseguiram levantar. As crianças brincam no meio dos cultivos, alimentam as galinhas que andam soltas e aprendem a conviver com a natureza. Entretanto, o agronegócio os cerca. Neste canto do Paraguai se enfrentam dois modelos produtivos antagônicos. E isso é algo muito raro porque na maior parte do país o agronegócio já devorou o pequeno produtor.

“Ao nosso redor, tudo é monocultivo e sojização. O agronegócio está dirigido por grandes empresários e narcotraficantes, eles usam todo tipo de agrotóxicos, principalmente, glifosato”, conta Pascual Figueredo, de 27 anos. Quando tinha 12, iniciou a militância no Movimento Camponês Paraguaio (MCP) e, aos 21, viajou ao estado do Paraná, no Brasil, para estudar na Escola Latinoamericana de Agroecologia (ELAA). É um homem de olhar acolhedor e no tempo livre toca violão.

O Paraguai é um dos países com pior distribuição de terra e maior taxa de desigualdade da América Latina. Apenas 2,58% da população concentra 85,49% das terras agrícolas de mais de 500 hectares, segundo uma pesquisa do sociólogo Ramón Fogel.

Viver em um assentamento, em terra ocupada, é estar em constante estado de alerta. O Estado os considera criminosos, e as violências chegam na forma de agressões, assédio e, inclusive, assassinatos. Segundo o “Relatório Chokukue 1989-2013: o plano sistemático de execuções na luta pelo território camponês” da Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy), no período 1989-2013 foram registradas 115 execuções extrajudiciais e dois desaparecimentos de dirigentes e integrantes de organizações camponesas de luta pela terra. Só em 8 casos houve condenação penal dos autores materiais. Posteriormente, entre 2013 e 2015, houve casos de violência contra comunidades camponesas prejudicadas por fumigações de campos de soja.

Morar em um assentamento também é saber que pode acontecer um despejo violento como já aconteceu em 26 de dezembro de 2019. Uma operação organizada pela promotoria de Curuguaty chegou nas primeiras horas da manhã e destruiu casas e pertences dos residentes. A partir desse momento os camponeses criaram uma Coordenadoria distrital com a participação de seis comunidades “sem terra”. As autoridades voltaram a tentar o despejo várias vezes, mas os camponeses se organizaram e conseguiram manter a ocupação.

No Paraguai, o processo de despejo e apropriação de terras se acentuou durante a extensa ditadura militar encabeçada por Alfredo Stroessner (1954-1989), e se estendeu inclusive anos depois. Segundo um relatório da Comissão da Verdade e Justiça, entre 1954 e 2003 foram entregues 7.851.295 hectares de forma irregular –19,3% do território nacional– a empresários estrangeiros, funcionários públicos e militares do alto comando. Hoje essas terras, conhecidas popularmente como tierras malhabidas (terras mal tidas), se destinam principalmente à produção de soja.

Em 2014, o então Procurador Geral da República, Alfredo Moreno, se lançou em um trabalho conjunto entre o Instituto Nacional do Desenvolvimento Rural e da Terra (INDERT), e o Ministério do Interior, o Ministério Público, o Poder Judicial e a Promotoria Geral da República para recuperar terras com base no relatório da Comissão da Verdade e Justiça. Um dos casos mais emblemáticos foi o da Colônia Santa Lucia, em Itakyry, no estado do Alto Paraná onde o INDERT recuperou três mil hectares e assentou 575 famílias. Ainda que esse anúncio prometia grandes ações, os avanços concretos têm sido escassos e a Procuradoria não apresentou mais relatórios de atividade. Pascual, o camponês de 27 anos, diz que vão continuar lutando até conseguir ter a sua terra: “Para nós, ter nossa terra significa ter uma base para o sustento mínimo. Por isso aqui nos unimos entre povos e fazemos nossa luta patriótica para recuperar as terras”. 

Belén Romero também é camponesa. Nasceu no campo, tem 30 anos, olhar profundo e cabelo encaracolado do mesmo jeito que a sua filha Ñasãindy, de 3 anos. Tem 11 irmãos, quase todos migraram para a cidade, mas ela ficou com os pais, na sua terra.

Mora na vila Laguna, em Itakyry, a 435 kilómetros de Asunción, capital do Paraguai. Em 2013, foi a uma reunião da Organização de Mulheres Camponesas e Indígenas Conamuri, onde escutou pela primeira vez sobre agroecologia e a batalha que pode existir em torno das sementes. Compreendeu a importância de permanecer na lavoura, perto da família, e manter a suas raízes. Desde então trabalha em resgate, conservação e reprodução de sementes nativas e crioulas (tradicionais, sem hibridização). “As pessoas mais velhas vêm aqui e compartilham as sementes que estão em extinção”, explica. “E me perguntam se tenho outras que elas podem ter plantado em algum momento da sua vida. Eu gosto muito desse processo de poder compartilhar com outras pessoas”.

Enquanto Belén Romero vai criando um banco de sementes nativas, a sua família trabalha com a elaboração artesanal de erva-mate, que vendem em saquinhos pela vizinhança. Não comercializam em grande escala porque não conseguem competir com os produtos que entram de contrabando da Argentina e do Brasil.

Da mesma forma que eles, a maioria das famílias dessa área cultivam e produzem lácteos para consumo próprio, em terras alugadas de grandes proprietários. “Isso dificulta muito a organização popular porque o inimigo está muito presente. Para muitos é difícil denunciar fumigações, e nesta área temos muitos casos de crianças que morrem intoxicadas”.

No Paraguai a soja está em todo lugar. Segundo a OXFAM, as plantações ocupam 68,4% da superfície cultivável do País, desalojando outras variedades de cultivos. Em 2014 mais de 80% das exportações estiveram em mãos de 8 corporações agroexportadoras: Cargill, ADM, Bunge, Compañia Paraguaya de Granos, Noble, Grupo Favero e Luis Dreyfus.

Antes da invasão da soja, nesta zona leste do alto Paraná havia mata nativa. Durante a ditadura as terras caíram nas mãos de sócios políticos do ditador Stroessner e se iniciaram os despejos. Muitas famílias resistiram, mas outras foram expulsas e empurradas para a pobreza. Hoje a nova ditadura é o agronegócio, é ele quem expulsa: “Convencem especialmente os jovens de que não vale a pena morar no campo porque ser camponês e ser indígena não significa nada nesta sociedade”, diz Belén. “Algumas famílias vendem as terras e migram para a cidade grande e ali percebem que a situação é muito pior. Não têm dinheiro nem meios para produzir a própria comida”.

III. Bolívia: em direção à soberania alimentar

Aditha Mamani Chipana tem uma pequena fazenda de ordenha na vila de Pillapi, município Tiwanaku, na Bolívia. Ordenha vacas e fabrica queijo. Todos os seus produtos vão direto para o consumidor, ela mesma os leva ao mercado, panificadoras e confeitarias. Vários de seus irmãos migraram para a cidade para ser profissionais, em busca de outros empregos. Suas filhas também foram embora.

Além de trabalhar com criação de animais, Aditha é parte da Organização de Mulheres Aymara de Kollasuyo (OMAK) e promotora da Fundação Terra, focada no desenvolvimento sustentável nas comunidades camponesas, originárias e indígenas. “Para uma mulher, se levantar como líder é difícil porque ainda nos desvalorizam. Trabalhamos muito mas o trabalho de uma mulher não é valorizado”.

Aditha é uma mulher aymara. Tem 49 anos, o cabelo comprido, negro e trançado. Se veste com roupas coloridas e saia até o calcanhar. Luta contra a violência contra as mulheres rurais, promove a produção a produção local e também tenta conscientizar sobre o quão danosos são os agrotóxicos na agricultura porque Suma Qamaña –que significa “viver bem” na língua aymara– não contempla o uso de fertilizantes e pesticidas.

A poucos metros da sua plantação há um terreno de 80 hectares que a comunidade cultiva de forma coletiva porque foi herdado de seus antepassados. Eles administram a plantação como uma cooperativa. “Estou semeando dez variedades, mas a batata antiga, a que tinham nossos avós e bisavós já se perdeu. Nossa geração está esquecendo da nossa cultura”, diz, triste.

A família de Aditha vive em surcofundios, que são microterrenos, às vezes de dois metros de largura. Essa é a realidade do seu país, produto do fenômeno da extrema subdivisão da terra, porque ano após ano as propriedades menores se tornam menores ainda, em média de um hectare ou menos. Na Bolívia, 65,72% dos territórios estão ocupados por grandes propriedades. Mas, além disso, 30% da superfície do país está coberta de soja. A pressão sobre as terras indígenas em favor do monocultivo é uma constante na América Latina e, ainda que a Bolívia tenha promovido um processo de regulamentação da terra mais favorável que em outros países, a presença do agronegócio é tão cotidiano como danoso.

Tanto que, durante 2018 e 2019, 60% da comida da Bolívia era importada, redundando em perda de soberania alimentar, diz a pesquisadora Aymara Llanque Zonta. A acadêmica é fundadora de Mãe Terra Amazônia, uma microempresa comunitária dedicada à coleta e recuperação de polpa de frutas. Semeiam, colhem e vendem mas, da mesma forma que acontece no Paraguai, na Bolívia as economias locais não conseguem competir com a produção em grande escala. Os camponeses não têm acesso aos mercados que assegurem preços dignos.

E enquanto isso “comemos todos os dias frituras, gorduras, farinhas. Essa é nossa realidade. Então a fragilidade está na comida e no direito à terra”, lamenta a pesquisadora. Aqueles que sabem cultivar não têm terras ou não conseguem competir com o agronegócio. E não é só assunto de camponeses, afeta a muitos outros.

A luta pelo acesso à terra na América Latina é tão antiga como os processos de colonização, apropriação e distribuição desigual de terras. Falar de alimentos é falar de vínculos: com a terra que os gera, com a identidade dos povos que os elaboram, com nossas escolhas diárias. Em cada prato há territórios, culturas e resistências.

Enquanto aviões de fumigação envenenam os solos paraguaios, Pascual exige terras para viver e Belén preserva a identidade do seu povo conservando sementes nativas, guardando esse tesouro que algum dia valorizaremos. Na Argentina, Virgínia sonha com ser dona de sua própria casa, mas não espera, continua produzindo frutas e verduras agroecológicas, sem restos de veneno. Ao norte, na Bolívia, Aditha aposta pela agricultura familiar apesar das restrições. E Aymara não deixa de pensar em estratégias para que seus produtos possam competir nos mercados.