Skip to content

Transformação
ou mais do mesmo?

por André Antunes Brasil

Adobe Stock

Publicado em 26 de julho de 2021

Cúpula sobre Sistemas Alimentares da ONU expõe descolamento entre posições oficiais dos países latino-americanos e demandas da sociedade. Brasil de Bolsonaro cria realidade paralela, enquanto Argentina de Fernández ignora contradições do agronegócio

A máxima de que todos os caminhos levam a Roma parece não sobreviver ao século 21. Movimentos sociais, povos indígenas e pesquisadores não se sentiram convidados a participar da Pré-Cúpula sobre Sistemas Alimentares, realizada entre hoje (26) e quarta-feira (28) na capital italiana. Muitos decidiram boicotar o encontro convocado pelo secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e também o evento principal, agendado para setembro em Nova York. 

Os países da América Latina deveriam ocupar papel central nas discussões. Afinal, a região reúne alguns dos maiores produtores de commodities do mundo, como é o caso do Brasil, que em 2020 se consolidou como maior exportador de soja, e da Argentina, terceira maior produtora de soja e grande exportadora de carne bovina. Ao mesmo tempo, a agricultura familiar e camponesa na região ainda é a principal produtora de alimentos para os mercados internos, ajudando a diminuir a insegurança alimentar da população – segundo o estudo ‘O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2021’, publicado pela ONU em julho, 267 milhões de pessoas sofrem com insegurança alimentar moderada ou grave na América Latina e no Caribe.

Na superfície, a Cúpula sobre Sistemas Alimentares tem objetivos ousados: quer “transformar o modo como o mundo produz, consome e pensa sobre comida”. Mas, desde o começo, organizações da sociedade olham com desconfiança para o encontro, que não nasceu de uma demanda popular. As discussões prévias ao encontro consolidaram a ideia de exclusão de vozes importantes. E o descasamento entre as posições oficiais dos governos latinoamericanos e as demandas sociais só fez piorar a situação. O caso mais gritante é o do Brasil: o governo de Jair Bolsonaro resolveu forjar uma realidade paralela nos documentos que submeteu à ONU. 

Horta Girassol em Joinville, Santa Catarina, Brasil. Foto: Flickr/CC BY-NC-ND 2.0

O Mecanismo da Sociedade Civil do Comitê de Segurança Alimentar da ONU vem centralizando algumas das insatisfações. Em linhas gerais, o receio é de que o encontro sirva apenas para legitimar o mesmo modo de produção que nos trouxe até aqui, com pequenos ajustes.

Em março do ano passado, o Mecanismo enviou uma carta a Guterres expressando preocupação com os rumos da Cúpula. O MSC destacava, principalmente, um acordo de parceria estratégica assinado com o Fórum Econômico Mundial para a realização do evento. 

E destacava um aspecto simbólico: a indicação, para a coordenação-geral da Cúpula, da ruandense Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verde na África (AGRA). A organização é financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates, e vem buscando promover no continente africano o mesmo processo ocorrido na América Latina desde os anos 1960 e 1970, baseado na especialização produtiva em grandes áreas, com uso de sementes transgênicas e agrotóxicos. 

Em paralelo à programação oficial, a Pré-Cúpula sobre Sistemas Alimentares promoverá sessões coordenadas por governos e organizações da sociedade. Quem olha a programação reforça a impressão de que uma série de entidades ligadas à Fundação Bill & Melinda Gates dão o tom dos debates. Há ainda a participação de grupos ligados à Fundação Rockefeller, que foi importante na disseminação do modelo de revolução verde na América Latina. Também marcam presença o Banco Mundial, o Rabobank, um banco especializado no financiamento do agronegócio, e o International Life Sciences Institute (ILSI), uma organização patrocinada pelas corporações alimentares e que se envolveu em escândalos científicos mundo afora. 

“Depois disso, todos os desdobramentos da organização da Cúpula, como a definição de quem participava, quem coordenava os temas, quem compunha a comissão científica, levaram a sociedade civil a confirmar seus temores, de que a Cúpula tem um compromisso não com mudanças estruturais dos sistemas alimentares, mas, de fato, com aprofundar os principais determinantes da situação em que a gente está”, lamenta Elisabetta Recine, professora da Universidade de Brasília, no Brasil, e integrante do MSC. 

Ao final de junho, os países das Américas endossaram um documento do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, outra organização emblemática do paradigma da Revolução Verde. O documento tem mensagens claras, como a defesa do “sistema alimentar global eficiente” e o pedido de que os Estados financiem a infraestrutura para que o setor privado possa “destinar seus investimentos”. 

E há mensagens menos claras. Em particular a ideia de que o consumidor é quem decide o que comer, e aos Estados cabe simplesmente educar. Nas entrelinhas, uma declaração alinhada à indústria de alimentos ultraprocessados e contrária às medidas regulatórias que vêm sendo adotadas nos últimos anos em toda a região na tentativa de promover uma alimentação adequada e saudável – caso dos alertas utilizados em embalagens no Chile, no Peru e no Uruguai, e do imposto sobre refrigerantes criado no México.

Mobilização latino-americana

Foi em meio a esse contexto que entidades da sociedade civil organizaram a Cúpula dos Povos da América Latina para a Transformação dos Sistemas Alimentares, que ocorreu nos dias 22 e 23 deste mês, como forma de ampliar a mobilização desses setores e apresentar propostas alternativas à reunião da ONU.

A disputa entre os interesses do setor agroexportador e dos setores que defendem um modelo alternativo de produção e comercialização de alimentos, como o dos pequenos agricultores, quilombolas, indígenas e movimentos ligados à agroecologia, é atualmente uma questão central do cenário político de vários países da região. 

Mas isso nem sempre fica evidente nos documentos oficiais que os governos vêm divulgando na construção dos chamados diálogos nacionais, que são as contribuições dos Estados-membros da ONU ao processo de preparação para a Cúpula. “Existem situações políticas e canais de diálogo diferenciados nos países. Há países que têm uma maior abertura da sociedade civil para dialogar com os governos, no sentido de, por exemplo, poder levar as suas sugestões e propostas aos diálogos nacionais. Há outros países em que esse diálogo não existe”, afirma Recine.

Governo brasileiro retrata realidade paralela

No caso brasileiro, qualquer coisa diferente de um apoio incondicional ao agronegócio seria uma surpresa. A extinção das políticas de segurança alimentar e nutricional tem sido central no governo Bolsonaro – a primeira medida do presidente, em janeiro de 2019, foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Está clara, nos diálogos nacionais brasileiros, a impermeabilidade oficial em relação a uma agenda diferente do fortalecimento do agronegócio”, critica Recine, que foi a última presidente do Consea.

Os diálogos nacionais brasileiros disponíveis para consulta no site da Cúpula foram construídos por meio da sistematização de três reuniões virtuais, convocadas pelo Ministério das Relações Exteriores em 10, 12 e 14 de maio. Como base da discussão, foram utilizados dois documentos: um produzido pelo Ministério da Agricultura e outro pelo Ministério da Cidadania. 

“O documento do Ministério da Agricultura foi colocado para consulta pública apenas ao setor privado, para que ele pudesse colocar lá as suas propostas em relação à agenda da Cúpula. Isso já define que não está falando com o conjunto da sociedade brasileira”, alerta Recine.

Já o documento do Ministério da Cidadania, responsável pela política nacional de segurança alimentar, a pesquisadora da UnB classifica como uma “peça de ficção”. “Ele relata um conjunto de iniciativas, de políticas públicas, de espaços de governança, que, na realidade, não existem hoje por completo ou estão extremamente enfraquecidos: o Consea extinto, programas sem orçamento, programas sem equipe”, afirma, citando como exemplos o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Juliana Tangari, diretora do Instituto Comida do Amanhã, concorda, e afirma que os documentos resultantes do processo brasileiro não refletem a realidade da segurança alimentar e nutricional do país. “O que está ali é o que está na orientação do governo federal hoje, que é uma pauta antiambiental, de desmonte de políticas de segurança alimentar e nutricional, de expansão do uso do solo para produção de alimentos de uma forma não sustentável.”

Os diálogos nacionais brasileiros têm foco em propostas para aumentar a produtividade e o comércio internacional de alimentos. “Dado o aumento esperado da população global, o comércio internacional tem um papel-chave na provisão de alimentos saudáveis a preços acessíveis. O comércio internacional também é importante para promover a resiliência global, distribuindo alimentos de áreas produtoras para áreas sob risco de insegurança alimentar. Nesse sentido, seria importante reduzir o protecionismo e evitar novas barreiras para o comércio agrícola”, defende o documento. 

Em outro trecho, os diálogos levantam uma preocupação sobre a “predominância de narrativas não inteiramente aplicáveis aos sistemas alimentares brasileiros” no processo da Cúpula, notadamente “o encurtamento das cadeias de produção, a concentração na produção local e o enfoque em métodos eco-agrícolas”. 

“Esses modelos podem ser mais caros, menos eficientes e incapazes de fazer frente à demanda crescente por alimentos no mundo”, diz o texto, completando em seguida: “Uma vez que nem todos os países são autossuficientes ou serão capazes de adaptarem rapidamente seus sistemas de produção, mesmo em condições favoráveis, o comércio mundial de alimentos continuará sendo fundamental para promover segurança alimentar.”

Adiante, o documento trata dos agrotóxicos, tema importante no país que é um dos maiores consumidores desses produtos no mundo e cujo governo vem batendo recordes de liberação dessas substâncias para uso ano a ano. Só no ano passado, o governo aprovou o registro de 493 novos compostos químicos. 

Realidade oposta à retratada nos diálogos nacionais. “Ainda que tenha sido indicado que o uso excessivo de agrotóxicos pode ser prejudicial ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores rurais, o Brasil não está entre os maiores consumidores desses produtos em relação a sua produção agrícola […] Políticas do governo brasileiro promovem o uso crescente de produtos biológicos de modo a reduzir o uso de agrotóxicos químicos.”

Para José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o documento está baseado em premissas anacrônicas. “Estão defendendo o comércio, a exportação de commodities, o aumento da produtividade, que é a saída tradicional das práticas da Revolução Verde”, critica.

“Os sistemas alimentares não podem se basear mais apenas em commodities, têm que dar ênfase aos circuitos curtos de produção e consumo, produção de alimentos saudáveis, frescos, como frutas, legumes, verduras, que são produtos de cercania, não são produtos de exportação, até porque são altamente perecíveis. O Brasil ignorou completamente, por exemplo, os representantes dos agricultores familiares, que buscam uma valorização da pequena produção e alternativas de produção às técnicas da Revolução Verde”, diz.

Exportação de milho, Porto de Paranaguá, Paraná. Foto: Claudio Neves/Agência Estadual de Notícias do Paraná

Argentina: avanços ficam de fora dos documentos oficiais

A Argentina é um dos países latino-americanos mais engajados na organização da Cúpula. É o único da região que conta com uma representante no Comitê Consultivo do evento. Trata-se da embaixadora da Argentina na ONU Maria del Carmen Squeff. 

O país é o terceiro maior produtor de soja do mundo, atrás apenas do Brasil e dos Estados Unidos, mas recentemente deu alguns passos no sentido de transformação de ao menos uma parte do sistema agrícola. Em 2020, o governo do presidente Alberto Fernandez instituiu, no âmbito do Ministério da Agricultura, uma secretaria dedicada à agroecologia. E,  em 2021, apresentou um projeto de lei de fomento à produção agroecológica, que deve tramitar no parlamento argentino. Na província de La Pampa, região central que concentra grande parte da produção agropecuária voltada para exportação no país, o Legislativo aprovou um projeto de lei semelhante, bem como uma proposta para reduzir o uso de agrotóxicos.

São avanços que, no entanto, não entraram nos documentos oficiais argentinos para a Cúpula. Até o fechamento desta reportagem, havia três documentos produzidos pela Argentina disponíveis no site do evento. Eles resultaram de reuniões convocadas pelo Ministério das Relações Exteriores para debater o tema “Fortalecer os sistemas alimentares para o desenvolvimento sustentável”. Foram realizados três encontros, nos dias 18, 19 e 21 de maio, nos quais, segundo o governo, participaram representantes de ONGs, da academia e dos setores público e privado.

Os documentos apresentam um claro enfoque nas demandas do setor agroindustrial. “O ‘olhar produtivista’ não é alheio ao desejo de viver de maneira sustentável”, defende um deles. Nesse sentido, para que os objetivos da Cúpula sejam atingidos, o texto afirma que é preciso investir em tecnologia, biotecnologia e na implantação das chamadas “boas práticas agrícolas”, que já são amplamente utilizadas pelo agronegócio na Argentina. 

Uma das “boas práticas” mais citadas é a semeadura direta, técnica de plantio que dispensa o prévio revolvimento do solo com arados e grades. O documento reivindica que a Argentina lidere um esforço de cooperação internacional em pesquisa e desenvolvimento nessa área, por meio do assessoramento na implementação da técnica em outros países. 

Outro trecho faz uma menção explícita à criação de gado – setor que responde por cerca de 7% do PIB argentino, mas que é um dos maiores emissores de gases de efeito estufa, segundo a própria FAO. “Nossa economia precisa de dólares. Nossa produção precisa ser sustentável […] A pecuária argentina é muito sustentável do ponto de vista ambiental”, atesta o documento, que em seguida afirma ser “uma visão equivocada dizer que a pecuária argentina é negativa porque emite metano.” 

Apesar do crescimento da importância da agroecologia no âmbito das políticas públicas do governo argentino, não há nenhuma menção a ela em nenhum dos documentos apresentados como resultado dos diálogos nacionais. Também não há menção à agricultura familiar, camponesa e indígena.

Por outro lado, uma preocupação central parece ser ampliar os canais para comercialização dos produtos agrícolas argentinos com o restante do mundo. “O comércio não deve ter grandes intervenções e deve-se facilitar o fluxo de alimentos. Atualmente há muitas restrições aos mercados que precisam ser corrigidas”, lista um documento como um dos “desafios” para o sistema alimentar argentino.

Ao invés da ampliação da regulação sobre a indústria de alimentos processados como estratégia no combate a problemas como obesidade e diabetes, a aposta é na “capacitação e educação alimentar para alcançar um consumo responsável e dietas equilibradas”, ou seja, a estratégia de responsabilização dos indivíduos. Já como chave para a garantia da segurança alimentar, o documento indica a “relevância de se continuar trabalhando em favor da redução e do desperdício de alimentos”.

“É um país que em teoria deveria ter uma postura mais crítica, mas há contradições internas que fizeram com que isso não fosse possível”, diz Sofia Monsalve, secretária-geral da FIAN Internacional, organização de defesa do direito à alimentação. “Me parece que o governo está fragmentado. O país tem grandes interesses agroexportadores, e esse setor é mais influente na política externa. E a agenda da agroecologia, de reconhecer a importância da agricultura familiar e camponesa, não consegue se articular internacionalmente nesse nível.” 

Criação de gado responde por cerca de 7% do PIB argentino. Foto: Adobe Stock

México: propostas progressistas

O México é o país latino-americano que promete levar à Cúpula as propostas mais progressistas, que enfrentam os interesses do agronegócio e da indústria alimentícia. Muito por conta da mobilização de entidades da sociedade civil mexicana e da sua articulação com o governo, o país vem obtendo avanços importantes nos últimos anos em áreas como a regulação dos agrotóxicos e da indústria alimentícia.

Em 2014, o governo passou a cobrar um imposto sobre a comercialização de bebidas não alcoólicas açucaradas como medida para desestimular o consumo desses produtos e combater a epidemia de obesidade no país. 

Já em março do ano passado foi publicada uma nova norma de rotulagem de alimentos que prevê a utilização de sinais de advertência em produtos com quantidades excessivas de gorduras saturadas, gorduras trans, açúcares, sódio e calorias. A regra entrou em vigor em outubro de 2020. 

Em dezembro do mesmo ano, o governo publicou um decreto anunciando o banimento, até 2024, do glifosato, agrotóxico mais vendido no mundo, assim como a suspensão imediata do produto. O decreto exige ainda a suspensão das licenças para o cultivo de milho transgênico no país.

“O México é um dos únicos países onde as organizações com uma postura crítica à Cúpula participaram do diálogo nacional. E o fizeram porque têm articulação com seu governo, que tem feito coisas que eles consideram importantes. É muito importante que o país defenda internacionalmente a decisão de proibir o glifosato, por exemplo”, avalia Monsalve,  complementando em seguida: “O Ministério da Saúde está participando muito de discussões sobre agricultura e tomou posições progressistas, defendendo a importância da alimentação fresca, sazonal, da agroecologia, e a necessidade de aumentar o imposto de bebidas com açúcar, além de outras políticas para desestimular o consumo.”

Sob a coordenação de um grupo intersetorial já existente no país, chamado GISAMAC (sigla para Grupo Intersectorial de Salud, Alimentación y Competitividad), que reúne representantes dos ministérios da Saúde, Economia, Agricultura, Desenvolvimento Social e Meio Ambiente, o governo mexicano realizou oito encontros virtuais para debater as propostas para a Cúpula

As discussões colocaram foco na construção de uma nova política alimentar nacional para os próximos anos, chamada de Estratégia Nacional para uma Alimentação Saudável, Justa e Sustentável.

Entre as principais propostas estão temas como a criação de um guia alimentar para o país, que leve em conta as realidades locais; políticas de incentivo aos pequenos produtores e agricultores familiares; novas regulações para a indústria alimentícia; o reconhecimento da de técnicas de produção tradicionais; restrições ao uso de agroquímicos e a proteção das sementes nativas e crioulas.

“No México temos um governo que permitiu uma maior abertura para alguns temas”, reconhece Marcos Arana, pesquisador do Instituto Nacional de Ciências Médicas e Nutrição do México e integrante da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN). Mas ressalta: “Ainda assim, o governo não é monolítico. Há posturas, sobretudo na Secretaria de Agricultura, que apoiam toda essa agricultura industrial orientada fundamentalmente para as exportações. O México tem sistemas alimentares, em especial no norte do país, de alta produtividade, com um esquema totalmente industrial que está voltado para exportação e para a produção de uma série de insumos para a pecuária.”

Segundo ele, uma preocupação é que, embora o GISAMAC, que coordena a elaboração dos diálogos nacionais, venha incluindo diferentes grupos na discussão, ele não tem sido “operativo”. Esse receio foi expresso inclusive em um dos debates promovidos pelo governo mexicano, em que se recomendou que o GISAMAC se tornasse um conselho nacional de alimentação autônomo, como forma de lhe dar institucionalidade.

“A postura que o México vai apresentar vai depender desse grupo, que temos tentado influenciar, sobretudo porque nos últimos anos foram abertos muitos canais de discussão para muitos temas que têm a ver com a promoção de uma alimentação saudável”, afirma Arana. 

Para ele, no entanto, o governo mexicano vem dando muito foco a questões relacionadas à saúde em detrimento dos problemas ligados à questão fundiária. “Promover a alimentação saudável, regular os alimentos ultraprocessados, são temas muito importantes. Mas eu sinto que não está na agenda de discussão um questionamento mais profundo sobre os embates terríveis da expansão da agricultura industrial e da mineração sobre os pequenos produtores empobrecidos e os sistemas de cultivo tradicionais”, alerta.

Sementes crioulas de milho. Foto: E. Orchardson/CIMMYT/CC BY-NC-SA 2.0

Colômbia: greve geral e propostas alternativas

A Colômbia está paralisada desde abril por uma greve geral organizada por trabalhadores e movimentos sociais do país. No início, as manifestações eram contra a reforma tributária do governo do presidente Iván Duque, mas passaram a incluir outras pautas, como a redução das desigualdades, a reforma da polícia e uma melhor implementação do processo de paz.  Os protestos vêm sido duramente reprimidos pelas forças de segurança, cenário que recentemente levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a visitar o país para apurar centenas de denúncias de violações de direitos humanos.

Nesse contexto, afirma Sofia Monsalve, os movimentos de soberania alimentar, de camponeses, de direitos humanos, entre outros, não têm participado da elaboração dos diálogos nacionais, coordenados pela primeira-dama colombiana, Maria Juliana Ruiz Sandoval.

“Na Colômbia nunca existiu uma plataforma mais democrática de discussão do tema alimentar, como no Brasil, por exemplo”, afirma ela, fazendo referência ao extinto Consea. “De fato, a necessidade de se reconhecer o direito à alimentação e se criar uma estrutura institucional participativa para discutir a política alimentar faz parte dos acordos de paz [firmados com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o governo, em 2016]. Mas isso não foi cumprido”, diz Monsalve. “Arriscaria dizer que esse setor [da sociedade civil] não participou da elaboração dos diálogos”, completa ela. 

Na página da Cúpula estão disponíveis dois documentos produzidos pelo governo colombiano. Cada um deles resultou de debates promovidos com integrantes de diferentes setores. O primeiro reuniu instituições governamentais e acadêmicas. Já o segundo foi mais amplo, e incluiu “agências e organismos de cooperação internacional”, fundações privadas, instituições governamentais e acadêmicas. 

Segundo o governo colombiano, além desses dois debates, outras reuniões seriam realizadas como preparação para a Cúpula. Mas até o fechamento desta reportagem não haviam sido publicados diálogos subsequentes.

Os documentos listam várias propostas, como o apoio à agricultura familiar e camponesa, à agroecologia, a promoção de ciclos curtos de produção e comercialização de alimentos e o fomento à maior participação de grupos étnicos na implementação de políticas públicas de alimentação. As recomendações estão alinhadas com as do Mecanismo da Sociedade Civil (MSC) do Comitê de Segurança Alimentar da ONU.

Os diálogos falam em inclusão de grupos étnicos na lei de compras públicas de alimentos e em “reorientar os enfoques de formação acadêmica para que tenham uma visão mais sistêmica do agroalimentar e do direito humano à alimentação”, por exemplo. 

Como desafios do sistema, citam a transição para um “enfoque agroecológico e sistêmico de alimentação e nutrição”, a necessidade de fortalecimento da produção de frutas e verduras para consumo interno, entre outros.

Protestos em Medellín, Colômbia. Foto: Humano Salvaje/CC BY-SA 2.0