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Impostos doces para as empresas, preços amargos para as pessoas

por Juliana Afonso e Nina Rocha
foto: adobe stock
Publicado em 26 de outubro de 2021*

Em toda a América Latina, alimentos frescos sofrem com carga tributária que privilegia quem tem poder para fazer lobby. A cesta básica no México abrange 40 produtos. Na Colômbia, embutidos como mortadela e salsicha pagam menos imposto. Na Argentina, política tributária ignora alimentação saudável

A definição de cesta básica varia de acordo com o país. No Brasil, essa política diz respeito a um número reduzido de alimentos, o que facilita a implantação de políticas públicas de caráter nacional, mas homogeneíza as necessidades da população. No México, a cesta básica abrange 40 produtos diferentes, que vão desde gêneros alimentícios até materiais de limpeza. 

“Houve uma modificação na qual o governo federal aponta os bens mais essenciais da cesta básica. Estamos falando de grãos para fazer tortilla, ovos e outros produtos, mas o governo não estabelece quais as proporções que uma família necessita”, afirma o economista e professor da Universidade de Guadalajara, Héctor Iván del Toro. O pesquisador afirma que esses considerados essenciais pelo governo mexicano são insuficientes em qualidade e quantidade para garantir que as pessoas realizem suas atividades. 

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Héctor realiza uma investigação permanente desde a década de 1980 denominada Cesta básica e índice de preços no varejo na Zona Metropolitana de Guadalajara, que traz um recorte territorial de um dos 31 estados do México. A série histórica busca compreender os alimentos que a população mais consome e as quantidades necessárias para a definição de uma cesta básica para uma família de quatro a cinco membros. Atualmente, eles trabalham com 121 artigos básicos. “No estudo, vemos a evolução da inflação e como ela influencia diretamente nos preços dos produtos. A inflação repercute muito no poder aquisitivo da moeda mexicana e as pessoas conseguem adquirir cada vez menos”, afirma Héctor.

A inflação alcançou 6% nos últimos doze meses, um número relativamente baixo se comparado a outros países latino-americanos. Entretanto, é o dobro do que havia sido projetado pelo Banco Central do México. O aumento dos preços de produtos básicos pegou a população de surpresa: o chile serrano (uma espécie de pimenta) aumentou 54,39%, o abacate, 24,55%, e a carne de porco, 17,45%. Também é importante destacar a relação da alimentação com o valor do gás de cozinha, utilizado na maioria das casas mexicanas, que aumentou 21%. No final de julho, o governo passou a estabelecer preços máximos para a venda do produto em cada região do país.

Segundo o Artigo 123 da Constituição do México, o salário mínimo deve ser “suficiente para satisfazer as necessidades normais de um chefe de família, em ordem material, social e cultural, e para prover a educação obrigatória dos filhos”. O salário mínimo em 2021 subiu para 141,7 pesos por dia, cerca de 4.300 pesos por mês, o equivalente a 216 dólares. É o maior aumento da história do país. Ainda assim, os valores atuais estão longe de garantir o que está previsto em lei: segundo os dados auferidos pelo estudo coordenado por Héctor, seria preciso desembolsar cerca de 11.400 pesos, quase três salários mínimos, para uma família poder consumir a totalidade da cesta básica.

Essa situação influencia diretamente a vida das famílias, que precisam buscar fontes alternativas de renda, contar com o trabalho dos filhos ou deixar de comprar alguns produtos essenciais. “Na zona metropolitana de Guadalajara, cerca de 30% das famílias encontram grandes dificuldades porque seu salário não supera os 8 mil pesos”, afirma Héctor. O corte na quantidade de alimentos ingeridos cotidianamente e sua substituição por artigos com um pior perfil nutricional pode levar a problemas de saúde e a uma queda de desempenho laboral e educativo.

O México implementou o IVA, Imposto sobre Valor Agregado, ainda em 1978. O país aplica uma taxa única de 16% em todo o território nacional, mas isenta alguns produtos, como remédios, água potável, livros, jornais, revistas e alimentos. A isenção do IVA aos artigos alimentícios foi aprovada em 2013 e beneficia toda a população, uma vez que não faz distinção sobre o consumidor ou sobre os produtos. 

O tema gera grandes debates e alguns especialistas em Direito financeiro têm cobrado que a taxa seja zero apenas para os produtos da cesta básica. Assim, aumenta-se a arrecadação. Atualmente, a taxa zero é aplicada para alimentos essenciais como leite e pão, mas também para artigos de luxo como caviar, salmão defumado e chicletes. 

Uma política contrária ao pioneirismo que o México teve na criação de um imposto especial sobre refrigerantes, sucos e néctares. A medida foi adotada ainda na década passada com o objetivo de desestimular o consumo de produtos que se tornaram um símbolo da maior causa de mortes do país: o diabetes, responsável por ao menos 100 mil óbitos ao ano. O Imposto sobre Produtos Especiais, o IEPS, onera ainda a produção e a venda de cigarros, bebidas alcoólicas e combustíveis.

Organizações ativistas pela segurança alimentar têm lutado para implementar propostas similares na Colômbia. No país, a cesta básica familiar inclui transporte, saúde, educação, recreação, vestuário, serviços públicos e tudo o que um lar necessita. Na categoria alimentação, ela é elaborada através de um processo contínuo de estudo sobre o que as pessoas consomem, por meio da Pesquisa Nacional de Renda e Despesa Domiciliar (INEGI).

Os produtos mais comuns – não exatamente os mais necessários – são incluídos na cesta básica. “Atualmente, são incluídos praticamente todos os tipos de refrigerantes na cesta básica familiar, o que significa que a frequência do consumo deste alimento está aumentando”, explica a economista Marta Sandoval, especialista em Políticas de Desenvolvimento Territorial pela Universidade dos Andes. 

Marta pertence à Associação Colombiana de Saúde Pública e trabalha há anos com políticas de ambientes alimentares saudáveis, dedicando-se, entre outros assuntos, ao fortalecimento de políticas públicas que garantam a oferta de produtos saudáveis e a restrição de benefícios aos ultraprocessados. “Isto significa incentivar as economias camponesas, promovendo a diversidade da produção, e restringir o consumo de produtos não saudáveis”, argumenta.

Marta enumera quatro políticas fundamentais para a redução do consumo de ultraprocessados no país: a criação de impostos para bebidas açucaradas, a regulação da publicidade dirigida a crianças e adolescentes, uma política de rotulagem mais rigorosa e a regulação de ambientes saudáveis alimentares. 

Um caso concreto mostra que o governo tem trabalhado no sentido contrário: “Durante a pandemia muitos agricultores perderam cultivos que poderiam chegar aos lares das pessoas mais pobres a partir do investimento do governo em garantir transporte das zonas rurais às cidades. Em contraponto, a empresa PepsiCo disse certa vez ‘conseguimos sustentar a nossa produção durante a pandemia graças ao governo nacional, que nos apoiou pois somos um produto da cesta básica familiar’”, relembra Marta. 

As grandes empresas comumente afirmam que o incentivo aos seus serviços é fundamental pois a diminuição do consumo de refrigerantes, por exemplo, pode afetar o emprego e também a compra das matérias-primas dos produtores do campo por parte destas empresas. “Eles se dizem salvadores da produção campesina”, lamenta Marta.

O governo colombiano tentou emplacar uma reforma tributária no início de 2021. Entre as propostas estava a mudança de bens isentos para bens excluídos. Os bens isentos apresentam uma alíquota de 0% do IVA e os produtores destes artigos têm direito a receber a devolução do imposto, uma vez que eles pagaram essa taxa em outros processos ao longo da cadeia de produção. 

Ao passar estes bens à categoria de excluídos, os produtores não teriam direito à devolução e o resultado disto seria o aumento dos custos de produção e o posterior aumento dos preços ao consumidor final. “O governo criou uma comissão de especialistas que recomendou a redução dos benefícios tributários das grandes corporações. O que acontece, entretanto, é exatamente o contrário. A cada reforma tributária, em vez de cortar os benefícios das grandes empresas, o que fazem são impostos regressivos, que afetam todos os lares, principalmente os de baixos ingressos”, afirma Marta. 

As fortes mobilizações na Colômbia nos meses de abril, maio e junho fizeram com que o governo federal recuasse e retirasse a proposta de votação. Atualmente, o governo discute uma reforma de apenas 33 artigos, com o objetivo de aumentar a arrecadação do Estado a fim de ampliar os programas sociais necessários para apoiar a população durante a pandemia. Segundo a Pesquisa Pulso Social, do Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Dane), 33% dos lares colombianos não conseguem realizar as três refeições diárias.

A situação também é complicada na Argentina, onde a pobreza atinge 40,6%  da população e 10,7% vive em situação de indigência, ou seja, sem renda para se alimentar cotidianamente, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (In­dec). O cálculo é feito de acordo com a capacidade de acesso às cestas básicas: aqueles que não conseguem adquirir a Cesta Básica Alimentar (conjunto de alimentos e bebidas que satisfazem os requisitos nutricionais e calóricos) se encontram na linha de indigência e aqueles que não conseguem adquirir a Cesta Básica Total (inclui ainda bens e serviços como vestuário, transporte, educação, saúde, moradia e outros) se encontram na linha de pobreza. 

foto: adobe stock

No mês de junho de 2021, o valor da Cesta Básica Total para uma família de dois adultos e duas crianças foi de 66.488 pesos. A cifra é 51,8% mais cara que em junho de 2020. E mais: com um salário mínimo de 21.600 pesos, o equivalente a 220 dólares, não é possível adquirir nem a metade dos bens e serviços considerados essenciais. A última vez que o país atravessou índices tão baixos foi em 2001, quando a crise econômica elevou a taxa de pobreza a 58%. 

A disparada dos preços tem feito a população comer menos, mas ela também anda comendo pior: um estudo realizado pela Fundação InterAmericana do Coração (FIC Argentina), em setembro de 2018, comparou os custos das dietas saudável e cotidiana da população argentina e identificou que a dieta denominada saudável era em média 32% mais cara que a habitual. 

A economista e pesquisadora da FIC Argentina, Florencia Cámara, acredita que uma mudança na política tributária do país pode ajudar a mudar os hábitos alimentares da população. “Os principais impostos sobre consumo não têm uma perspectiva de saúde. Existem programas sociais e alimentares, como o Precios Cuidados [programa vigente desde 2014 e que tem como objetivo controlar o preço de produtos básicos mediante acordos entre o Estado e setores de produção e distribuição], mas ele busca garantir que a população acesse os produtos mais consumidos, não necessariamente os mais saudáveis”, explica Florencia.

A resolução mais recente foi publicada no dia 19 de outubro e estabelece o congelamento dos preços de 1.432 produtos. A proposta, que tem como objetivo frear a inflação e garantir que a população consiga se alimentar, levantou críticas entre o empresariado, que está proibido de aumentar o valor das mercadorias até o dia 7 de janeiro.

O Imposto sobre Valor Agregado (IVA) na Argentina apresenta uma alíquota geral de 21%, mas alguns produtos largamente consumidos pela população, como farinha de trigo, frutas, verduras, carnes não processadas e outros são taxados com uma alíquota de apenas 10,5%. Existem também os chamados “regimes especiais” para setores produtivos regionais. 

“A Argentina é um país muito grande e existem alguns benefícios extras de acordo com a região, como acontece com as frutas e vinhos na província de Mendoza ou o açúcar na província de Tucuman”, explica Florencia. Para ela, a política tributária deve ser pensada em uma perspectiva de saúde, com aumento de impostos aos alimentos não saudáveis e subsídios aos produtos cujo consumo se busca incentivar.

O país avança na promoção de uma alimentação mais saudável: no dia 26 de outubro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei de Promoção de Alimentação Saudável, conhecido também como lei da rotulagem frontal, que prevê a inscrição de octógonos pretos com informações sobre quantidade de açúcar, gordura e outros ingredientes que causam danos à saúde. As grandes empresas têm seis meses para se adequar às novas exigências, enquanto as pequenas e médias contam com o prazo de um ano.

“Temos 40% de crianças e adolescentes com excesso de peso no país. Ao mesmo tempo, oito em cada dez embalagens de alimentos ultraprocessados trazem informações como ‘fonte de cálcio’ e ‘redução de açúcar’ e três em cada dez contêm personagens que dialogam diretamente com este público. Isso é muito preocupante”, alerta a nutricionista Victoria Tiscornia, pesquisadora de políticas de alimentação saudável no FIC Argentina. 

A inspiração para o projeto veio do Chile, que adotou a lei em 2016 e já vem colhendo os frutos desta política: o estudo Equilibrium Effects of Food Labeling Policies (Efeitos de equilíbrio das políticas de rotulagem de alimentos) demonstrou uma diminuição de até 9% no consumo de produtos com alto índice de açúcares no país.

* Este texto foi atualizado para incluir informações sobre a aprovação da lei da rotulagem frontal na Argentina.